UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA ARRANJOS VOCAIS E INSTRUMENTAIS I PROSÓDIA MUSICAL



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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA ARRANJOS VOCAIS E INSTRUMENTAIS I PROSÓDIA MUSICAL PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA ARRANJOS VOCAIS E INSTRUMENTAIS I PROSÓDIA MUSICAL PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO...1 2. ESTRUTURA MÉTRICA... 1 3. TIPOS DE VERSO... 7 4. ESTRUTURA RÍTMICA... 16 5. ESTRUTURA MELÓDICA... 24 6. COMBINAÇÃO DOS ELEMENTOS MUSICAIS... 32 7. FONTES BIBLIOGRÁFICAS... 36

1 1. INTRODUÇÃO O termo prosódia vem do grego prosōidía, que originalmente tinha o significado de canto em concordância ; de onde se originaram os sentidos de canto acompanhado pela lira e metrificação das palavras. Para os gregos, porém, a acentuação da poesia não era medida por sílabas átonas e tônicas, como ocorre nas línguas ocidentais contemporâneas. Os gregos realizavam a metrificação de acordo com a duração dos fonemas, isto é, o que atualmente se considera como sílaba tônica, para os gregos era considerado como sendo sílaba longa e o que hoje denominamos sílaba átona, os gregos chamavam de sílaba breve. Em geral, quando se tem uma sílaba tônica, ela também tem maior duração, ou seja, é mais longa do que uma sílaba átona. Isso significa que as distinções átona/tônica e longa/breve são apenas critérios escolhidos arbitrariamente, pois as sílabas tônicas são geralmente longas e as átonas, breves. Do ponto de vista da prosódia musical, em que se deve levar em conta a metrificação poética para adaptá-la aos elementos da melodia, ambos os critérios (sílaba átona/tônica e longa/breve) devem ser levados em consideração. Assim, para a construção de uma linha melódica com base em determinado texto, tem-se que levar em consideração três aspectos da construção musical: a estrutura métrica divisão dos compassos, síncopes, contratempos, quiálteras, hemiólias e deslocamentos da acentuação, entre outros; a ordenação rítmica organização das durações, padrões rítmicos, divisão das estruturas rítmicas, estruturação rítmica por adição, etc.; e a construção melódica distribuição dos intervalos, saltos e graus conjuntos, movimentos ascendentes e descendentes, contornos melódicos, estrutura fraseológica, elaboração motívica, etc. Naturalmente, outros elementos, como a harmonia, o contraponto e a textura, devem ser levados em consideração para a realização de uma correlação satisfatória entre poesia e música. Em um primeiro momento, porém, focaremos nosso estudo na análise dos elementos da poesia e seu emprego para a construção de linhas melódicas cantáveis. 2. ESTRUTURA MÉTRICA A métrica, na poesia, é a distribuição organizada das sílabas átonas e tônicas, que ocorrem de forma a projetar estruturas simétricas ou assimétricas, regulares ou irregulares, periódicas ou aperiódicas 1. 1 Esses três pares de conceitos são muitas vezes empregados indistintamente, porém, em arte, podem significar aspectos distintos da estrutura de uma peça de música, de um poema ou de uma pintura, por exemplo. Podem-se diferenciar esses conceitos da seguinte maneira: uma estrutura simétrica é aquela em que suas partes têm as mesmas proporções, como, por

