SEPSE PRIMÁRIA, RELACIONADA AO CATETER VENOSO CENTRAL

Documentos relacionados
ROTINA DE PREVENÇÃO DE INFECÇÃO DE TRATO VASCULAR

INFECÇÕES RELACIONADAS A CATETERES VASCULARES

SEPSE NEONATAL. Acadêmicos do Curso de Biomedicina na Faculdade de Saúde, Ciências Humanas e

Introdução RESUMO. 92 N. 2, Novembro/2011 CCIH, 2 UTI, 3 CTI

Cateter Venoso Farmacológico e Contaminação Microbiana. Dra. Cristhieni Rodrigues

PRINCIPAIS INFECÇÕES RELACIONADAS À ASSISTÊNCIA À SAÚDE

Prevenção de Infecção de Corrente Sanguínea: o que há de novo? Vera Lúcia Borrasca Coord. Segurança Assistencial Hospital Sírio Libanês

LEVANTAMENTO EPIDEMIOLÓGICO DE INFECÇÃO POR ACINETOBACTER SPP EM AMOSTRAS DE HEMOCULTURAS DE UM LABORATÓRIO DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS

10 ANOS DE VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA DA INFEÇÃO NOSOCOMIAL DA CORRENTE SANGUÍNEA ADRIANA RIBEIRO LUIS MIRANDA MARTA SILVA

Infecções causadas por microrganismos multi-resistentes: medidas de prevenção e controle.

Controvérsias: FIM da vigilância para MRSA, VRE, ESBL

Dr. Ricardo Paul Kosop. Médico Infectologista Prof. Clínica Médica Universidade Positivo Preceptor Residência Médica em Infectologia HNSG

O problema das resistências aos antimicrobianos em Portugal: causas e soluções

Monitorização Epidemiológica numa Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais

Quando Suspender as Precauções?

PALAVRAS-CHAVE: Staphylococcus coagulase negativa. Infecção Hospitalar. Recém-nascidos. UTIN.

ESPAÇO ABERTO / FORUM

Terapia Nutricional Parenteral

ENFERMAGEM BIOSSEGURANÇA. Parte 4. Profª. Tatiane da Silva Campos

TÍTULO: PERFIL DE SENSIBILIDADE AOS ANTIMICROBIANOS DE BACTÉRIAS MULTIRRESISTENTES ENCONTRADAS EM UMA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA ONCOLÓGICA

Definição Sepsis 3.0 Sepse: Choque séptico:

ADESÃO DA EQUIPE DE SAÚDE A UM BUNDLE DE PREVENÇÃO DE INFECÇÃO ASSOCIADA E RELACIONADA AO CATETER VENOSO CENTRAL EM PEDIATRIA

PRISCILLA ROBERTA SILVA ROCHA

PREVENÇÃO DE INFECCÇÃO ASSOCIADA A CATETER VENOSO CENTRAL / CVC. Data Versão/Revisões Descrição Autor

VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA DAS INFEÇÕES NOSOCOMIAIS DA CORRENTE SANGUÍNEA

FUNDAMENTOS DA NUTRIÇÃO CLÍNICA E COLETA FUNDAMENTOS DA NUTRIÇÃO CLÍNICA E COLETIVA

Cateter Venoso Farmacológico e Contaminação Microbiana

PERFIL DAS INFECÇÕES DE SÍTIO CIRÚRGICO NUM HOSPITAL DE CURITIBA PROFILE OF SURGICAL SITE INFECTIONS IN A CURITIBA S HOSPITAL

PREVENÇÃO DE INFECÇÃO PRIMÁRIA DE CORRENTE SANGUÍNEA - IPCS

IDENTIFICAÇÃO E SUSCEPTIBILIDADE BACTERIANA DE UMA UNIDADE HOSPITALAR PÚBLICA

INFECÇÃO HOSPITALAR. InfecçãoHospitalar. Parte 2. Profª PolyAparecida

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA DEPARTAMENTO DE PARASITOLOGIA, MICROBIOLOGIA E IMUNOLOGIA. Antibioticos e resistência bacteriana a drogas

TÍTULO: COMPLICAÇÕES RELACIONADAS AO CATETER DE HICKMAN EM PACIENTES SUBMETIDOS AO TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA (TMO)

ANÁLISE MICROBIOLÓGICA EM UNIDADES DE SAÚDE

Infecções por microrganismos multirresistentes Hospital / Comunidade José Artur Paiva

