SARTRE E A POLÍTICA Carlos Eduardo de Moura Mestrado Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Bolsista CAPES prof.carloseduardo@bol.com.br No entrecruzamento da Metafísica, da psicologia, da Antropologia e da Ética, encontram-se ferramentas suficientes para o enriquecimento de uma reflexão ética- dentro de um antropológica. É neste sentido que se vê os valores surgindo apenas mundo-para-nós, exigindo-se a ação de engajar-se nesse mundo de valores e de objetividades. Eles são gerados pela estrutura do engajamento, pois é pela realidade humana que o valor chega ao mundo e é por ela que o nada é introduzido no mundo. A realidade humana é tudo aquilo o que é não o sendo plenamente; haverá sempre a fissura ontológica no ser, onde o homem é separado de si mesmo. Não é uma postura niilista, de desespero ou da negação da vida, ao contrário, ela é exigida de ser vivida autenticamente, pois o que o homem é é exatamente aquilo o que ele se torna e é esta perspectiva que se deve assumir lucidamente como condição humana. Cada ação que se pratica deve ser referida a um projeto existencial pelo qual se deve moralmente responder. Consciência é consciência de ser e ser seu próprio nada. Este nada sustenta o caráter da não pré-existência dos valores, jamais considerados como entidades metafísicas, anteriores à existência humana. Eles não estão no mundo mas estão na relação do homem com o mundo e apenas são revelados através de uma liberdade ativa, engajada, presente e atuante no vivido, são...os valores dos significados que mantém uno o mundo de alguém através das estruturas situacionais do para-si. 54 Escolher, portanto, é escolher uma forma e um estilo de vida, implicando em considerações (conceitos, teorias) que guiará o homem em suas ações. É ao escolher que se constrói a justificação de um tipo de ação em vez de outra e, neste processo, os fatores internos e externos colidem entre si, originando dilemas e conflitos que exigirá do ser humano novamente o ato de escolha, de decisão. 54 DANTO, Arthur C. As 1978. p. 112. idéias de Sartre. Trad. de James Amado. São Paulo: Editora Cultrix, - 73 - PPG-Fil - UFSCar
O que se procura aqui é um indivíduo autônomo e sabe-se que a noção de autonomia é cunhada na filosofia moderna e diz respeito à liberdade do sujeito de seguir com as normas por ele produzidas. É esta liberdade que permite o indivíduo ser seu próprio senhor, garantindo que o exercício pleno de sua vontade e de suas ações dependam apenas de si mesmo e não de forças externas, sejam elas quais forem. A liberdade deve permitir a participação do indivíduo na vida pública e entenda-se aqui participação enquanto meios que possibilitem a este indivíduo participar das decisões dos fins (coletivos) de sua comunidade e ainda na decisão dos padrões de justiça à serem colocados em vigor. No entanto, esta liberdade é insuficiente quando relacionada à vida privada enquanto formação autônoma das identidades individuais. O problema maior aqui é a falsa interpretação de que a vontade individual e a vontade coletiva são caracterizadas como duas grandezas incomunicáveis. O valor que motivará as ações do indivíduo, que o fará mover em projeto...será um ideal de uma libertação de si concebida como inseparável de uma liberação da humanidade. 55 Deste modo, só se concebe a possibilidade de alcançar a vontade livre somente no engajamento político, no interesse pelos assuntoss públicos e na participação nos processoss de formação da comunidade política. Só assim o sujeito individual estará submetido apenas às próprias leis que ele mesmo produz. Este engajamento e esta participação devem torná-lo consciente de que as normas, conceitos e regras que serão estabelecidas (ou mantidas) na comunidade não são princípios abstratos de justiça, mas suas formulações teóricas serão encontradas em tradições culturais enraizadas na comunidade, com valores éticos em um certo grau de harmonia e padrões compartilhados de comportamento e modelos de viver. Estas formulações teóricas não são fixas e imutáveis, mas estão aptas a serem consultadas sempre que surgirem conflitos de interesses ou dúvidas pelo corpo coletivo nelas inseridas. Fazer teoria moral implica em fazer prática moral, cujo ponto de partida é a prática moral particular, inserida em uma tradição de pesquisa racional a partir do qual o conflito com outras tradições possa ser efetivado no decorrer histórico de seus desenvolvimentos internos: não há determinismo, poderá haver o crescimento da tradição, do seu poder explicativo ou mesmo sua destruição. A política deve ser entendida como uma forma de reflexão de um complexo de vida ético, em que os membros de comunidades se dão conta de sua dependência recíproca e da necessidade de reconhecimento recíproco, transformando-se em uma 55 BARTHES, R. Et al. Les critiques de notre temps et Sartre. Paris: Éditions Garnier, 1973, p. 150. - 74 - PPG-Fil - UFSCar