2 Podemos iniciar a análise métrica pelos tipos de palavras. Os gregos consideravam que existem apenas dois tipos de organização métrica: a divisão binária e a divisão ternária. Todas as outras seriam combinações dessas duas. Por exemplo, o compasso quinário é uma combinação de tempos na ordem de [3 + 2] ou [2 + 3], conforme demonstra o exemplo 1-1, abaixo. Exemplo nº 1 Desta forma, se podem dividir os tipos métricos das palavras da seguinte maneira: Ritmo binário ascendente é aquele que ocorre em palavras com duas sílabas, sendo a primeira sílaba átona e a segunda, tônica (dissílabos oxítonos). Exemplo: can-ção. Ritmo binário descendente ocorre nas palavras dissílabas paroxítonas (em que a primeira sílaba é acentuada), como, por exemplo: rit-mo. Ritmo ternário ascendente aparece em palavras com três sílabas, nas quais a sílaba tônica aparece no final (trissílabas oxítonas), como ocorre, por exemplo, em: can-to-chão. Ritmo ternário descendente aparece em trissílabas proparoxítonas (com três sílabas e acentuação na primeira), como na palavra: mú-si-ca. Ritmo ternário interno ocorre nas palavras trissílabas paroxítonas, pois a sílaba tônica é aquela que se encontra no interior do vocábulo, como, por exemplo: com-pas-so. Na prosódia clássica, a divisão de sílabas longas e breves era indicada por meio destes símbolos: sílaba longa (tônica): ; sílaba breve (átona):. Com base na divisão apresentada acima, os gregos elaboraram sete esquemas métricos, que ainda hoje são empregados para a composição e para a análise métrica da poesia. Troqueu: longa-breve: (equivale ao ritmo binário descendente); Iambo: breve-longa: (equivale ao binário ascendente); exemplo, na quadratura clássica, um período de 16 compassos que é formado por duas frases de 8 compassos possui uma estrutura simétrica: 8 + 8. Se uma dessas frases for composta por uma estrutura do tipo 5 + 3, será considerada como uma frase irregular. Se ambas as frases forem formadas da mesma forma 5 + 3, ocorre periodicidade em sua estrutura. Entretanto, se a primeira frase for composta por um grupo do tipo 5 + 3 e a segunda for composta por um grupo do tipo [4 + 4] não há periodicidade. Assim, obtém-se uma estrutura simétrica, irregular e aperiódica da seguinte forma: 5 + 3 + 4 + 4 ; uma estrutura assimétrica, regular e aperiódica poderia ser obtida assim: 4 + 4 + 5 + 5. Outra maneira de se obter periodicidade em uma estrutura frásica, seria repetindo determinado elemento (p. ex.: um padrão rítmico, um motivo melódico) em períodos regulares de tempo, mesmo que sejam realizados compassos alternados (justaposição de compassos diferentes, na mesma frase) ou compassos irregulares (aqueles formados por números de tempos não divisíveis por 2 ou por 3: 5/4, 7/8, 11/16). Assim, entende-se que os princípios de simetria, regularidade e periodicidade podem ser elaborados independentemente.

3 Dátilo: longa-breve-breve: (equivale ao ternário descendente); Anapesto: breve-breve-longa: (equivale ao ternário ascendente); Anfíbraco: breve-longa-breve: (equivale ao ternário interno); Espondeu: longa-longa: (confluência de duas sílabas tônicas); Tríbraco: breve-breve-breve: (ausência de sílaba tônica). Assim, no poema Cloaca 2, de Décio Pignatari, os versos estão organizados com base em um esquema rítmico trocaico, sendo que o desfecho aparece com um ritmo anfíbraco. [Escansão] beba coca cola babe cola beba coca babe cola caco caco cola c l o a c a Exemplo nº 2 Todos os versos acima são trocaicos (a escansão 3 se encontra à direita de cada verso), pois são formados por esquemas rítmicos binários descendentes [ ]; a exceção está no último verso (palavra: cloaca ), que tem por base um ritmo anfíbraco, ou ternário interno [ ]. A estrutura de um verso não está embasada somente na métrica das palavras isoladas, mas possui uma estrutura rítmica própria que é o resultado da combinação dos diferentes fonemas e suas acentuações. O primeiro verso do poema acima, por exemplo, é formado por cinco sílabas (na metrificação da língua portuguesa, conta-se somente até a última sílaba tônica). Para finalidade de prosódia musical, porém, é necessário contarmos todas as sílabas, pois todas elas deverão ser cantadas para dar o sentido do texto. Assim, mesmo que do ponto de vista da prosódia da poesia, considere-se que o primeiro verso tenha cinco sílabas, para a prosódia musical são necessários todos os fonemas, isto é, devem ser cantadas seis notas, uma para cada fonema. Be - ba co - ca co - la [esquema métrico] 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª [número da sílaba] Exemplo nº 3 2 O compositor Gilberto Mendes escreveu um Moteto em Ré Menor (1967), também conhecido pelo título Beba Coca-Cola, para coro misto a cappella, com base neste poema de Pignatari. 3 Escansão é a análise métrica do poema, com sua ordenação de sílabas tônicas e átonas.

