ENTREVISTA: HORST NITSCHACK E A TRADUÇÃO DE TUTAMÉIA AO ALEMÃO

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Transcrição:

ENTREVISTA: HORST NITSCHACK E A TRADUÇÃO DE TUTAMÉIA AO ALEMÃO Gilca Machado SEIDINGER 1 A importância atribuída por Guimarães Rosa à tradução de sua obra pode ser comprovada se se volta a atenção para o volume e para o grau de detalhamento da correspondência com seus tradutores, entre eles o italiano Edoardo Bizarri e o alemão Curt Meyer-Clason. As cartas trocadas pelo autor mineiro com esses tradutores foram publicadas respectivamente em 1972 e 2003 estas últimas numa edição organizada por Bussolotti (2003). O conteúdo dessa correspondência versa, em grande parte, sobre vocabulário, regionalismos e neologismos, além de questões administrativo-burocráticas envolvendo a publicação da obra do autor na Alemanha. Segundo a organizadora da correspondência: As edições alemãs saem, pela ordem de datas, como seguem: Grande sertão, Roman, 1964 (1968); Corps de Ballet, Romanzyklus, 1966; Das dritte Ufer des Flusses, Erzählungen, 1968; (Mein Onkel der Jaguar, 1981) e Sagarana, 1982. (BUSSOLOTTI, 2003, p.29) 2. É possível que a autora se refira aqui apenas às obras que são objeto da correspondência, mas, de qualquer forma, é preciso lembrar que em 2003, à época da publicação da correspondência, já havia também um Tutaméia em alemão. Em entrevista de 1996, transcrita nesse mesmo volume (BUSSOLOTTI, 2003, p.50), o próprio tradutor recorda: Por ocasião da Feira do Livro de Frankfurt, transcorrida em outubro de 1994, com o tema central BRASIL, foram reeditados três livros de Guimarães Rosa, além da primeira publicação de Tutaméia. Ao folhear o volume (ROSA, 1994), porém, vê-se na página de rosto, além do conhecido nome de Meyer-Clason, a informação de que houve um colaborador: Horst Nitschack. Esse fato, inédito nas demais obras traduzidas para o alemão, tampouco é mencionado na bibliografia sobre o tema. Consideramos relevante, assim, rastrear os bastidores dessa tradução, uma vez que, na principal fonte de informações à disposição do público sobre as versões da obra rosiana ao alemão a correspondência já mencionada, não há referência à tradução dessa obra, a última 1 Doutoranda em Estudos Literários. UNESP Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras Departamento de Literatura. Programa de Pós-Graduação em Estudo Literários. Araraquara SP Brasil. 14.800-901 gilcaseidinger@hotmail.com 2 O terceiro título refere-se a Primeiras estórias, publicado com o título de uma das narrativas, A terceira margem do rio ; o quarto, entre parênteses (provavelmente por não corresponder a nenhum livro em português), refere-se à publicação em separado de Meu tio, o iauaretê. Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007 225

Gilca Machado Seidinger publicada em vida pelo autor. Localizado o tradutor-colaborador, em setembro de 2005, Horst Nitschack 3 gentilmente se dispôs a relatar a história da tradução de Tutaméia, que ora trazemos a público. A edição de Tutaméia em alemão traz a informação de que foi elaborada unter Mitarbeit von Horst Nitschack ou seja, com sua colaboração, caso único dentre as versões alemãs da obra rosiana. Gostaria que o senhor relatasse a época, as circunstâncias, enfim, a história dessa colaboração. Teria havido uma motivação específica, interna ao texto ou não, para esse trabalho conjunto? Tutaméia foi a última das obras de Guimarães Rosa que faltava traduzir para o alemão. Para a editora, era evidente que o grande tradutor Meyer-Clason, que tinha traduzido todas as obras de Guimarães Rosa e o tinha conhecido pessoalmente, deveria traduzir também esta obra. Porém, Meyer-Clason já estava em idade avançada. Seria interessante investigar qual foi a última tradução do português para o alemão, antes de Tutaméia, que Meyer-Clason tinha publicado. Não sei. 4 Mas a maior parte das traduções dele do espanhol para o alemão já tinham aparecido com Mitarbeitern, ou gemeinsam mit (em conjunto com) colaboradores que revisaram a tradução dele e ficaram responsáveis pelos problemas chatos da tradução. Meyer-Clason figurava mais como uma marca de tradutor por seus méritos antigos do que por seu trabalho na época. Os textos traduzidos do português publicados pelas editoras alemães na época foram todos traduzidos por tradutoras mais jovens, muito boas, como Ray Güde Mertin e Karin Schreiner. Elas tinham o seu próprio nome e jamais teriam aceitado um trabalho em conjunto ou em colaboração com Meyer-Clason. Essa foi a razão por que a editora buscava alguém com bons conhecimentos do português e também da cultura do nordeste como colaborador de Meyer-Clason. Eu tinha passado quatro anos (1980 1984) em Fortaleza como professor visitante e representante do DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico), tinha várias publicações sobre literatura de cordel e sobre literatura do nordeste, e acabava de voltar de uma estadia de 6 anos no Peru (também pelo DAAD), de forma que estava buscando oportunidades de reintegrarme no mercado cultural alemão, e assim aceitei a oferta da editora de colaborar com Meyer-Clason. 3 O professor Nitschack atualmente faz parte do corpo docente do Centro de Estudios Culturales Latinoamericanos da Facultad de Filosofia y Humanidades da Universidad de Chile. 4 Conforme já referido, trata-se da versão de Sagarana, de 1982. 226 Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007