UNIVERSIDADE FEDERAL DO TRIÂNGULO MINEIRO COMISSÃO DE CONTROLE DE INFECÇÃO HOSPITALAR PREVENÇÃO DAS INFECÇÕES ASSOCIADAS A CATETER INTRAVASCULAR

USO RACIONAL DE ANTIBIÓTICOS EM GERMES MULTIRRESISTENTES

Coordenação de Controle de Infecção Hospitalar Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro

MANUAIS ISGH PREVENÇÃO DE INFECÇÃO PRIMÁRIA DE CORRENTE SANGUÍNEA IPCS

COMPARAÇÃO DE AGENTES INFECCIOSOS DO TRATO URINÁRIO DE PACIENTES AMBULATORIAIS VERSUS PACIENTES HOSPITALIZADOS

INSTITUIÇÃO: CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS

Enfª Adenilde Andrade SCIH A C Camargo Câncer Center

PNEUMONIA ASSOCIADA A VENTILAÇÃO MECÂNICA (PAV)

Cultura microbiológica do leite na fazenda: uma nova ferramenta para o diagnóstico de mastite

Os Antibióticos - Profilaxia e Terapêutica das IACS

INFECÇÃO DA CORRENTE SANGUÍNEA RELACIONDO AO USO DE CATETER VENOSO CENTRAL

Imagem da Semana: Fotografia

Sinais flogísticos e colonização bacteriana em pacientes com cateterização venosa central

SEPSE NEONATAL: FATORES DE RISCO ASSOCIADOS1

DIAGNÓSTICO DAS INFECÇÕES RELACIONADAS AOS CATETERES VASCULARES CENTRAIS NO HIAE

Hospital São Paulo SPDM Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina Hospital Universitário da UNIFESP Sistema de Gestão da Qualidade

PALAVRAS-CHAVE: Klebsilella. Enzima KPC. Superbactéria KCP.

Diferença de tempo de positividade: método útil no diagnóstico de infecção de corrente sanguínea relacionada com cateter?

Histórias de Sucesso no Controle da Infecção Hospitalar. Utilização da informática no controle da pneumonia hospitalar

2. Aplicabilidade: Coletadores, técnicos, bioquímicos, biomédicos, técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos

INCIDÊNCIA DE INFECÇÕES HOSPITALARES EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA ADULTO DE UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DURANTE O SEGUNDO SEMESTRE DE 2010.

Porque devemos nos preocupar com indicadores associados a cateteres intravasculares periféricos

Prevenção e controlo de infeção e de resistências a antimicrobianos

Pneumonia Comunitária no Adulto Atualização Terapêutica

Definição de Germicida

Exame Bacteriológico Indicação e Interpretação

Drenos e Cateteres. Profª. Ms. Camila Lima

PNEUMONIA ASSOCIADA À VENTILAÇÃO MECÂNICA PAV IMPORTÂNCIA, PREVENÇÃO CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS E NOTIFICAÇÃO

CLASSIFICAÇÃO DAS INFECÇÕES DE SÍTIO CIRÚRGICO (ISC)¹ MANUAL DA CCIH. POP nº 10. Versão: 01

COLETA DE SANGUE PARA HEMOCULTURA

PNEUMONIA ASSOCIADA À VENTILAÇÃO MECÂNICA PAV IMPORTÂNCIA, PREVENÇÃO CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS E NOTIFICAÇÃO

INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER/ INCA/ RJ

Visita Religiosa com Segurança no Ambiente Hospitalar: Considerações e Orientações. Karina Laquini Lima Enfermeira SCIH / SCMCI

Relatório da VE-INCS PROGRAMA DE VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA INFEÇÕES NOSOCOMIAIS DA CORRENTE SANGUÍNEA RELATÓRIO DADOS DE 2013

TÍTULO: CUIDADOS DE ENFERMAGEM NA PREVENÇÃO DE COMPLICAÇÕES COM PICC INSTITUIÇÃO: CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS

Evolução de Resistências e Carta microbiológica 2018

AVALIAÇÃO DA ADESÃO ÀS MEDIDAS DE PREVENÇÃO DE INFECÇÃO RELACIONADAS A CATETERES ENTRE PROFISSIONAIS DE SAUDE DE HOSPITAIS DE MARINGÁ PR