4 Assim, para a metrificação poética conta-se somente as cinco primeiras sílabas: be-ba co-ca co-. Sendo que, para a colocação do mesmo verso em música, considera-se o número real de fonemas, ou seja, seis. Existe uma estrutura de peso das acentuações que deve ser respeitada ao transcrevermos musicalmente os versos. No caso do verso acima, a estrutura métrica está indicada da seguinte forma: as sílabas com sublinhado duplo são aquelas que correspondem à acentuação métrica do verso (acentuação forte), a sílaba com sublinhado simples tem valor métrico somente na palavra (acentuação leve) e as sílabas não sublinhadas são átonas (sem acentuação). Vejamos, agora, como colocar este verso em música. Inicialmente, realizaremos somente a disposição métrica dos fonemas, posteriormente veremos como proceder para a organização rítmica e, finalmente, como distribuir os fonemas melodicamente para construirmos uma prosódia musical adequada ao verso que pretendemos pôr em música. A disposição métrica mais comum seria colocar este verso em um compasso binário simples, com início tético e terminação fraca, como no exemplo nº 4, abaixo. Exemplo nº 4 Com a disposição métrica apresentada no ex. nº 4, tem-se uma transposição precisa da estrutura métrica do verso para a estrutura métrica musical, pois as sílabas acentuadas (assinaladas com sublinhado duplo, no exemplo nº 3: be-ba e co-la) estão dispostas nos pontos de maior acentuação musical (o primeiro tempo do compasso, que corresponde à parte forte do tempo forte), a primeira sílaba da segunda palavra co-ca, que é acentuada no nível da palavra, mas não tem acentuação no verso, está colocada na parte forte do tempo fraco do compasso e as sílabas átonas do verso estão todas colocadas nas partes fracas dos tempos. Assim, a distribuição métrica musical dos fonemas está completamente de acordo com a distribuição métrica do verso, em que são respeitados os três níveis de acentuação (acentuação no verso, acentuação na palavra e ausência de acentuação). Cabem, neste ponto de nossa discussão, algumas considerações sobre a métrica musical. Se tomarmos como base um compasso quaternário simples, um 4/4, por exemplo, temos quatro tempos de semínimas em que a primeira tem acentuação forte, a terceira tem acentuação leve e as outras duas (segunda e quarta semínimas) não têm acentuação. O exemplo nº 5 demonstra a posição métrica de cada um dos tempos do compasso quaternário. Exemplo nº 5

5 Se cada um dos tempos for dividido em duas colcheias, conforme ocorre no ex. nº 6, haverá uma hierarquia das acentuações das colcheias, em que a primeira de cada de quatro será a mais forte do grupo, sendo que a primeira colcheia do primeiro grupo é mais acentuada do que a primeira do segundo grupo. O exemplo abaixo demonstra detalhadamente a estrutura métrica de um compasso quaternário simples dividido em colcheias, sendo que o acúmulo do sinal implica em acentuação cada vez mais forte. Assim, a colcheia mais acentuada do compasso é a primeira. Exemplo nº 6 Essa divisão extremamente detalhista das acentuações serve para demonstrar os diferentes níveis de acentuação em uma estrutura métrica. Com o que foi discutido acima, pode-se generalizar o seguinte princípio: em um grupo de dois sons, o primeiro é acentuado e o segundo é leve [cf. ex. nº 7(a)]; em um grupo de três sons, o primeiro é forte, o segundo meio forte e o terceiro é leve [cf. ex. nº 7(b)]; em um grupo de quatro sons, o primeiro é forte, o terceiro é meio forte, sendo o segundo e o quarto leves [cf. ex. nº 7(c)]; em um grupo com cinco sons, a divisão pode ser feita como [2 + 3] ou como [3 + 2] conforme foi mencionado no ex. nº 1, sendo assim, podem ocorrer dois tipos de hierarquia dos tempos, conforme aparece no ex. nº 7(d) e 7(e); um conjunto de seis sons pode ser dividido em três grupos de dois o que gera uma métrica ternária simples [cf. ex. nº 7(f)] ou em dois grupos de três dois o que produz uma estrutura binária composta 4 [cf. ex. nº 7(g)]. Da mesma maneira, todas as outras formações serão obtidas pela combinação de grupos e subgrupos de dois e três sons, sempre seguindo o princípio de hierarquia das acentuações já mencionado. Exemplo nº 7 Da mesma forma que existem níveis diferentes de acentuação métrica na estrutura de determinado compasso ou em suas divisões rítmicas, uma linha melódica também está organizada de forma que há diferentes níveis de valor nas relações entre os motivos, as semifrases, as frases, etc. Este tópico será abordado no Capítulo 4. Leonard Meyer (1960) empregou o sistema da prosódia grega para a análise de estruturas musicais, como frases, períodos, movimentos e até 4 Note-se que o compasso ternário simples tem uma métrica ternária com divisão binária, ao passo que o compasso binário composto tem métrica binária com divisão ternária, pois a estrutura simples implica em divisão binária e a estrutura composta implica em divisão ternária.