Foi um trabalho a quatro mãos? Como ele se deu na prática? O senhor se recorda das maiores dificuldades propostas pelo texto, seja na leitura, seja na transposição ao idioma-alvo? Não, em verdade não foi um trabalho a quatro mãos. Meyer-Clason tinha feito (escrita a mão!) uma primeira tradução do texto (em alemão, Rohübersetzung ), que ele me mandou. Foi realmente uma tradução bastante aproximativa, cheia de lacunas e erros, uma verdadeira Rohübersetzung. Mas ela tinha uma grande vantagem e um grande mérito: ela se caracterizava pelo estilo e pelo gesto e jeito das traduções de Meyer-Clason. Foi como assim imagino nos ateliês dos grandes pintores da Idade Média e do Renascimento, onde os pintores, os gênios, davam os grandes traços das pinturas e os colaboradores faziam a realização dos detalhes. Assim se realizou esse trabalho a quatro mãos: Meyer-Clason deu os traços gerais, e eu e, numa terceira revisão, a leitora da editora, senhora Flake, levamos a tradução a cabo. Mas, na época, quando aceitei o trabalho, ainda não tinha clareza sobre esse procedimento. Elaborei a minha correção e as minhas contrapropostas à tradução de Meyer-Clason e lhe mandei essa segunda versão, de modo que ele podia revisá-la e corrigi-la. Porém, recebi essa segunda versão de volta (uma versão sobre a qual eu estava bem consciente de que ainda precisava de trabalho) quase sem nenhuma correção ou contraproposta. Meyer-Clason, parece, não tinha nem interesse nem condições de revisar o texto. Nesse momento, ficou claro que o trabalho que fora aceito por mim como colaborador seria um trabalho que, de fato, deveria fazer sob minha própria responsabilidade. Negociei com a editora: aumentaram meu honorário (que não era muito algo entre 4000 e 5000 marcos) e me informaram que o texto poderia ser publicado em meu nome e no nome de Meyer-Clason, não como colaborador (Mitarbeiter), mas como co-tradutor. Não aceitei. Não aceitei, porque a editora tinha idéias muito precisas para a data da publicação (a Feira de Frankfurt, em 1994) e não deixara o tempo necessário para uma revisão realmente responsável do texto. Houve, nessas circunstâncias, com base na minha segunda versão, uma última revisão do texto (pela senhora Flake e por mim). Mas a senhora Flake não tem conhecimentos do português, isto é, tratava-se de uma revisão na qual se discutiram a estilística alemã e as expressões alemãs, mas não em que medida o texto realmente traduzia o original. Meyer- Clason não participou de nenhuma maneira nessas últimas revisões. A contribuição dele foi exclusivamente uma primeira tradução aproximativa (Rohübersetzung) do texto de Guimarães Rosa. O livro teve muitas resenhas nos jornais alemães; alguns mencionaram a tradução duma maneira geral e com elogios. Não li nenhuma crítica da tradução, o que se deve com certeza ao fato de que foi assinada pelo nome sacrossanto Meyer-Clason e porque nenhum dos críticos tinha os conhecimentos do português que teriam permitido julgar a tradução. Você é a primeira que chega a saber como foi, e a única pessoa que poderia confirmar ou corrigir esta informação Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007 227