Bacteremia Cero com Tecnología

Sepse Professor Neto Paixão

ACESSO VENOSO CENTRAL DE LONGA DURAÇÃO. EXPERIÊNCIA COM 79 CATETERES EM 66 PACIENTES*

INCIDÊNCIA DE INFECÇÕES PRIMÁRIAS NA CORRENTE SANGUÍNEA EM UMA UTI NEONATAL

COLONIZAÇÃO BACTERIANA NA CAVIDADE BUCAL POR PATÓGENOS CAUSADORES DA PNEUMONIA ASSOCIADA À

CULTURAS DE PONTAS DE CATETERES RETIRADOS DE RECÉM-NASCIDOS NA MATERNIDADE ODETE VALADARES BELO HORIZONTE

INDICADORES DE RESULTADOS

BerbereX. Reduzir infecções pós-cirúrgicas

Curso de Urgências e Emergências Ginecológicas ABORDAGEM INICIAL DO CHOQUE SÉPTICO

LABORATÓRIO DE MICROBIOLOGIA PREVENÇÃO CONTROLO. Infecções Associadas aos Cuidados de saúde. Graça Ribeiro 2013

Infect Control 1983; 4:

Infecções por Gram Positivos multirresistentes em Pediatria

CUIDADOS COM CATETERES E SONDAS

Terapia Nutricional Parenteral P R O F ª N A Y A R A S O A R E S - N U T R I C I O N I S T A

I CURSO DE CONDUTAS MÉDICAS NAS INTERCORRÊNCIAS EM PACIENTES INTERNADOS

PROTOCOLO OPERACIONAL PADRÃO

ESTUDO DE IMPACTO DOS PROTOCOLOS DA ODONTOLOGIA HOSPITALAR SOBRE AS CAUSAS DE ALTAS DAS INTERNAÇÕES DAS UTI s DO HOSPITAL REGIONAL DE ARAGUAINA TO.

Hospital São Paulo SPDM Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina Hospital Universitário da UNIFESP Sistema de Gestão da Qualidade

Mastite Bovina. Luciano Bastos Lopes Doutor em Ciência Animal

RESISTÊNCIA A ANTIMICROBIANOS DE CEPAS DE Sthapylococcus aureus ISOLADAS DA UTI DE UM HOSPITAL DE CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM ES

Complicação severa das feridas oculares abertas % de todos os casos de endoftalmites infecciosas

PROTOCOLO DE TRATAMENTO ANTIMICROBIANO EMPÍRICO PARA INFECÇÕES COMUNITÁRIAS, HOSPITALARES E SEPSE

ACESSO VENOSO CENTRAL

O Problema da Doença Pneumocócica na América Latina

EPIDEMIOLOGIA, PREDITORES CLÍNICOS E MICROBIOLÓGICOS DA PNEUMONIA ASSOCIADA À VENTILAÇÃO MECÂNICA: revisão integrativa com IRAMUTEQ

Prevenção da infeção da corrente sanguínea associada a cateter venoso central

Indicações para Tipos de Nutrição Clínica

SEPSE NEONATAL. Renato S Procianoy Prof Titular de Pediatria, UFRGS Editor Jornal de Pediatria

Transcrição:

Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: MEDICINA INTENSIVA: I. INFECÇÃO E CHOQUE 31: 363-368, jul./set. 1998 Capítulo III SEPSE PRIMÁRIA, RELACIONADA AO CATETER VENOSO CENTRAL CENTRAL VENOUS CATHETER-RELATED SEPSIS Anibal Basile-Filho 1, Paulo de Tarso Oliveira e Castro 2, Gerson Alves Pereira Júnior 3, Flávio Marson 3, Lauro Mattar Jr. 3 & João Carlos da Costa 4 1 Docente e Chefe da Disciplina de Terapia Intensiva do Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia; 2 Médico Assistente da Disciplina de Moléstias Infecciosas do Departamento de Clínica Médica; 3 Médicos Intensivistas da UTI da Unidade de Emergência; 4 Presidente da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH). Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. CORRESPONDÊNCIA: Anibal Basile-Filho Disciplina de Terapia Intensiva Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia da FMRP-USP Hospital das Clínicas - 9 o Andar - Campus Universitário USP CEP:14048-900 - Ribeirão Preto - SP, Fone (016) 633-0836 ou 602-2593 Email: abasile@.fmrp.usp.br BASILE-FILHO A et al. Sepse primária, relacionada ao cateter venoso central. Medicina, Ribeirão Preto, 31: 363-368, jul./set. 1998. RESUMO: Desde a descrição inicial do primeiro cateterismo venoso da veia subclávia, efetuada por Aubaniac, em 1952, e especialmente com a explosão de seu uso após o advento da nutrição parenteral, descrita por Dudrick et al., em 1968, várias complicações têm sido descritas, causadas pelo cateterismo venoso, central, percutâneo. Dentre as mais variadas complicações atribuídas a esta técnica, uma das mais importantes é, sem dúvida, a sepse primária, relacionada ao cateter venoso central, devido ao aumento considerável da morbimortalidade do paciente crítico. No entanto, algumas vezes, torna-se complicado efetuar o diagnóstico de sepse primária, relacionada ao cateter venoso central. A razão disso é a dificuldade na diferenciação entre os cateteres que estão realmente causando infecção e aqueles que estão apenas colonizados, mostrando apenas uma cultura positiva. O principal objetivo deste trabalho é apresentar uma revisão atualizada dos principais critérios diagnósticos, clínicos e microbiológicos de sepse primária, relacionada ao cateter venoso central. UNITERMOS: Sepse. Cateterismo Venoso Central. 1. INTRODUÇÃO O primeiro cateterismo venoso central, por punção percutânea, foi realizado em 1952, por Aubaniac (1). A incorporação deste procedimento ao arsenal terapêutico deveu-se à necessidade de infundir-se, em alguns pacientes, grandes quantidades de líquidos, num curto espaço de tempo. Contudo, a propagação desta técnica deu-se apenas na década de setenta (70), após o impacto causado pela introdução do suporte nutricional por Dudrick et al. (2). Atualmente, os cateteres venosos centrais são utilizados com múltiplos propósitos, tornando-se, então, prática rotineira de qualquer hospital. Embora a relação risco/benefício seja, em geral, satisfatória, uma variedade extensa de complicações tem sido relacionada ao seu uso. Dentre essas complicações, a que merece maior destaque, pela gravidade, é a sepse primária, relacionada ao cateter. Uma vasta experiência clínica foi acumulada nestes últimos anos, e os elementos básicos do diagnóstico, da incidência, da microbiologia e os possíveis métodos de prevenção estão devidamente esclarecidos e serão abordados neste texto. 363