6 mesmo obras inteiras. O exemplo nº 8 apresenta uma análise de Meyer de duas melodias similares, porém que se comportam diferentemente do ponto de vista da organização métrica no interior das frases. Na frase citada no ex. nº 8(a), retirada do minueto da Sinfonia K550 de W. A. Mozart, ocorrem grupos binários dentro da métrica ternária geral, o que provoca hemiólias nos compassos 2 3 e nos compassos 5 6. Na frase do exemplo nº 8(b), extraído da Sinfonia nº 5 de F. Schubert, a métrica ternária do minueto é plenamente respeitada. Exemplo nº 8 Note-se como, no ex. nº 8, Meyer realiza uma análise em três níveis da estrutura da melodia de Mozart e em quatro níveis da melodia de Schubert. Assim, no primeiro nível da análise de Meyer para a peça de Schubert, o primeiro motivo (formado pelo salto anacrúsico 5 dominante-tônica) tem um ritmo iâmbico ( ) que se projeta em outros níveis da estrutura fraseológica. Desta maneira, o segundo nível indica que a primeira semifrase inicia com um motivo leve que prepara outro mais acentuado e, no quarto nível, a segunda frase é mais acentuada do que a primeira. Isso assinala a estrutura predominantemente anacrúsica (ou iâmbica) do primeiro período deste minueto. No terceiro nível, porém, percebe-se a inversão das acentuações: a primeira semifrase é mais acentuada do que a segunda; o que significa que, no nível da frase, a estrutura é trocaica. Este tipo de compreensão da organização métrica em diferentes níveis da estrutura fraseológica é extremamente útil para o entendimento das relações entre a métrica da poesia e a métrica musical, visto que a colocação de um texto em música depende das inter-relações entre ambas. Percebe-se, assim, que, no ex. nº 4 (Beba coca cola), todos os níveis da estrutura métrica do poema estão inter-relacionados à estrutura métrica da música, pois há coincidência em todos os níveis de acentuação. 5 Do ponto de vista da posição métrica de determinada frase ou estrutura melódica, considerase que há três tipos de início: 1. início tético, quando uma melodia inicia no tempo forte do compasso; 2. início acéfalo, quando a linha melódica inicia após o tempo forte, isto é, quando se elimina o tempo forte inicial; 3. início anacrúsico, quando a melodia inicia como preparação para um tempo forte, ou seja, com anacruse. Há dois tipos de terminação: 1. terminação forte, aquela que termina em um tempo forte; 2. terminação fraca, quando finaliza no tempo fraco ou na parte fraca do tempo.

7 3. TIPOS DE VERSO Na metrificação poética, os versos são também classificados de acordo com o número de sílabas, podendo variar de monossílabos (versos com uma sílaba) a dodecassílabos (versos de doze sílabas), ou mais. Abaixo, está apresentado um resumo dos tipos de verso conforme o número de sílabas que os compõem e as acentuações mais comuns da poesia em língua portuguesa. Monossílabo são raros os versos de apenas uma sílaba. O poema abaixo, Com som sem som, de Augusto de Campos 6, é um exemplo de estrutura formada somente por monossílabos. Devido à justaposição de sílabas acentuadas, pois se trata apenas de monossílabos, pode-se considerar o metro como tendo por base o ritmo espondeu. com som sem som [Escansão] Note-se que, para a colocação desse texto em música, é necessário pensar como soa a frase com som, sem som, que segue um esquema métrico iâmbico ( ) que seria traduzido em um ritmo anacrúsico [cf. ex. nº 9]. Exemplo nº 9 Os versos abaixo, de Mário de Andrade, também são monossílabos, visto que na metrificação em língua portuguesa as sílabas são contadas somente até a última sílaba tônica. Note-se que o resultado é uma série de versos com esquema trocaico [cf. ex, nº 1-10]. quebra queima reina dança [Escansão] 6 Este poema também foi posto em música por Gilberto Mendes, em uma peça para coro misto a cappela que tem o mesmo título do poema.

