MATÉRIA DA CAPA Uso racional de antibióticos em fazendas leiteiras Texto: Flávia Fontes Ilustrações: Flávia Tonelli Ao longo da história, as doenças infecciosas têm sido uma grande ameaça à saúde humana e animal. Assim, a descoberta de agentes antimicrobianos revolucionou a medicina, por reduzir de maneira substancial a taxa de mortalidade das doenças bacterianas. Segundo as definições mais aceitas, antibiótico (do grego anti=contra e bio=vida) é o nome genérico dado aos fármacos que têm capacidade de interagir com bactérias que causam infecções, matando-as (bactericida) ou inibindo seu metabolismo e/ou sua reprodução (bacteriostático), e permitindo ao sistema imunológico combatê-las com maior eficácia. O primeiro antibiótico descoberto foi a penicilina, em 1928. Alexander Fleming, médico microbiologista do St. Mary s Hospital, de Londres, já vinha há algum tempo estudando substâncias capazes de matar ou impedir o crescimento de bactérias nas feridas infectadas, pesquisa justificada pela experiência adquirida na Primeira Grande Guerra (1914-1918), na qual muitos combatentes morreram em consequência da falta de um tratamento adequado para as infecções decorrentes de ferimentos. A descoberta de Fleming não despertou inicialmente maior interesse em utilizá-la para fins terapêuticos, até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Nesse ano, foram ampliadas as 20 REVISTA LEITE INTEGRAL dezembro de 2013
pesquisas a respeito da penicilina, e sua subsequente produção em escala industrial e utilização para o tratamento de feridos de guerra introduziu a era moderna dos antibióticos. Desde 1940, muitos outros antibióticos têm sido isolados e identificados. Para ser um agente antimicrobiano ideal, um antibiótico deve ser capaz de destruir ou inibir um grande número de diferentes espécies de bactérias patogênicas, evitar o desenvolvimento de formas resistentes, não produzir efeitos colaterais indesejáveis no paciente, não eliminar os microorganismos da flora normal e ser solúvel nos fluidos corporais. Cada tipo de antibiótico está associado a um espectro particular de atividade, que descreve o número de diferentes espécies de microrganismos que são sensíveis ao mesmo. Os antibióticos de amplo espectro são aqueles ativos contra várias espécies de bactérias, enquanto que os de baixo espectro são ativos em poucas espécies. A utilização de antibióticos na medicina veterinária iniciou-se há mais de 50 anos, e hoje estima-se que mais de 50% de todos os antimicrobianos produzidos no mundo seja utilizada em animais. Sistemas modernos de produção de leite propiciam maior controle de doenças, devido ao emprego de melhores práticas higiênicas e de manejo, mas têm tornado os animais mais vulneráveis aos agentes infecciosos, em função da elevada densidade populacional e de condições estressantes. Os principais antibióticos utilizados na pecuária leiteira são de uso injetável, oral, tópico ou intra-mamário. Destacam-se ainda os ionóforos (monensina e lasolacida), que são antibióticos utilizados como aditivos alimentares, e agem alterando os produtos finais da fermentação no rúmen, com redução na produção de metano e na proporção de acetato e butirato, e aumento de propionato, com conseqüente melhoria da eficiência alimentar. Os ionóforos são utilizados também para a prevenção de coccidiose em bezerras e novilhas. O uso intempestivo ou sem critérios dos antibióticos pode dificultar o diagnóstico de algumas doenças, retardar o tratamento correto e favorecer o surgimento de bactérias resistentes. A utilização de antibióticos na medicina veterinária iniciou-se há mais de 50 anos, e hoje estima-se que mais de 50% de todos os antimicrobianos produzidos no mundo seja utilizada em animais. dezembro de 2013 REVISTA LEITE INTEGRAL 21