Gilca Machado Seidinger é a senhora Flake e, claro, Meyer-Clason pessoalmente, se ele se lembra ou quer se lembrar. Você certamente tem razão em distinguir as dificuldades na leitura das da transposição. O primeiro grande obstáculo na aproximação a Tutaméia é a compreensão do texto. Até para um leitor brasileiro não familiarizado com a cultura e a fala do nordeste não é um texto fácil o leitor estrangeiro compartilha todas essas dificuldades de um leitor brasileiro no nível do léxico nordestino, das expressões nordestinas e dos neologismos rosianos. Contudo, as dificuldades com as quais se confronta a tradução são maiores. Em primeiro lugar, repetem-se as dificuldades da leitura, com uma agravante: se na leitura uma frase fica ambígua, se uma palavra não é compreensível, passamos por alto esperando que não seja tão importante e que no final vamos entender o conto no seu conjunto, mesmo se algumas palavras ou expressões não foram bem compreendidas (Guimarães Rosa brinca muitas vezes com a polissemia ou a ambigüidade semântica das palavras). Na tradução, o tradutor tem que se decidir em cada caso por uma solução. Às vezes ele pode manter a ambigüidade na língua estrangeira, isto é, no alemão, mas ele não pode deixar um espaço em branco. O tradutor tem que oferecer uma solução; mesmo se ele tiver dúvida de que seja a solução correta, ele tem que escrever algo, ou ele omite e deixa de lado toda uma expressão ou uma frase o que me parece a solução menos honesta. Lamentavelmente, na minha última mudança, botei todos os manuscritos no lixo e ademais nem tenho a versão alemã aqui no Chile, só o texto em português. Então não tenho a possibilidade de citar exemplos. Mas lembro muito bem: trabalhei também com a tradução francesa (o meu francês é muito bom; estudei francês português nunca tinha estudado e morei três anos na França), mas, muitas vezes, quando a consultei, fiquei convencido de que essa tradução (francesa) estava errada, ou pelo menos ela não contribuiu para resolver meu problema. Perguntei a colegas brasileiros (entre outros, Marta Campos, da Universidade de Colônia, que é cearense), mas muitas vezes tampouco eles podiam contribuir para a compreensão do texto, que também para eles era enigmático. Nesses casos, tentei adivinhar o que Guimarães Rosa queria dizer e busquei uma solução em alemão que exprimia o que eu imaginava que fosse a idéia de Guimarães Rosa. O segundo problema, que foi o problema mais grave, foi encontrar um estilo, um registro em alemão para o mundo rosiano. Aqui a proposta, isto é, a primeira versão de Meyer-Clason, foi uma verdadeira ajuda, porque ela era uma certa garantia de que a tradução continuava no estilo que Meyer-Clason tinha elaborado para o mundo rosiano em alemão nos textos antes traduzidos. Se de maneira geral essa referência dos textos antes traduzidos foi muito importante, isso nem sempre significava uma ajuda nos problemas concretos que cada conto ia apresentar de novo. Por outro lado, o que facilitou a tradução foi a própria filosofia do Guimarães Rosa. Ele não é um regionalista no sentido estrito, mas sim um universalista, e narra como no cotidiano, no nordestino mesmo; em última instância, o universal está presente. A significação do texto rosiano nunca se esgota num sentido restrito ao mundo do 228 Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007