8 Exemplo nº 10 Dissílabo Também incomuns, os versos de duas sílabas são às vezes utilizados para criar algum ambiente específico, como neste poema de Casimiro de Abreu, em que o esquema anfíbraco é empregado para imitar o ritmo da valsa. Na valsa Que encanta Teu corpo Balança. [Escansão] Em uma distribuição básica de cada verso na métrica musical, obtém-se um ritmo anacrúsico em compasso ternário simples, como no ex. nº 11(a). Para refletir musicalmente a estrutura métrica da estrofe como um todo, em que algumas sílabas tônicas são mais acentuadas do que outras, torna-se necessário transcrever para um compasso binário composto, pois as sílabas mais importantes são en-can-ta e ba-lan-ça, que devem estar colocadas no tempo forte do tempo forte de cada compasso, sendo que as outras sílabas tônicas (não acentuadas na métrica da estrofe) devem cair na parte forte do tempo fraco do compasso [cf. ex. nº 11(b)]. Exemplo nº 11 No ex. nº 11, acima, ocorre elisão 7 na ligação das sílabas que_en-, que, na escansão, conta como apenas uma sílaba poética. Sua transcrição musical deve ser respeitada, isto é, duas sílabas em elisão formam apenas um fonema que deve ser cantado com uma única nota da melodia. 7 O termo elisão vem da fonética, onde significa a eliminação de uma vogal átona, no final de uma palavra, que se liga ao início do vocábulo seguinte, como, por exemplo, ocorre em: minh alma [minha alma], copo d água [de água], dele [de ele], daqui [de aqui], etc. Em música, elisão é o emprego de um elemento fraseológico (uma nota, um acorde, etc.) com dupla função, isto é, o mesmo elemento é utilizado para finalizar um segmento e para iniciar o segmento seguinte.

9 O texto que en-can-ta, que tem quatro sílabas escritas, possui apenas três fonemas, quando falado: qu en-can-ta. Como, na escansão poética, as sílabas são contadas somente até a última sílaba tônica, o fonema [ta] da palavra encanta não é contado no verso, que passa a ser considerado como tendo apenas duas sílabas: qu en-can. A transcrição musical desse verso, porém, deve levar em conta todos os fonemas da fala, pois todos têm som e devem ser cantados. Assim, para a transcrição musical do verso que encanta devem-se escrever três notas (pois possui três fonemas, mesmo que sejam contadas quatro sílabas escritas e somente duas sílabas poéticas). Trissílabo os versos de três sílabas são mais comuns em línguas oxítonas (como o francês, por exemplo), onde aparecem em esquemas rítmicos anapésticos (ritmo ternário ascendente). O poema a seguir, Camassutra, de José Paulo Paes, apresenta um ritmo predominantemente trocaico, que é quebrado no final por um anfíbraco. [Escansão] e l e e l a e l e e l a e l a e l e e l e e l a a l ə ə l ə l a e l e e l a l e e l e l a l l l Camassutra é um poema concreto, com valorização do aspecto visual de sua disposição na página (note-se a forma de uma taça de champanhe do poema, devido à disposição da letra l, embaixo). De qualquer maneira, pode-se transcrevê-lo musicalmente como no ex. nº 12, abaixo.

10 Exemplo nº 12 Tetrassílabo os versos de quatro sílabas podem ser empregados para dar a noção de caminhada ou movimento, por reproduzirem o ritmo do andar humano. Isso ocorre na Lira XII do poema Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Note-se a combinação de ritmos iâmbicos e anfíbracos. Topei um dia Ao Deus vendado, Que descuidado Não tinha as setas Na ímpia mão. [Escansão] A transcrição musical desses versos resultaria em um ritmo acéfalo, como aparece no ex. nº 13. Exemplo nº 13 No exemplo acima, a transcrição para a notação musical apenas reproduz a métrica interna dos versos, em que não se realiza o encontro intervocálico dia_ao, presente na passagem do primeiro ao segundo verso. Ao escrever música a partir de um poema, pode-se realizar a elisão de todos os encontros intervocálicos existentes no texto, independentemente de estarem presentes no mesmo verso ou aparecerem em versos diferentes, conforme demonstra o ex. nº 14. Exemplo nº 14 Pentassílabo (redondilha menor) o verso de cinco sílabas é um dos mais usados no Brasil, sendo bastante comum na poesia popular e na canção folclórica. A canção Acende a lanterna, que faz parte do Boi Canário de Belém do Pará, está construída pela justaposição de duas células anfíbracas.