MATÉRIA DA CAPA Uso racional de antibióticos em fazendas leiteiras O que é a resistência aos antibióticos? A exposição a agentes antimicrobianos seleciona bactérias resistentes e resulta em desvantagem ecológica de bactérias suscetíveis. Com isso, os antibióticos têm perdido progressivamente sua eficácia na terapia de várias infecções bacterianas. A emergência e a disseminação da resistência bacteriana, associadas com as dificuldades encontradas na descoberta de novos agentes antimicrobianos, têm resultado em maiores desafios para a medicina e graves problemas de saúde pública. A fim de minimizar o possível impacto do uso de antimicrobianos em animais sobre a saúde pública e animal, várias organizações internacionais, como a OMS, a OIE, a FAO e a Comissão da União Européia, têm enfatizado nos últimos anos a importância da utilização prudente e racional de antibióticos em animais, não só para salvaguardar a eficácia das drogas antimicrobianas em medicina veterinária mas, principalmente, para evitar o aparecimento e a disseminação de bactérias resistentes com potencial zoonótico (de causar doenças em humanos). Uso racional de antibióticos É de extrema importância que o uso de antimicrobianos não seja visto de forma isolada no controle das infecções. A melhor maneira de minimizar a necessidade e a utilização de antibióticos e, assim, auxiliar na contenção da resistência antimicrobiana, é por meio da prevenção das doenças. Prevenir é melhor do que remediar, não só em relação à resistência, mas também sob a perspectiva de bem-estar animal e, a longo prazo, sob um ponto de vista econômico, já que os antibióticos são a classe de medicamentos mais utilizada em fazendas leiteiras. O sucesso no controle das doenças depende de uma abordagem holística, abrangendo produção, manejo, nutrição, bem-estar dos animais e vacinação. Ou seja, planos de controle de infecção deverão ser implementados em todas as instalações e práticas de manejo. O uso empírico de antimicrobianos deve ser evitado ao máximo. Segundo o Prof. Elias Jorge Facury Filho, da Escola de Veterinária da UFMG, a utilização de antibióticos deverá ser realizada quando houver a necessidade de controlarmos uma doença infecciosa de origem bacteriana como, por exemplo, pneumonia, mastite, flegmão interdigital, anaplasmose, dentre outras. O ponto chave para indicação do antibiótico é o diagnóstico da doença, sua etiologia bacteriana e a intensidade das alterações causadas por esta infecção, afirma. Escolha do antibiótico No campo, por meio do exame clínico e de alguns exames complementares, pode-se chegar a diagnósticos bastante confiáveis, porém sem conclusão precisa do agente causador (etiologia). Para isso, é necessário coletar material e enviar para laboratório para realização de cultura e de antibiograma. De acordo com Facury, esta seria uma conduta ideal para a recomendação do antibiótico, porém, na maioria das vezes, não é possível a realização de tais exames, quer seja pela falta de laboratórios especializados ou pela necessidade de se iniciar o tratamento com urgência. Assim, trabalhamos com o conhecimento adquirido da literatura, onde podemos encontrar quais os agentes mais frequentes em cada enfermidade e escolher, a partir daí, o plano terapêutico. Ainda segundo Facury, a escolha do antibiótico deverá levar em consideração o tipo de bactéria envolvida e sua forma de ação (patogenia), os O ponto chave para indicação do antibiótico é o diagnóstico da doença, sua etiologia bacteriana e a intensidade das alterações causadas por esta infecção Prof. Elias Jorge Facury Filho, da Escola de Veterinária da UFMG 22 REVISTA LEITE INTEGRAL dezembro de 2013
tecidos e órgãos infectados, o estado geral do animal e sua condição imune, o tempo de duração do tratamento, o tempo e as vias de excreção da droga e seus efeitos colaterais, dentre outros aspectos, explica. É importante considerar que o antibiótico, dependendo de seu mecanismo de ação, terá basicamente dois resultados, ou vai diminuir a multiplicação bacteriana (bacteriostático) ou destruir boa parte das mesmas (bactericida). Dessa forma, caberá ao organismo do animal o controle efetivo da infecção e, principalmente, a recuperação de todos os processos metabólicos, das lesões causadas pelo agente infeccioso e a excreção de endo e exotoxinas bacterianas. Assim, além da antibioticoterapia, faz-se necessária a implementação de terapias de suporte para o animal como, por exemplo, a Os resíduos podem contribuir