A Basile Filho et al. 2. DEFINIÇÃO E DIAGNÓSTICO Um terço de todas as bacteriemias intra-hospitalares são decorrentes da administração de soluções parenterais. Essas bacteriemias são resultantes da contaminação de soluções ou das próteses de acesso venoso. Os cateteres venosos centrais (CVC) podem contaminar-se pela invasão direta de microrganismos, existentes na pele e no local de penetração do cateter, por sua contaminação endógena, a partir de bacteriemias oriundas de infecções à distância e pela contaminação através de manipulações inadequadas da solução a ser infundida e de suas conexões (3,4). Nem sempre é fácil diagnosticar a sepse primária, relacionada ao cateter venoso central. A maioria dos pacientes que necessita de cateterismo venoso central apresenta condições gerais precárias, associadas a episódios freqüentes de bacteriemias, provenientes de outro local. Assim, por exemplo, o desenvolvimento de abcessos intra-abdominais, múltiplos ou infecção pulmonar, no pós-operatório de pacientes críticos, submetidos a relaparotomias por condições variadas, complicam, ainda mais, o quadro clínico de base (5). Os sinais de infecção no local de penetração e do túnel subcutâneo, formado pela passagem do CVC, são caracterizados pelo desenvolvimento de eritema, enduração e secreção purulenta, podendo ser evidenciados durante o exame físico do paciente ou detectados pelo pessoal de enfermagem, durante a troca de curativo do CVC. A coloração pelo Gram e a cultura dos exsudatos purulentos podem auxiliar no diagnóstico dessas infecções. No entanto, o desenvolvimento de nódulos ao longo do túnel subcutâneo do CVC não significa, necessariamente, infecção, pois podem tratar-se de nódulos metastáticos de vários tipos de tumor, por exemplo (6). De um modo geral, a sepse primária relacionada ao cateter caracteriza-se por uma febre contínua, entre 38,5 e 39 o C, calafrios, distúrbios de consciência, oligúria, diminuição da perfusão periférica, leucocitose com acentuado desvio à esquerda, intolerância à glicose, acidose metabólica compensada e elevação insidiosa da uréia e da creatinina plasmática, sem outro foco de infecção evidente. Esses sinais podem desaparecer em vinte e quatro (24) a quarenta e oito (48) horas, após a remoção do cateter. O inconveniente dessa situação é o grande número de cateteres retirados sob suspeita de estarem causando sepse e que, posteriormente, mostraram-se estéreis ou apenas colonizados. Além da sintomatologia que deve estar sempre presente diante da suspeita de sepse primária, relacionada ao cateter, o estudo bacteriológico qualitativo e semi quantitativo deve sustentar o diagnóstico. O critério qualitativo baseia-se no isolamento do microorganismo na cultura da ponta do cateter, no sangue periférico e no sangue coletado através do cateter; enquanto que o método de cultura bacteriológica semiquantitativa tem-se mostrado muito mais sensível. Um número superior a quinze (15) colônias, na placa semeada pela ponta do cateter, confirmará o diagnóstico, pois este resultado tem uma especificidade maior do que 85% em identificar o microorganismo causador de sepse relacionada ao CVC, sobretudo se existir uma hemocultura positiva para o mesmo germe (7,8). Dessa maneira, uma relação de colônias de bactérias superior a 10:1 (CVC/sangue periférico) é indicativa de sepse relacionada ao CVC. Os critérios diagnósticos de sepse primária, relacionada ao cateter venoso central podem ser vistos na Tabela I (9). Parece ser pouco relevante apenas um resultado positivo na cultura da ponta do cateter ou do sangue periférico, sem a presença de sinais clínicos de sepse, pois é necessário ressaltar que o número de cateteres colonizados é de cinco (5) a sete (7) vezes superior àqueles que produzem sepse (10). Tabela I Critérios diagnósticos de sepse primária, causada por cateter venoso central (9) Critérios Definitivos 1. Hemoculturas positivas ( 2) em amostras de sangue, colhidas através do cateter e no sangue periférico e a presença do mesmo microorganismo na cultura da ponta do cateter pelo método semiquantitativo, após sua remoção. 2. Cultura semiquantitativa de microorganismos, colhidos em amostras de sangue pelo cateter, dez(10) vezes superior que no sangue periférico 3. Infecção na pele, no local de penetração do cateter, provocado pelo mesmo microorganismo isolado na hemocultura. 4. Hemoculturas positivas( 2) em pacientes portadores de cateter venoso central, sem outro foco infeccioso evidente. Critérios Prováveis 1. Uma hemocultura positiva e sinais de sepse, sem foco infeccioso aparente. 2. Hemocultura positiva ou negativa, com o desaparecimento dos sinais de sepse, depois da remoção do cateter suspeito. 364