11 [Escansão] Acende a lanterna Que o boi já chegou, Eu vou no jardim, Apanha uma flor! A disposição métrica das palavras se encaixa em um compasso ternário simples [cf. ex. nº 15(a)]. No entanto, para transcrever musicalmente a hierarquia de acentuações dos versos, seria necessário ajustar a um compasso binário composto [cf. ex. nº 15(b)]. Exemplo nº 15 Hexassílabo o verso de seis sílabas é pouco comum em português. Sendo considerado um verso importado, é mais comumente encontrado em combinação com o decassílabo e pode estar organizado com base em vários padrões rítmicos. Os versos abaixo, de Vinicius de Moraes, têm um esquema com predomínio do ritmo iâmbico. Tu vens de longe; a pedra suavizou seu tempo Para entalhar-te o rosto ensimesmado e lento [Escansão] A transcrição musical revela um padrão métrico ternário simples com início acéfalo, conforme demonstra o exemplo nº 16. Note-se que, para manter o compasso ternário, é necessário acrescentar uma tercina, no interior do terceiro compasso. Se não fosse realizada esta quiáltera, seria necessário mudar o esquema métrico e acrescentar um tempo de colcheia ao compasso, que se tornaria um 7/8. Exemplo nº 16

12 Heptassílabo (redondilha maior) os versos de sete sílabas são os mais populares na língua portuguesa, sendo típicos nas canções folclóricas brasileiras, como o coco alagoano Lavadeira, que tem predomínio do ritmo dactílico (note-se que o terceiro verso do exemplo é um hexassílabo, que é empregado para produzir uma permutação dos motivos da melodia 8 ). Quem te ensinou, lavadeira Quem te ensinou a lavar Foi, foi, foi, lavadeira Foi o peixinho do mar. [Escansão] O exemplo nº 17 demonstra a transcrição dos versos acima para um compasso ternário simples. Note-se que é necessário acrescentar algumas pausas entre os versos, para que se possa manter a métrica musical regular. Exemplo nº 17 Para evitar o acréscimo de pausas, seria necessário incorporar compassos alternados, sendo alguns ternários e outros binários, ou seja, aqueles que têm pausa, no ex. nº 17, deveriam ter dois tempos para eliminar as pausas. Octassílabo os versos de oito sílabas são pouco usuais em português. No poema Retrato Falante, Cecília Meireles compõe quadras em que três versos são octassílabos e o verso restante é um eneassílabo que vai sendo deslocado ao longo das estrofes. Na estrofe a seguir, o último verso é eneassílabo. Os versos octassílabos estão organizados da seguinte maneira: os dois primeiros contêm esquema anfíbraco, que é quebrado no terceiro verso, o qual inicia com um ritmo anapéstico. Repete palavras esquivas sublinha, pergunta, responde. e apresenta, claras e vivas, as intenções que o mundo esconde. [Escansão] 8 A análise da canção Lavadeira será apresentada posteriormente.

13 Os dois primeiros versos poderiam ser transcritos musicalmente para uma estrutura métrica ternária, sendo que o mais apropriado seria um compasso ternário composto, isto é, em que a métrica é ternária e a divisão também é ternária, como apresentado no ex. nº 18. Note-se que no nível da unidade de tempo (semínima pontuada) o ritmo é anacrúsico, enquanto que no nível do compasso se torna acéfalo. Exemplo nº 18 Eneassílabo os versos de doze silabas também podem ser empregados para imitar a valsa, como neste poema de Mario Quintana, intitulado Canção para uma valsa lenta 9, em que o ritmo anapéstico imita o balanço da valsa. [Escansão] Minha vida não foi um romance Nunca tive até hoje um segredo. Se me amas, não digas, que morro De surpresa... de encanto... de medo... Aqui também aparece uma estrutura métrica ternária com divisão ternária, isto é, os versos se adaptariam bem a um compasso ternário composto, como os versos de Cecília Meireles anteriormente citados. A diferença entre ambos está em que, na transcrição musical, os versos de Quintana iniciariam na segunda colcheia do compasso, isto é, a pausa inicial seria de colcheia [cf. ex. nº 19], enquanto que o primeiro verso de Meireles inicia na terceira colcheia (com pausa inicial de semínima). Exemplo nº 19 Decassílabo o verso de dez sílabas foi bastante cultuado na lírica trovadoresca medieval, conforme se percebe na seguinte cantiga de amigo de D. Dinis. Note-se que a seguinte estrofe combina três versos decassílabos (1º, 3º e 6º versos) com dois eneassílabos (2º e 5º versos) e um octassílabo (4º verso). Essa combinação de versos de diferentes medidas para formar a estrofe é bastante comum na poesia de várias épocas, sendo que a sua transcrição musical para uma ordenação métrica regular se torna mais difícil. 9 Sobre este poema de Quintana, Bruno Kiefer escreveu uma canção homônima para voz e piano.