com o aumento da resistência aos antibióticos pelos microrganismos da nossa flora intestinal e causar reações alérgicas em algumas pessoas Augusto Cesar Lima, Pesquisador da Clínica do Leite, Esalq/USP correção dos distúrbios ácido básicos e hidroeletrolíticos e controle da inflamação, para garantir sua recuperação frente a uma infecção bacteriana, complementa Facury. Embora as medidas preventivas sejam a melhor forma de controle, as mastites são as doenças infecciosas que mais demandam a utilização de antibióticos em fazendas leiteiras. De acordo o Prof. Marcos Veiga dos Santos, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, o uso da antibioticoterapia no tratamento das mastites tem como objetivos o retorno da produção leiteira normal do animal, evitar a morte em casos agudos, prevenir a ocorrência de novas infecções no período seco, diminuir os danos causados ao tecido secretor mamário, assim como reduzir o risco de transmissão de agentes infecciosos para animais sadios. Segundo Veiga, o tratamento durante a lactação é recomendado de forma imediata para todos os casos clínicos, tão logo sejam identificados pelo teste da caneca de fundo preto. Outra situação na qual é recomendada a terapia durante a lactação é quando o rebanho tem alta prevalência de mastite subclínica causada por Streptococcus agalactiae, que é um agente altamente contagioso e leva a um aumento acentuado na contagem de células somáticas (CCS). O tratamento destes casos durante a lactação é justificado pela alta taxa de cura, que pode chegar a 95%. Para as demais infecções subclínicas, recomenda-se o tratamento no momento da secagem, com antibiótico específico para vacas secas, afirma. O que é período de carência e por que devemos nos preocupar com ele? Qualquer droga administrada a uma vaca em lactação vai para o seu sangue e passa do sangue para o leite, causando o aparecimento de resíduos. Vale ressaltar que esse processo ocorre para qualquer medicamento aplicado por qualquer via (oral, intramamária, intramuscular, subcutânea, uso tópico ou intravaginal). O período de carência é o intervalo de tempo compreendido entre a última aplicação do medicamento e a ausência de resíduos indesejáveis em produtos destinados ao consumo humano, como carne, leite e ovos, e depende do tipo de antibiótico usado, dose e via de aplicação. Esse período deve ser rigorosamente respeitado, de acordo com as informações presentes na bula do antibiótico. No caso específico da pecuária leiteira, o descumprimento do período de carência pode propiciar a presença de resíduos de antibióticos no leite. Por razões econômicas que inviabilizam longos períodos de descarte, certos antibióticos não são recomendados para vacas em lactação cujo leite se destina ao consumo humano. O uso de tais antimicrobianos, quando necessário por sensibilidade do patógeno envolvido, deve ser determinado por médicos veterinários, sendo recomendada a aplicação no momento da secagem da vaca, ou até a secagem prematura, em alguns casos. Segundo Augusto Cesar Lima, da Clínica do Leite, Esalq/USP, existem diversas preocupações com o consumo de leite com resíduos de antibió- dezembro de 2013 REVISTA LEITE INTEGRAL 23
MATÉRIA DA CAPA Uso racional de antibióticos em fazendas leiteiras tico, dentre estas, podemos destacar o temor da população em consumir produtos lácteos com contaminantes que possam lhes fazer mal. Os resíduos podem contribuir com o aumento da resistência aos antibióticos pelos microrganismos da nossa flora intestinal e causar reações alérgicas em algumas pessoas. Para a indústria, também existe um grande prejuízo ao receber ou processar leite com resíduos. As culturas lácteas utilizadas no processo de fabricação de iogurtes e queijos ou outros produtos fermentados são sensíveis aos resíduos de antibióticos, perdendo eficiência ou inibindo-as. A perda ou descarte total do leite contaminado, também é um prejuízo muito grande para a indústria, afirma. O tratamento das mastites é a principal causa da ocorrência de resíduos de antibióticos no leite, sendo responsável por 80 a 90% das ocorrências registradas nas indústrias Prof. Marcos