CAPÍTULO 1 SÍNDROMA DE ASPERGER: INTRODUÇÃO Quem foi Asperger? Hans Asperger (1906-1980) viveu e trabalhou em Viena de Áustria. Licenciou-se em medicina e especializou-se em pediatria. O seu trabalho pô-lo em contacto com inúmeros jovens com dificuldades de integração social. Além de uma marcada dificuldade nas relações interpessoais, estes jovens demonstravam dificuldades na utilização social da linguagem, além de uma capacidade limitada para compreender e fazer uso de gestos e expressões faciais. Também eram evidentes os seus comportamentos estereotipados e repetitivos, acompanhados frequentemente de fixações anormais por certos objectos. Tendo reparado nas semelhanças de comportamento entre alguns destes jovens, Asperger (1944) escreveu e apresentou a sua comunicação intitulada Psicopatias Autistas na Infância, em que reconheceu a gravidade com que as dificuldades destes rapazes afectavam a sua vida quotidiana, o que, na sua opinião, tornava a vida dos pais um verdadeiro inferno e levava os educadores ao desespero. Também reconheceu as inúmeras características positivas dos rapazes como, por exemplo, um frequente elevado nível de pensamento independente, a par da sua capacidade para actividades especiais mas nunca subestimou o impacto da sua individualidade em terceiros, além de assinalar a sua vulnerabilidade a implicâncias e brigas. A comunicação de Asperger foi escrita em alemão no final da Segunda Guerra Mundial, pelo que teve uma audiência limitada. Só se tornou acessível ao público em geral no início dos anos 80 do século XX, quando foi traduzida para inglês pela primeira vez e referida por Lorna Wing no seu trabalho de investigação sobre o autismo e os seus condicionalismos. O
8 Compreender a Síndroma de Asperger termo Psicopatia autista era considerado demasiado negativo e foi sugerido Síndroma de Asperger como alternativa mais aceitável. O autismo e a síndroma de Asperger Ao mesmo tempo que Asperger realizava os seus trabalhos de investigação em Viena, o pedopsiquiatra Leo Kanner trabalhava em Boston, nos EUA, onde observou um conjunto de comportamentos semelhantes num grupo de crianças que passou a descrever como autistas utilizando o mesmo descritor que Asperger tinha utilizado para o seu grupo de pesquisa. Tanto Kanner como Asperger se referiram ao trabalho de Bleuler (1911) ao escolherem o termo autismo. No entanto, Bleuler utilizara este termo para descrever as crianças que se tinham afastado da participação no universo social. Kanner salientou que as crianças que descrevia nunca tinham participado nesse universo social, enquanto Asperger considerava que a cunhagem da palavra autismo era uma das brilhantes criações linguísticas e conceptuais da nomenclatura médica. Para Kanner, o autismo na primeira infância, sobre o qual escreveu na sua comunicação Perturbação Autista do Contacto Afectivo, 1943, tinha várias características que o definiam, incluindo: um profundo distanciamento autista; um desejo obsessivo de manter a sua rotina; uma boa capacidade de memorização; uma expressão inteligente e pensativa; mutismo ou linguagem sem verdadeira intenção de comunicação; uma sensibilidade excessiva aos estímulos; uma relação engenhosa com os objectos. Alguns investigadores posteriores, nomeadamente Lorna Wing (1981b e 1991), compararam as teorias de Asperger com as primeiras comunicações de Kanner e verificaram a existência de semelhanças significativas entre as crianças descritas por ambos. A diferença principal residia no facto de as crianças descritas por Asperger terem desenvolvido uma lin-
1. Síndroma de Asperger: introdução 9 guagem gramatical durante a infância embora essa linguagem não fosse utilizada para efeitos de comunicação interpessoal. As dificuldades essenciais do autismo e da síndroma de Asperger são as mesmas. A síndroma de Asperger implica uma manifestação mais subtil das dificuldades, o que não significa que seja uma forma ligeira de autismo tal como dizia o pai de uma criança, O meu filho não tem uma forma ligeira de nada. A síndroma de Asperger afecta todos os aspectos da vida de uma criança e pode constituir um enorme transtorno para toda a família. Existe uma opinião generalizada de que a síndroma de Asperger deve ser considerada uma subcategoria do autismo uma parte do espectro global, mas com traços distintivos suficientes para garantir um rótulo próprio. Esta opinião é útil para efeitos pedagógicos, dada a aceitação geral de que as abordagens em termos da intervenção e do tratamento das crianças no espectro do autismo partilham a mesma base. O termo síndroma de Asperger é útil para explicar aos pais e educadores a origem dos inúmeros problemas com que se deparam com uma criança capaz do ponto de vista intelectual, mas que sofre de dificuldades sociais significativas. Enquanto a comunicação de Asperger permanecia desconhecida, as observações de Kanner sobre a natureza do autismo eram objecto de debates acesos e de investigação posterior intensa. Lorna Wing e Judith Gould (1979) levaram a cabo um estudo epidemiológico exaustivo no bairro londrino de Camberwell. Concluíram que as dificuldades características do autismo poderiam ser descritas como uma Tríade de Limitações. Realçaram a natureza fundamentalmente social das três áreas de dificuldade associadas: limitação da interacção social; limitação da comunicação social; limitação da imaginação social, do pensamento flexível e do jogo simbólico. A tríade de limitações do autismo