Sertão; ao contrário: o mundo do Sertão é a cena para um espetáculo, para dramas e conflitos, para mal-entendidos, para reações humanas, para esperanças e angústias que sempre têm uma dimensão universal. Apesar de todos os regionalismos, as etimologias sertanejas, as referências a práticas locais, o horizonte da escrita de Guimarães Rosa é um horizonte universalista esse horizonte universalista facilita a tradução. Assim, é provável que esse horizonte universalista seja mais presente na tradução alemã, à custa da presença do mundo e do ambiente sertanejos. Para o leitor alemão o Sertão é algo completamente desconhecido, puramente exótico ou mítico, não tão concreto como para um leitor brasileiro, que tem uma certa idéia dessa cultura e dessa realidade social mesmo que ele não conheça o Sertão. O senhor teve antes disso algum contato com a obra rosiana? Em que idioma? O senhor se recorda de quais teriam sido suas primeiras impressões como leitor de Guimarães Rosa? Como você imagina, conhecia já antes a maior parte da obra de Guimarães Rosa, principalmente Primeiras estórias e Grande sertão: veredas. Para mim, é um dos mais impressionantes autores da literatura brasileira do século XX, mas, além disso, ele é também para mim um dos autores preferidos não somente por sua qualidade literária, senão também por tratar da região do Sertão, que é para mim (junto com a Bahia) a região mais querida no Brasil. Contudo, jamais pensei em traduzir sua obra e jamais teria me atrevido a propor isso. A perspectiva de que fosse um trabalho em conjunto com Meyer-Clason, um trabalho no qual eu poderia aproveitar das experiências dele, foi o único motivo para aceitar essa oferta. O trabalho da tradução me aproximou ainda mais a Guimarães Rosa, contudo não descobri um Guimarães novo, desconhecido, nesse trabalho de tradução. Mas, de toda maneira, os textos dele resistiam, quero dizer, não perderam nesse trabalho muito esgotador de buscar um equivalente em alemão, que fosse fiel o mais possível ao original sem perder muito da sua força literária. O que significou, para o senhor, traduzir/colaborar na tradução desse autor? Acho que tudo foi dito. Foi uma experiência ambígua, no sentido de que foi a minha primeira experiência de uma tradução paga (tinha traduzido textos literários para os meus alunos, para as aulas de literatura), a primeira experiência de uma tradução tão longa. Nesse sentido, foi uma experiência positiva. A parte negativa foi a falta de comunicação com Meyer-Clason. O resultado foi nessas condições satisfatório, também uma parte positiva da experiência, embora eu permaneça crítico; espero que um dia haja uma tradução realizada em melhores condições. Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007 229

Gilca Machado Seidinger Por outro lado, se comparo a tradução com traduções de grandes textos de autores alemães em outras línguas (Thomas Mann, Musil, Broch e outros) e vejo o que se vende no mercado, penso: com certeza esta tradução não é pior. Lamentavelmente as editoras não estão dispostas a investir muito no trabalho dos tradutores, e isso afeta com certeza a qualidade dos produtos. Para viver dos honorários de tradutor, os textos têm que ser traduzidos num mínimo de tempo. *** Agradecemos ao Professor Dr. Nitschack a valiosa contribuição que, com seu depoimento, ele presta aos estudos da obra de Guimarães Rosa e de sua difusão em língua alemã. E talvez caiba ainda, à guisa de conclusão, lembrar as palavras de Francis Aubert (2003, p.18), no prefácio à correspondência entre Guimarães Rosa e Meyer-Clason: [...] a tradução oferece-se, na realidade, como uma ferramenta privilegiada de crítica textual, descortinando e desvelando os mistérios não apenas da re-escrita que é, como, também, da escrita original que tomou como seu ponto de partida. Entretanto, essa nova dimensão interpretativa termina, na maior parte dos casos, por ficar restrita ao espaço de recepção da tradução graças à mesma barreira que motivou a tradução: Em vez de superar Babel, o percurso sem retorno a amplia, a aprofunda, aparentemente sem remissão. (AUBERT, 2003, p.19). Com efeito, poucas são as oportunidades de se reverter esse percurso. Voltarmos os olhos para as questões envolvidas no processo tradutório de uma obra como a de Guimarães Rosa e aos produtos de tal processo, dar ouvidos àqueles que nele se envolveram, pode trazer à luz aspectos antes inimaginados por nós, os que nos encontramos do lado de cá dessa barreira. Parece-nos ainda que a notória atenção que o autor dispensou a esse aspecto de sua obra tece, de alguma maneira, relações com seu projeto de um regionalismo transnacional (FANTINI, 2003). Ao exigir do tradutor um posicionamento, uma tomada de decisão, uma escolha, o discurso narrativo atualiza em grau talvez ainda mais acentuado do que para o leitor monolíngüe aspectos como o imbricamento, a superposição, a diglossia, o confronto, a transculturação, as conversações, a transição e a interatividade, a heterogeneidade cultural, enfim, presente em cada uma das páginas dessa incomparável criação. Referências AUBERT, F. Prefácio. In: BUSSOLOTTI, M. A. F. M. (Org.). João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: ABL; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. páginas parciais? 230 Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007

BUSSOLOTTI, M. A. F. M. (Org.). João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: ABL; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. FANTINI, M. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. Cotia: Ateliê; São Paulo: SENAC, 2003. ROSA, J. G. Tutaméia. Colônia: Kiepenheuer & Witsch, 1994. Itinerários, Araraquara, n. 25, 225-231, 2007 231