Sepse primária relacionada ao cateter venoso central 3. INCIDÊNCIA E MICROBIOLOGIA É muito difícil de calcular-se, com precisão, a incidência de sepse primária, relacionada ao cateter, em virtude da grande variedade de casuísticas, apresentada pelos diversos autores. No entanto, de maneira geral, é referido que uma média de 17% dos pacientes portadores de CVC apresentam sinais de sepse. A enorme variação, de 9 a 59%, encontrada na literatura, deve ser atribuída às diferentes populações de pacientes estudados e à pluralidade de indicações de cateterismo venoso central. Ao se avaliar o risco de infecção por cateter, baseado num grande número de episódios de infecção, causados pelo tipo de cateter utilizado, foi verificado que cateteres de Hickman, Broviac e Mediport apresentam uma incidência de infecção menor do que os cateteres do tipo Intracath, Swan-Ganz e Cordis (11). Além disso, o risco de infecção associada ao CVC, em cateteres de duas (2) vias, é comparável ao do cateter de uma via (12). O local de inserção do cateter tem sido, de longe, a porta de entrada mais comum dos agentes infecciosos (13). A contaminação do cateter venoso central, por infusões ou de origem hematogênica corresponde a apenas 10 a 15% de todos os casos de sepse relacionada ao uso do CVC (10). Certos microorganismos são mais prevalentes na sepse primária, relacionada ao cateter, como pode ser notado na Tabela II. O intensivista deve ficar alerta para o diagnóstico de sepse primária, relacionada ao CVC, no caso de ser evidenciada uma hemocultura positiva para uma dessas bactérias ou fungos, na presença de sinais clínicos clássicos de sepse e na ausência de foco infeccioso evidente, em outro local. Os Staphylococcus sp são os microorganismos mais freqüentemente isolados nas culturas (45%), com maior destaque para os germes do tipo coagulasenegativo (Staphylococcus epidermidis). O S. epidermidis, saprófita da pele, é, geralmente, incriminado como sendo um germe contaminante das hemoculturas. Porém, um número significativo de casos documentados provou que este microorganismo pode ser patogênico (14). As culturas semiquantitativas podem distinguir as amostras contaminadas daquelas infectadas. A contaminação do cateter por microorganismos, geralmente, é devida aos depósitos de fibrina e fibronectina intra ou extraluminal do CVC (15). A aderência do germe ao cateter é o primeiro passo, sendo que o S. aureus possui características de aderência particularmente interessantes. A superfície do S. aureus é impregnada de adesinas, que são moléculas coletivamente denominadas de MSCRAMMs ( microbial surface components which recognize extracellular matrix molecules ) (16,17). Outras bactérias gram-positivas, isoladas são os Streptococcus sp, Corynebacterium e o Enterococcus sp. Os bacilos gram-negativos (E. coli, Klebsiella pneumoniae, Pseudomonas sp, Enterobacteriaceae, Acinetobacter) correspondem a 30 % dos casos, enquanto que os fungos são responsáveis por 5 % dos episódios infecciosos. Pacientes com infecção do cateter por micobactéria apresentam, tipicamente, uma secreção purulenta, esverdeada, no local de penetração do CVC, mas, algumas vezes, podem apresentar apenas uma secreção serosanguinolenta. A infecção do CVC devida a bacilos gram-negativos ou positivos é muito rara, porém quando este tipo de microorganismo infecta pacientes imunodeprimidos, a mortalidade é muito alta. Portanto, a presença de uma colônia na cultura da ponta do cateter não deve ser completamente ignorada. A bacteriemia por Streptococcus bovis tem sido associada a neoplasias ocultas do trato gastrointestinal (6). Embora a Candida albicans represente, entre os fungos, a grande maioria dos casos de sepse primária, relacionada ao CVC, foram identificados fungos lipofílicos (Malassezia furfur) na hemocultura Tabela II - Microbiologia das infecções causadas por cateter venoso central (13) Microorganismo Cocos Gram-positivos (65%) - Staphylococcus epidermidis 31% - Staphylococcus aureus 14% - Enterococcus 3% - Streptococcus sp 6% - Corynebacterium sp 11% Bacilos Gram-negativos (30%) - Bacillus sp 3% - Pseudomonas sp 7% - Acinetobacter 3% - Enterobacter sp 4% - Klebsiella sp 4% - Escherichia coli 6% Outros gram-negativos 3% Fungos (5%) - Candida sp (5%) 365