associação de portadores de direitos iguais e livres. No caso de um movimento revolucionário, por exemplo, há formação de...um movimento no qual as pessoas têm algo em comum, se não uma ideologia, pelo menos uma vontade de ruptura com o sistema em que vivem, uma tomada de consciência da necessidade de inventar novas formas de luta e de contra-violência. 56 Há aqui um tema importante para o enriquecimento da noção de engajamento político: a existência da desarmonia que acompanha a vida da pessoa autônoma. Na política e na vida pessoal, a autonomia exige que se faça escolhas entre valores conflitantes e até mesmo incomensuráveis, conduzindo o sujeito, muitas vezes, à experiências antagônicas ou mesmo agônicas. A autodeterminação envolve angústias pessoais e exige argumentos políticos sobre a melhor forma de conviver com conflitos em relação aos seus fundamentos. O conflito ético é de extrema relevância, pois ele constitui a dinâmica da construção histórica do ethos, isto é, da sua historicidade. O conflito ético se dá no campo dos valores, o que implica na possibilidade de interpretar- ético que é se as novas exigências do ethos na sua historicidade; porém, é o indivíduo capaz de viver tal conflito, sendo posteriormente anunciador de novos paradigmas éticos. O dissenso deve ser assumido como presença constante nos debates políticos, mesmo que apenas como possibilidade plausível no começo dos processos decisórios. Defender a liberdade de autogovernar-se não implica em suprimir as liberdades de opinião e as vontades individuais, nem defender uma autonomia pública que acabe com a possibilidade de serem mantidas posições divergentes no interior de uma mesma comunidade, obrigando seus membros a assimilarem as posições assumidas pela maioria vencedora em debates políticos. A supremacia da autonomia pública não poderá constituir-se como supressão completa da vontade individual, com políticas repressivas e sustentar uma preservação coercitiva da cultura em vigor. A política é um empreendimento cooperativo em que todos ou cada um, quaisquer que sejam suas convicções, têm um interesse pessoal a promover a justiça não somente para si próprios, mas para os outros igualmente. Mas não se idealize aqui uma situação em que não existirá conflito, desacordo, ao contrário, tornar-se-ão eles desejáveis. O critério de uma vida boa não é extraído de uma dimensão intocável ou de algo descido dos céus, mas o critério de uma vida boa em seu aspecto mais reflexivo não pode ser definido de maneira a-histórica ou a-contextual, como se os 56 SARTRE, Jean-Paul. Ell miedo a la revolución: les communistes ont peur de la révolution. Trad. Hugo Acevedo. 2ª ed. Argentina: PROTEO, 1971, p. 20. - 75 - PPG-Fil - UFSCar
pesos e as medidas valorativas valessem para todos os povos e em todos os estágios da História. Portanto, tanto o discurso quanto os seus agentes encontram-se em um contexto; são agentes morais em um ambiente de intersubjetividade e de sujeitos enraizados em uma determinada tradição. O sujeito que está comprometido dentro de um movimento (político, revolucionário)...desemboca em uma nova reivindicação: a da dignidade, soberania [ou autonomia] e poder. 57 Isso implica na autonomia do indivíduo, em uma liberdade que viabiliza sua autodeterminação mesmo dentro de contextos culturais: ser livre é aceitar ou não criticamente algo em nome de uma posição substituta mais justificável. A liberdade de autogoverno se encontra no campo da autonomia pública, na formação coletiva da vontade considerada livre quando construída na livre comunicação de argumentos e opiniões dentro de um debate racionalmente justificável ou convincente entre seus participantes. Não há como conceber um presente que não seja instituído pela imagem de um futuro, de uma finalidade, meta ou projeto e em cuja direção o indivíduo se move ou deixa de se mover no