Justifica-se a regressão de direitos trabalhistas na Europa diante da crise?

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Transcrição:

1 6º Painel-A crise europeia e o Direito do Trabalho do 53º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho promovido pela LTr. Editora de 24 a 26 de junho de 2013 em São Paulo Justifica-se a regressão de direitos trabalhistas na Europa diante da crise? A Experiência Portuguesa Renato Rua de Almeida, advogado trabalhista em São Paulo, professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da PUC-SP, doutor em direito do trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), membro do IBDSCJ e ANDT Examinarei os reflexos da crise europeia nas relações de trabalho em Portugal, ressaltando que o Direito do Trabalho português enfrentou os problemas decorrentes pela via da concertação social, uma das formas de contratação coletiva, dentro do processo de negociação coletiva de trabalho. Aproveitarei o exemplo português, fazendo um paralelo com o Brasil, para afirmar que o comum acordo como pressuposto do ajuizamento do dissídio coletivo de

2 natureza econômica é instrumento necessário para a busca de solução jurisdicional do conflito coletivo por meio da sentença normativa como arbitragem pública face às propostas finais formuladas pelos litigantes, implicando definitivamente o fim do poder normativo, e dando eficácia ao processo de negociação coletiva de trabalho. Optei por examinar a experiência da República Portuguesa face à crise europeia por três razões: Portugal é considerado um dos primos pobres da União Europeia, e, portanto, a questão trabalhista utilizada como uma das formas para debelar a crise foi bastante representativa (I); por uma questão metodológica, parece-me mais eficaz o exame da experiência portuguesa do que o de todas as nações da União Europeia, o que seria mais complexo e menos pedagógico (II); e, enfim, porque as alterações na legislação trabalhista portuguesa decorreram da concertação social, que é um pacto entre sindicatos de trabalhadores, empresários e governo. Começando pela terceira e última razão, o artigo 56, da Constituição da República Portuguesa de 1976, prescreve que compete às associações sindicais defender e promover a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores representados, sendo certo que, entre os direitos das associações sindicais, encontra-se o de fazer-se representar nos organismos de concertação social.

3 Vê-se, portanto, que as alterações legislativas decorreram da participação dos trabalhadores na sua construção face à crise econômico-social da União Europeia em Portugal. Se fosse no Brasil a crise econômico-social, a tentativa de solução trabalhista pela via legislativa seria facilmente acusada de promover a flexibilização e a precarização dos direitos dos trabalhadores, em razão da debilidade do movimento sindical brasileiro, alicerçado na unicidade sindical, na representação por categoria e na contribuição sindical compulsória. Em Portugal as modificações adotadas pela legislação trabalhista para o enfrentamento da crise poderão ser acusadas da mesma forma de promover regressão dos direitos trabalhistas, isto é, a flexibilização e a precarização dos direitos dos trabalhadores? Talvez menos importante do que responder à questão acima fosse compreender que as modificações legislativas sobre o banco de horas, trabalho suplementar, feriados, férias, e, sobretudo a redução do valor das compensações devidas ao trabalhador por ocasião da cessação do contrato de trabalho, visando à otimização da gestão empresarial e a competitividade da empresa portuguesa, foram resultado da concertação social (sindicatos de trabalhadores, empresários e

4 governo) prevista, como visto, pela Constituição e pela legislação infraconstitucional. De fato, a famosa Lei n. 23/2012, de 25 de junho, é o resultado do cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado português no chamado Memorando da troika (Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política econômica) e que se apoia em dois importantes acordos de concertação social, a saber: o Acordo Tripartido para a Competividade e Emprego, de 22 de março de 2011, celebrado antes do Memorando, e o Compromisso para o Crescimento, Competividade e Emprego, de 18 de janeiro de 2012, celebrado posteriormente ao mencionado Memorando. A participação do movimento sindical português na concertação social é resultado de sua legitimidade garantida pela liberdade sindical, e, consequentemente, pela sua ação coletiva em nível das empresas, o que o tornou mais sensível para tomar decisões em nível da concertação social. Com efeito, a participação do movimento sindical português na concertação social que trouxe as modificações legislativas em matéria trabalhista certamente levou em consideração o desemprego e a dolorida saída para o exterior, inclusive para o Brasil, de uma legião de jovens na busca de trabalho para sua sobrevivência.

5 Essa minha análise, que suponho realista, é diferente de uma postura racionalista. A concertação social é uma espécie de contratação coletiva, dentro do processo de negociação coletiva do trabalho, e, quando feita com a participação da representação sindical dos trabalhadores legitimada pela liberdade sindical nos moldes da Convenção n. 87 de 1948, da OIT, é uma forma adequada de solução da questão social e não permite dizer que houvesse regressão de direitos trabalhistas no sentido clássico, pois as modificações legislativas foram previamente negociadas. Essas modificações legislativas negociadas podem até ter reduzido alguns direitos trabalhistas, ainda que provisoriamente, mas certamente procuraram evitar o mal maior do desemprego e do desespero social. Postura racionalista e paternalista a respeito da negociação coletiva do trabalho foi a adotada predominantemente ontem no Painel sobre a nova Súmula 277 do TST, ao se dizer, que ela, Súmula 277, se justificaria para promover a negociação coletiva, quando, na verdade, a negociação coletiva no Brasil está travada pelo nosso modelo sindical semicorportivista, sem representatividade e distante do local do trabalho. A eficácia da negociação coletiva deve ser alcançada autonomamente pelos próprios entes sociais

6 envolvidos, como na hipótese da concertação social portuguesa acima examinada. Ademais a eficácia da negociação coletiva dá-se de forma descentralizada e em nível da empresa, como nos países da União Europeia, e seu travamento no Brasil, em decorrência de nosso modelo sindical semicorporativista, é lamentavelmente alimentado pela insistência na manutenção do poder normativo da Justiça do Trabalho, que foi expressamente extinto pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004, ao prescrever no artigo 114, 2º, do texto constitucional, que a instauração do dissídio coletivo de natureza econômica pressupõe a celebração de comum acordo não em relação ao mérito, mas como busca de solução do conflito coletivo, quando a decisão perseguida dos Tribunais do Trabalho será eminentemente jurisdicional para decidir o conflito e não mais para criar norma, por meio de uma sentença normativa de arbitragem pública face às propostas finais formuladas pelos litigantes. Em última análise, é de se perguntar se a insistência na manutenção do poder normativo da Justiça do Trabalho esconderia mal o desejo do exercício de um poder de feição antidemocrática, usurpador das prerrogativas do poder legislativo, ainda que sob o pretexto de promover a negociação coletiva, com a edição da nova Súmula 277 do TST, mas que, na verdade, a emascula.