A Basile Filho et al. de pacientes recebendo, via parenteral, emulsões lipídicas por um período prolongado (18). A infecção do CVC por Aspergillus sp não é comum, mas, em pacientes imunodeprimidos, pode ser fatal, se não tratada a tempo. 4. TRATAMENTO O tratamento apropriado da sepse primária, relacionada ao cateter venoso central depende do tipo de paciente envolvido, da severidade do processo infeccioso e da necessidade de ser mantida uma prótese de acesso venoso, central. O método mais clássico e seguro de tratamento da sepse primária é a retirada do cateter e a administração de antimicrobianos durante quatorze (14) a vinte e um (21) dias, dependendo dos sinais clínicos apresentados pelo paciente e do germe envolvido (11). Embora não existam, no Brasil, levantamentos do custo hospitalar da sepse primária, relacionada ao CVC, é estimado, nos EUA, que o gasto adicional com o paciente crítico, portador de infecção causada por CVC, pode chegar a US$ 6,000.00 (13). Este custo adicional pode chegar a US$ 12,500.00, por paciente, se a infecção for severa e causada por S. aureus (19). É obvio que a escolha do antibiótico mais apropriado será efetuda em função do antibiograma do germe isolado na hemocultura e na cultura semiquantitativa, da ponta do cateter, da gravidade dos sinais clínicos de sepse e das condições gerais do paciente. Assim, por exemplo, os temíveis Staphylococcus aureus, conhecidos como MRSA ( Methicillin- Resistant S. aureus ) têm aumentado sua incidência e somente respondem, ainda, à vancomicina e teicoplamina. Outros antibióticos novos, derivados das fluoronaftiridinas, potentes contra os S. aureus, mostraram-se muito eficazes, porém dependem da liberação pelos órgãos de saúde, competentes (20). Em situações nas quais um paciente com CVC tem febre, hemoculturas negativas e não tem origem aparente de infecção, por mais que se procure, o CVC tem sido freqüentemente incriminado de estar contaminado por um agente infeccioso, e a sua remoção pode ser justificada para documentar e curar a infecção relacionada ao CVC. Em geral, a antibioticoterapia dirigida e a remoção do cateter venoso central, infectado são eficazes no controle da sepse primária, relacionada ao CVC. Os principais critérios para remoção do CVC podem ser vistos na Tabela III. 5. PREVENÇÃO Existem várias maneiras de evitar-se a sepse primária, relacionada ao cateter venoso central. Assim, preconizam-se como medidas gerais: 1. utilização de técnicas estéreis durante a inserção do cateter; 2. médicos experientes devem seguir protocolos rígidos de inserção; 3. o cuidado na manutenção do cateter (como infusão de solução nutritiva, injeção de drogas no conector, tipo e qualidade do curativo); 4. evitar a utilização do cateter para múltiplos propósitos e conecções em Y excessivas; 5. atenção especial aos pacientes susceptíveis às infecções (grande queimado, politraumatizado, desnutrido grave, diabético, imunodeprimido, etc ). A infecção pelo cateter parece não estar relacionada a (12) : 1. número de dias de uso do CVC; 2. dias de granulocitopenia; 3. tipo de doença de base; 4. descontaminação seletiva do trato digestivo, pois o uso de antibioticoterapia profilática antes da inserção do CVC não reduz a incidência de infecções subseqüentes (6). A maior contra-indicação para colocação (ou recolocação) do CVC é a presença de episódios de bacteriemia. Febre, neutropenia e trombocitopenia, no momento da inserção do CVC, não são preditivos de subseqüentes complicações infecciosas, ou não infecciosas, relacionadas ao CVC. O número de complicações conhecidas no momento da inserção do CVC, incluindo pneumotórax, hemo ou hidrotórax, embolismo por ar, perfuração miocárdica e etc, pode ser Tabela III - Critérios para remoção de cateter venoso central (6,12) Critérios Definitivos 1. Sinais de infecção no local de penetração do cateter venoso central (CVC). 2. Recidiva de infeccão depois de uma antibioticoterapia adequada de pelo menos 14 dias de duração. 3. Infecção do túnel subcutâneo do CVC 4. Infecção do CVC por fungo. 5. Suspeita de trombose de veia central. 6. Bacteriemias de repetição de etiologia indeterminada. 366

Sepse primária relacionada ao cateter venoso central minimizado através da redução do número de tentativas requeridas para cada inserção do CVC. Além disso, os eventos potenciais, levando à sepse primária, relacionada ao CVC podem ser reduzidos ao mínimo, se um único cateter for mantido do início ao fim da terapia (21). Em pacientes com queimaduras graves, o ideal é usar uma área não queimada para a inserção do cateter. Entretanto, em pacientes com queimaduras envolvendo o pescoço, o peito, os braços e a região inguinal, o local de punção, sobre a pele queimada, não pode ser evitado. Se o CVC é inserido através da pele queimada, durante a admissão do paciente, antes de a pele ser colonizada, a manutenção estrita de curativos cuidadosamente estéreis pode manter o local descontaminado por um bom período de tempo, evitando-se, assim, a troca freqüente de cateter. O local de inserção do cateter parece não interferir com o risco de aparecimento da sepse primária, relacionada ao cateter venoso central. Contudo, por razões de higiene, dá-se preferência para a veia subclávia, pois a manutenção de curativos estéreis, nesse local, é mais fácil do que nas regiões do pescoço e inguinal. Como a sepse relacionada ao CVC tem sido correlacionada com a trombogenicidade (depósitos de fibrina) do cateter, é preferível o uso de cateteres de silicone do que o de cateteres de polivinil. Além disso, certos autores (22) têm utilizado, com muito sucesso, o uso de cateteres revestidos com antibiótico, na prevenção de sepse relacionada ao CVC, causada pelo S. aureus. O uso de cateter de poliuretano, por ser inerte e macio, também diminui a incidência de sepse primária. Em conclusão, deve-se salientar sempre o fato de que as medidas preventivas descritas aumentam o tempo de permanência do CVC e evitam a sepse primária, complicação temível que aumenta, ainda mais, a morbidade dos pacientes previamente críticos. BASILE-FILHO A et al. Central venous catheter-related sepsis. Medicina, Ribeirão Preto, 31: 363-368, july/sept. 1998. ABSTRACT: Many papers have been published about the complications caused by percutaneous central venous catheterization, since Aubaniac described the punction of the subclavian vein in 1952, and especially after the standardization of total parenteral nutrition by Dudrick et al. in 1968. Among the various complications related to this procedure, one of the most important is primary sepsis or catheter-related sepsis, because of its impact upon the morbidity and mortality involving the critically ill patient. However, sometimes it is very difficult to diagnose that complication. The main problem lies between the difference of catheters that are truly causing sepsis and those that are only showing positive culture. Surgical, medical, and microbial literature were reviewed in this paper, to provide enough information on the diagnosis of primary sepsis caused by central venous catheterization. UNITERMS: Sepsis. Catheterization, Central Venous. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - AUBANIAC R. L injection intraveineuse sous-claviculaire. Presse Med 60: 1456, 1952. 2 - DUDRICK SJ et al. Long-term total parenteral nutrition with growth, development and positive nitrogen balance. Surgery 64: 134-142, 1968. 3 - MAKI DG; GOLDMAN DA & RHAME FS. Infection in central venous therapy. Ann Intern Med 79: 867-870, 1973. 4 - STOTTER AT. Junctional care: the key to prevention of catheter sepsis in intravenous feeding. JPEN J Parenter Enteral Nutr 11: 159-162, 1987. 5 - BODEY G; BUCKLEY M & SATHE Y. Quantitative relationships between circulating leukocytes and infections in patients with acute leukemia. Ann Intern Med 64: 328-333, 1966. 6 - CLARKE DE. Infectious complications of indwelling long-term central venous catheters. Chest 97: 966-972, 1990. 7 - MAKI DG; WEISE CE & SARAFIN HW. A semiquantitative culture method for identifying intravenous cateter-related infections. N Engl J Med 296: 1305-1309, 1977. 8 - CAPONE NETO A et al. Semiquantitative culture in diagnosing venous catheter-related sepsis. Rev Paul Med 110: 222-226, 1992. 367