10 Compreender a Síndroma de Asperger Wing e Gould assinalaram que muitas crianças não correspondiam exactamente à descrição de Kanner do autismo na primeira infância, mas, mesmo assim, tinham dificuldades significativas nas áreas da tríade. Isto fez com que Wing (1981a) utilizasse o termo Continuum autista e, mais tarde, (Wing 1996) Espectro autista, permitindo uma definição mais lata de autismo com base nesta tríade. Critérios de diagnóstico Existe a aceitação de que o autismo se caracteriza pela coocorrência de limitações na interacção social, na comunicação social e na imaginação social e é nesta tríade que assentam os critérios de diagnóstico consensuais. Em 1981, em resultado da análise da comunicação original de Asperger, Lorna Wing (1981a) enumerou os seguintes critérios para a síndroma de Asperger: limitação da interacção social bidireccional e inaptidão social generalizada; linguagem peculiar e pedante, de conteúdo estereotipado, mas sem atrasos; capacidades limitadas de comunicação não verbal poucas expressões faciais ou gestos; resistência às mudanças e gosto por actividades repetitivas; interesses especiais circunscritos e boa capacidade de memorização; fraca coordenação motora, com aspecto e porte peculiares e alguns movimentos estereotipados. Enquanto Asperger defendeu que a linguagem era adquirida na idade normal, Wing discordou dessa teoria. Com base na sua experiência, Wing chegou à conclusão de que metade da população que considerava portadora da síndroma de Asperger não tinha desenvolvido a linguagem na idade normal. De uma maneira geral, os critérios desenvolvidos por Christopher Gillberg (1989) foram idênticos. Actualmente, são utilizados pelos clínicos dois instrumentos de diagnóstico principais o Manual de Diagnóstico e Estatísticas das Perturbações Mentais, 4 ạ edição (DSM IV, Associação Psiquiátrica Americana, 1994) e a Classificação
1. Síndroma de Asperger: introdução 11 Internacional das Doenças, 10ª edição (ICD10, Organização Mundial de Saúde, 1992) consulte o apêndice. Ambos os sistemas baseiam os seus critérios de diagnóstico da síndroma de Asperger nas três limitações fundamentais enumeradas na tríade. Tal como Asperger, não consideram o atraso da linguagem inicial, nem incluem as dificuldades de coordenação motora como características de diagnóstico. Em 1993, Stefan Ehiers e Christopher Gillberg publicaram os resultados da investigação que procurou estabelecer a prevalência da síndroma de Asperger. Foi realizada em Gotemburgo, na Suécia, e envolveu o estudo de crianças em estabelecimentos de ensino regular. Dos números identificados como portadores da síndroma de Asperger, calcularam um taxa de prevalência de 36 por 10.000, com base em critérios que permitiam a presença de algum atraso na linguagem inicial. Todos os estudos de prevalência indicaram que é muito maior a probabilidade de incidência nos rapazes do que nas raparigas. O próprio Asperger tinha concluído que poderia ser uma dificuldade exclusivamente masculina. Gillberg (1991) sugere que a relação entre rapazes e raparigas se situa na ordem dos 10:1. Número de crianças com síndroma de Asperger Até à data, desconhece-se a causa da síndroma de Asperger. É pouco provável que seja apenas uma causa, mas sim um conjunto de factores de desencadeamento, sendo que qualquer um deles, registado num determinado momento e numa dada sequência de circunstâncias, pode dar origem à síndroma de Asperger. Causas Figura 1.1 Factores que podem desencadear perturbações no espectro do autismo Biológica Gravidez/Parto Neuroquímica Neurológica Disfunção Cerebral Espectro do Autismo
12 Compreender a Síndroma de Asperger Asperger pensava que esta condição era provavelmente transmitida por via genética, descrevendo-a como uma limitação da personalidade herdada. Ainda que a teoria actual seja que a síndroma de Asperger não é herdada directamente, a investigação continuada considera a possibilidade de alguma carga genética. Hoje em dia, a síndroma de Asperger é descrita como uma disfunção cerebral e os investigadores procuram apontar uma ou mais áreas do cérebro em que esta disfunção ocorre. Com os avanços da tecnologia, talvez seja possível concretizar melhor esta ideia. Em resumo: A síndroma de Asperger é uma condição que se pensa estar enquadrada no espectro do autismo com traços distintivos suficientes para garantir um rótulo próprio. Foi descrita pela primeira vez em 1944 pelo médico austríaco Hans Asperger, cujo trabalho foi publicado pela primeira vez em inglês em 1991. Caracteriza-se por limitações subtis nas três áreas de desenvolvimento: comunicação social, interacção social e imaginação social. Em certos casos, também se registam problemas adicionais de organização e coordenação motora. Afecta pessoas de inteligência média e acima da média. Pensa-se que a prevalência se situe na ordem de 36 por 10.000. A probabilidade de incidência é maior nos rapazes do que nas raparigas, com uma taxa de probabilidade de 10 rapazes para 1 rapariga.