presente. Portanto, as narrativas que vivemos têm um caráter de imprevisibilidade na série de fins ou metas que norteiam nosso mover no presente. Cada ato e cada gesto constituem uma totalidade daquilo que o sujeito é, uma unidade vivida. Ele se escolhe em seus atos, como um todo no mundo que também é um todo. As escolhas não são episódios isolados e ordenados em série, ao contrário, a escolha representa a integração (a totalidade) de todas as escolhas anteriores, escolher é escolher a espécie de homem que ele é, da vida que leva e a espécie de mundo que vive. Os atos não são meramentee gratuitos e sem significação, sua escolha lhe representa um todo,...a escolha não significa que cada ato da vontade exija um ato de vontade separado para movimentá-lo 58, isto seria um contra-senso. Em Entretiens sur la Politique, se vê Sartre tratar estas questõess através de uma vertente profundamente política. Na formação do grupo (ou de grupos), a necessidade de expressar seu fim (ou seus fins) pode se manifestar de duas maneiras distintas: 1)ela pode surgir de um grupo (ou de uma classe) que não tem nenhum meio para expressar seus fins; 2) ela surgiria pelas partes já existentes que, por diversas razões, não 57 Ibidem, p. 21. 58 DANTO, Arthur C. Ass idéias de Sartre. Trad. de James Amado. São Paulo: Editora Cultrix, 1978. p. 109. Como afirma Sartre na Crítica da Razão Dialética (SARTRE, 2002, p. 742), apenas posso compreender a integração das múltiplas significações de minhas práticas dentro de uma perspectiva que permitirá integrar todos os grupos do campo comum e todas as suas determinações práticas, o que ocorre apenas na perspectiva histórica. - 76 - PPG-Fil - UFSCar
preencheriam sua tarefa de exprimir as necessidades do grupo. O agrupamento (a classe ou o partido) que se quer construir pode encontrar-se diante de um fenômeno de desagregação a partir de agrupamentos já constituídos. Trata-se de questionar se a nova formação que se quer construir é capaz de fazer melhor que o agrupamento presente. Dito de outra forma, trata-se de reaprender, na base, a democracia. 59 Sartre quer com isso i desenvolver a idéia de criar as condições de um funcionamento democrático no interior de um agrupamento político, quer instaurar a possibilidade, em e pela coletividade, as responsabilidades que derivam da ação sancionada pelo grupo (como em um sindicato, em que o grupo poderia decidir uma greve). É preciso que cada indivíduo do grupo possa tomar consciência de suas responsabilidades democráticas, de suas ações (grupo) e de sua ação (indivíduo) e se colocar em contato com outros grupos, constituindo uma reivindicação concreta, estabelecendo uma comunicação permanente com os integrantes de seu grupo e com os demais grupos. Esse duplo movimento é necessário à toda democracia e é ele que define a verdadeira emancipação. 60 A democracia, paraa Sartre, consiste na formulação de cada problema particular em uma perspectiva de problemas gerais. Isso quer dizer que elementos ideológicos diferentes estão frente-a-frentemovimento histórico, persuadido de que faz parte de uma situação. O que importa para permitindo ao homem encontrar-se inserido no Sartre, é ter consciência de que o homem se define pela situação social, pelo seu pertencimento a um determinado grupo e pelo conjunto de interessess e técnicas que formam este grupo, de tal maneira que não há como defender a idéia de um modelo de homem que seja eterno. O único meio de liberar os homens é de agir sobre sua situação. A única liberdade concreta de pensar é a liberdade de pensar concretamente. 61 Os problemas não são meras abstrações do imaginário humano, todo problema é um convite a se debater sobre uma questão, dando-se os meios de religá-la à situação concreta. O pensamento geral e universal será concreto se o indivíduo (ou o grupo) partir da situação concreta tal como ela é definida por suas atividades e por suas necessidades quotidianas. A necessidade, portanto, é tanto do pensamento de quais são as necessidades quanto do pensamento de como poderão ser satisfeitas. A fome, por 59 SARTRE, Jean-Paul. Entretiens sur la Politique. 3 ª ed. Paris: Gallimard, 1949, p.22. 60 Ibidem, p.31. 61 Ibidem, p.105. - 77 - PPG-Fil - UFSCar