A Basile Filho et al. 9 - MERRIT RT & MASON W, Catheter-associated infections. NUTRITION 4: 247-250, 1988. 10 - DE CICCIO M. Source and route of microbial colonization of parenteral nutrition catheters. Lancet 25: 1258-1261, 1989. 11 - SCHROPP KP; GINN-PEASE ME & KING DR. Catheter-related sepsis: a review of the experience with Broviac and Hickman catheters. NUTRITION 4: 195-200, 1988. 12 - KAPPERS-KLUNNE MC. Complications from long-term indwelling central venous catheter in hematologic patients with special reference to infection. Cancer 15: 1747-1752, 1989. 13 - GARRISON RN & WILSON MA. Intravenous and central catheter infections. Surg Clin North Am 74: 557-570, 1994. 14 - SITGES-SERRA A. Catheter sepsis due to Staphylococcus epidermidis during parenteral nutrition. Surg Gynecol Obstet 151: 481-483, 1980. 15 - VILLAVICENCIO RT & WALL Jr. MJ. Pathogenesis of staphylococcus aureus in the trauma patient and potential future therapies. Am J Surg 172: 291-296, 1996. 16 - PATTI JM & HOOK M. Microbial adhesins recognizing extracellular matrix molecules. Curr Opin Cell Biol 6: 752-758, 1994. 17 - FOSTER TJ & McDEVITT D. Molecular basis of adherence of Staphylococci to biomaterials. In: BISNO AL & WALDVOGEL FA, eds., Infections associated with indwelling medical devices, 2 nd ed., American Society for Microbiology, Washington, DC, p. 31-44, 1994. 18 - POWELL PA. Broviac catheter-related Malassezia furfur in five infants receiving intra-venous fat emulsions. J Pediatr 105: 87-89, 1988. 19 - BABINEAU TJ & MARCELLO P. Randomized phase I/II trial of a macrophage-specific immunomodulator (PGG-Glucan) in high-risk surgical patients. Ann Surg 220: 601-609, 1994. 20 - SHAPIRO MA; DEVER JA & JOANNIDES ET. In vivo therapeutic efficacies of PD 138312 and PD 140248, two novel fluoronaphthyridines with outstanding gram-positive potency. Antimicrob Agents Chemother 39: 2183-2186, 1995. 21 - ASKEW AA. Improvement in catheter sepsis rate in burned children. J Pediatr Surg 25: 117-119, 1990. 22 - RAAD I. Antibiotics and prevention of microbial colonization of catheters. Antimicrob Agents Chemother 39: 2397-2400, 1995. Recebido para publicação em 04/03/98 Aprovado para publicação em 13/05/98 368