Veiga dos Santos, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP Do ponto de vista legal, o leite não pode apresentar resíduos acima de um determinado limite, que pode causar problemas aos consumidores. Além disso, pensando na indústria, o resíduo pode interferir na produção de derivados como, por exemplo, iorgurtes Laerte Dagher Cassoli, pesquisador da Clínica do Leite, Esalq/USP Do ponto de vista legal, o leite não pode apresentar resíduos acima de um determinado limite, que pode causar problemas aos consumidores. Além disso, pensando na indústria, o residuo pode interferir na produção de derivados como, por exemplo, iorgurtes, explica Laerte Dagher Cassoli, pesquisador da Clínica do Leite, Esalq/ USP. A indústria tem à sua disposição vários testes de detecção de resíduos, e algumas delas repassam o prejuízo decorrente da presença de contaminantes para o produtor, quando este é identificado. Dependendo das regras da indústria, além de não receber pelo leite entregue, o produtor poderá ser responsabilizado por todo o leite contaminado. Em algumas situações, a contaminação de um dos compartimentos de um caminhão pode comprometer todo o leite transportado, gerando um enorme prejuízo financeiro e até o desligamento do produtor. O tratamento das mastites é a principal causa da presença de resíduos de antibióticos no leite, sendo responsável por 80 a 90% das ocorrências registradas nas indústrias, afirma o Prof. Marcos Veiga. Segundo ele, os principais erros cometidos em relação ao tratamento das mastites, que podem ocasionar o aparecimento de resíduos no leite, são: Não observância do período de carência do antibiótico, Erro na identificação dos animais tratados ou na anotação dos dados do tratamento, Uso de drogas em diferentes dosagens ou diferentes esquemas de tratamento para o qual o período de carência foi estabelecido, Descarte de leite apenas do quarto tratado, Vacas que têm partos antecipados e curtos períodos secos, já que os antibióticos para vacas secas têm maior período de carência, Uso de produtos de vacas secas para tratamento de vacas em lactação, Ordenha acidental de vacas secas, Erro durante a ordenha e mistura de leite com e sem resíduos. 24 REVISTA LEITE INTEGRAL dezembro de 2013
Erros cometidos em relação à utilização de antibióticos A resistência bacteriana, a presença de resíduos de antibióticos no leite e o desperdício de dinheiro são as principais consequências das falhas em relação à utilização de antibióticos. Segundo o Prof. Elias Facury, os erros mais comuns observados nas fazendas, são: Falta de diagnóstico da enfermidade a ser tratada: realiza-se tratamentos com antibióticos de enfermidades, muitas vezes, causadas por outros agentes, não sensíveis aos antibióticos, como vírus e parasitas, ou em momentos nos quais a enfermidade já está avançada e o problema não é mais a infecção, e sim as lesões deixadas pelo processo infeccioso. Falta de controle na venda dos antibióticos no comércio de produtos veterinários: a recomendação dos produtos nem sempre é realizada por técnicos, ficando a cargo de leigos treinados a partir de interesses comerciais. Falta de conhecimento da farmacodinâmica, com erros na escolha da via de aplicação, que afetam a manutenção de níveis sanguíneos adequados por determinados períodos. Animais com sistema imune comprometido devido a enfermidade avançada, doença do fígado gordo, pós parto, utilização de antiinflamatórios corticoides, desnutrição e outras situações. Diagnóstico e tratamento tardios. Erros nas dosagens: poucas fazendas realizam pesagem dos animais a serem medicados e observamos, na maioria das vezes, que os pesos são subestimados pelo pessoal das fazendas. Ausência da implementação de terapias de suporte para a recuperação das lesões e do equilíbrio orgânico do animal. Erros no tempo de duração dos tratamentos e utilização de seringas e agulhas sujas e contaminadas. Existem falhas inerentes ao comportamento da bactéria envolvida, como a formação de abscessos e localização intracelular, onde os antibióticos não alcançam níveis satisfatórios. dezembro de 2013 REVISTA LEITE INTEGRAL 25