exemplo, é analisada por Sartre como um apelo à revolta, um desejo de deliberação, isto é, o movimento em que o indivíduo compreende profundamente a fome dos outros, constituindo...um esboço de solidariedade na miséria; é, enfim, a indignação diante da desigualdade das condições 62, é...um sentido rudimentar da justiça. 63 Este é o começo de um conjunto de atos e pensamentos que constituem uma conduta, acabando por se caracterizar como ideologia, ou mais, como um complexo de sentimentos dentro do qual o sujeito perceberá o mundo. Para Sartre, toda necessidade se ultrapassa a si mesma em direção a um humanismo, de modo que o pensamento de um grupo concreto de cidadãos pode e deve se estender ao conjunto de problemas do mundo e nele compreendendo os problemas morais, mas na condição de que estes mesmos problemas partem dos interesses dos cidadãos. A coesão de um agrupamento deve partir do interesse, da situação, da tomada de consciência desse interesse e da ação concreta na situação;...somente haverá pensamento concreto se ele emana de grupos concretos. 64 Não se deve suprimir as contradições entre grupos com a finalidade de evitar o confronto com o diferente, o debate deve ser aberto e visar a síntese através da deliberação, para que se possa voltar à base de um sistema democrático em que seus integrantes encontram-se Logo, isso supõe uma comunicação constante. 65 engajados no processo de decisões políticas. Mas o sujeito se depara com um grande obstáculo, isto é, com as dificuldades que ele encontra para o exercício de sua autonomia política. O saber mínimo que lhe seria necessário para desempenhar seu papel de cidadão é extremamente insuficiente. Esta carência de conhecimento não possibilita ao sujeito alcançar uma autonomia que lhe permita se orientar no mundo e compreender a multiplicidade de situações que definem sua própria posição nesse mundo, nem mesmo oferece condições para que ele se coloque dentro de perspectivas convenientes para que possa julgar os acontecimentos. É por este motivo que Sartre concebe o homem culto como aquele que dispõe do saber e dos métodos que lhe permite compreender sua situação no mundo. Como esta situação é concreta, as questões colocadas são questões práticas, que podem originar ou enriquecer o percurso das discussões e das resoluçõess concretas dos agrupamentos. É por meio destas perspectivas concretas que se deve apreender processualmente o conhecimento das condições econômicas, históricass ou ideológicas 62 Ibidem, p.105. 63 Ibidem, p.105. 64 Ibidem, p.110. 65 Ibidem, p.121. - 78 - PPG-Fil - UFSCar
que determinam a situação concreta. A liberdade que Sartre procura não é meramente a liberdade dentro de um processo reflexivo, ao contrário, o exercício da liberdade concreta não deve somente ser considerada como o processo reflexivo pelo qual as massas explicitarão a política implicada em suas reivindicações, mas também como uma emancipação progressiva dessas massas. 66 Para Sartre, só há realidade na ação, o homem é o seu próprio projeto e ele existe na medida em que se realiza. Em L'existentialisme est un humanisme, Sartre afirma que o homem não é mais do quee sua vida, o que significa afirmar que o indivíduo não é mais do que uma série de empreendimentos, é a soma, a organização e o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos. Deste modo, a esperança do homem está em sua ação, o que lhee permite viver é o ato. As coisas no mundo estão suspensas à decisão do homem, o significado vem ao mundo por seu intermédio, é ele que inventa os valores, o que significa dizer que a vida não tem sentido a priori. Por conseguinte, sobre esse plano, nós preocupamo-nos com uma moral de ação e de engajamento. 67 O sujeito tem a responsabilidade de uma escolha, ligando-se a ela pelo compromisso e, ao mesmo tempo que é definido em relação a esse compromisso. Para que a filosofia seja verdadeiramente um engajamento, ela deve ser justificada...perantee pessoas que a discutem sobre o plano político ou moral. 68 Bibliografia BARTHES, R. Et al. Les critiques de notre temps et Sartre. Paris: Éditions Garnier, 1973. DANTO, Arthur C. As idéias de Sartre. Trad. de James Amado. São Paulo: Editora Cultrix, 1978. SARTRE, Jean-Paul. El miedo a la revolución: les communistes ont peur de la révolution. Trad. Hugo Acevedo. 2ª ed. Argentina: PROTEO, 1971.. Entretiens sur la Politique. 3 ª ed. Paris: Gallimard, 1949. 66 Ibidem, p.141. 67 SARTRE, Jean-Paul. L' 'existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996, p.56. 68 Ibidem, p.83. - 79 - PPG-Fil - UFSCar