14 Meu amigo, non poss eu guarnecer sem vós, nen vós sem mi; e que será de vós? Mais el Deus que end o poder á, lhi rogu eu que El queira escolher por vós, amigo, e des i por mi, que non moirades vós, nen eu assi [Escansão] O primeiro verso da cantiga de amigo acima, que se assemelha ao decassílabo heróico por ter acentuação principal na 6ª e na 10ª sílabas, poderia ser transcrito musicalmente como a combinação de dois compassos binários, sendo o primeiro simples e o segundo composto [cf. ex. nº 20(a)]. Naturalmente, a forma mais comum de se escrever essa mudança da divisão métrica seria através de tercinas, como no ex. nº 20(b). Exemplo nº 20 As duas versões do ex. nº 20 apresentam estruturas rítmicas distintas, pois, no item (a), as colcheias permanecem iguais, ao passo que no item (b) são as semínimas que se mantêm idênticas. Hendecassílabo o verso de onze sílabas tem sua origem na poesia trovadoresca galego-portuguesa da Idade Média e foi retomado pelos poetas românticos brasileiros. O hendecassílabo parece nos seguintes versos de Casimiro de Abreu, com esquema rítmico anfíbraco que poderia ser subdividido em dois pentassílabos idênticos. [Escansão] Nas horas caladas das noites d estio Sentado sozinho co a face na mão, Eu choro e soluço por que me chamava Oh, filho querido do meu coração. Exemplo nº 21

15 Dodecassílabo (alexandrino) o verso de doze sílabas foi bastante apreciado pelos poetas simbolistas. Note-se como, no belo poema Alucinação, de Cruz e Souza, cada verso é dividido em dois hemistíquios 10 de seis sílabas, sendo que o primeiro e o segundo versos têm a mesma estrutura rítmica, que inicia com um dátilo seguido por um troqueu. Note-se que a ligação entre os dois hemistíquios é feita através de um esquema rítmico espondaico, isto é, pela justaposição de duas sílabas tônicas. [Escansão] Ó solidão do Mar, ó amargor das vagas, Ondas em convulsões, ondas em rebeldias Desespero do Mar, furiosa ventania, Boca em fel dos tritões engasgada de pragas. Cada hemistíquio dos dois primeiros versos, compostos com estrutura do tipo alexandrino agudo, poderia ser transcrito musicalmente para um compasso quinário, realizado pela justaposição: 3 + 2 [cf. ex. nº 22(a)]. Se for o caso de evitar a inserção de pausas entre os hemistíquios, podem ser empregados compassos alternados [cf. ex. nº 22(b)]. A quebra rítmica do terceiro verso poderia ser transcrita musicalmente por um compasso binário composto, no primeiro hemistíquio, e por uma hemiólia (que poderia ser escrita como alternância de um compassos ternário composto e outro simples, respectivamente), no segundo [cf. ex. nº 22(c)]. Exemplo nº 22 Existem também versos com mais de doze sílabas, porém são geralmente considerados como o resultado da combinação de dois hemistíquios formados por versos menores. O exemplo abaixo é o primeiro verso de Notícias do Mundo, de Adalberto Müller, que pode ser interpretado como a fusão de dois hexassílabos para formar um verso de treze sílabas. 10 Hemistíquio corresponde a cada uma das metades em que um verso é dividido; a divisão é normalmente feita através de uma cesura. Por ser comum a divisão de versos alexandrinos em dois hemistíquios, considera-se que o verso dodecassílabo é uma justaposição de dois hexassílabos.

16 [Escansão] Estou há muito tempo sem notícias do mundo Essa é uma junção interessante, em que, isoladamente, tem-se dois versos de seis sílabas, que somados completam treze. Isso ocorre porque o primeiro hemistíquio finaliza com uma sílaba átona (tem-po) que não seria contada na escansão de um verso hexassílabo, mas é integrada no interior do verso de treze sílabas. Se fossem dois versos separados, seriam contados da seguinte maneira: Estou há muito tempo sem notícias do mundo [Escansão] Do ponto de vista da transcrição musical desse verso de treze sílabas, tem-se, no primeiro hemistíquio, um compasso ternário simples, sendo que no segundo hemistíquio aparece um compasso septenário (2 + 2 + 3) [cf. ex. nº 23(a)]. Para evitar o compasso de sete tempos, pode-se também transcrever o final do segundo compasso como uma quiáltera [cf. ex. nº 23(b)]. Exemplo nº 23 Todas as transcrições musicais acima levam em consideração somente o aspecto métrico da estrutura musical, sem variações rítmicas, que são extremamente necessárias para produzir melodias expressivas que podem estar presentes nas diferentes vozes da textura sonora. No próximo capítulo, serão realizadas transcrições de versos levando-se somente em consideração o aspecto rítmico básico de sua estrutura, isto é, a disposição de sons longos e breves. 4. ESTRUTURA RÍTMICA Os músicos da Escola de Notre Dame de Paris, no século XII, desenvolveram um sofisticado sistema rítmico com base na prosódica grecolatina que está na base do sistema mensural que deu origem ao sistema atual de divisão rítmica. A partir da interpretação e transcrição musical dos versos gregos, esses músicos elaboraram seis modos rítmicos, empregando inclusive os nomes clássicos. Os modos rítmicos da Escola de Notre Dame são os seguintes:

17 Troqueu: longa-breve: q e Iambo: breve-longa: e q Dátilo: longa-breve-breve : q. q e Anapesto: breve-breve-longa: q e q. Espondeu: longa-longa: q. q. Tríbraco: breve-breve-breve: e e e Desse sistema rítmico modal adveio a prática de transcrever as sílabas tônicas dos versos como notas de longa duração e as sílabas breves como sons de curta duração. Com as três figuras rítmicas apresentadas acima (semínima pontuada, semínima e colcheia) era possível àqueles músicos realizarem transcrições precisas da prosódia latina encontrada nos textos bíblicos que colocavam em música. A divisão ternária encontrada em todos os modos rítmicos exemplificados acima vem do fato de que o ritmo ternário representava a Santíssima Trindade e era, por isso, o único praticado na música sacra da época. Como, atualmente, escrevemos música sobre qualquer tipo de texto e temos um sistema rítmico que permite vários tipos de métrica, divisão e subdivisão do ritmo, não é necessário mantermos a transcrição rítmica conforme foi praticada pelos músicos da Escola de Notre Dame, mas podemos pensar em uma nota longa com várias possibilidades de duração em comparação com uma nota curta. O que importa é compreendermos o resultado do princípio geral de transcrição musical que os medievais fizeram da métrica poética para a rítmica musical: sílabas tônicas equivalem a notas com duração longa; sílabas átonas equivalem a sons com curta duração. Com isso, pode-se aplicar qualquer tipo de métrica musical para transcrever qualquer tipo de métrica poética, pois, ao acrescentarmos durações variadas, podemos enriquecer consideravelmente as possibilidades de transcrição musical da estrutura de determinado verso. O ritmo de valsa dos versos de Casimiro de Abreu citados anteriormente [cf. ex. nº 11] poderia ser quebrado musicalmente pelo emprego de qualquer tipo de compasso, desde que se tivesse o cuidado de manter as sílabas tônicas mais longas que as átonas que lhe são contíguas. Abaixo, estão algumas possibilidades de transcrição rítmica dos versos de Casimiro de Abreu [cf. ex. nº 24], sendo que todas estão corretas do ponto de vista da prosódia. Naturalmente, inúmeras outras combinações rítmicas seriam possíveis.

18 Exemplo nº 24 No ex. nº 24(a), tem-se uma transcrição rítmica direta de sílabas longas e breves para durações respectivamente longas e breves, em um compasso binário simples; note-se que as sílabas tônicas aparecem nos tempos fortes do compasso e têm a duração de semínimas, ao passo que as sílabas átonas estão escritas como colcheias e aparecem no tempo fraco ou na parte fraca do tempo. Esta forma de transcrição é extremamente rígida, pois não dá margem a nenhuma inventividade do ponto de vista musical. No ex. nº 24(b), o rigor do exemplo anterior é compensado com uma pequena quebra, no final da estrofe, em que as duas últimas sílabas são cantadas com a mesma duração (note-se que a última sílaba tônica é a mais acentuada de todas). No ex. nº 24(c), a métrica musical mantém a estrutura ternária do poema, dada pelo ritmo anfíbraco. A diferença com relação ao ex. nº 11 está em que se realiza uma

19 pequena variação rítmica no interior de cada compasso para deixar a sílaba tônica mais longa do que as restantes. No ex. nº 24(d), a transcrição musical é feita para um compasso quaternário simples, em que as sílabas tônicas aparecem como mínimas; notese que se inverte a relação entre as duas sílabas átonas, pois no ex. nº 24(c) a segunda nota do compasso é mais curta do que a terceira, enquanto que no ex. nº 24(d) a sílaba mais curta é a terceira. A transcrição presente no ex. nº 24(e) é apenas uma diminuição dos valores do ex. nº 24(d) à metade de sua duração, por isso, a notação em compasso binário simples. No ex. nº 24(f), é efetuada a transcrição para um tipo de compasso irregular e se produz, assim, uma valsa em cinco tempos, à maneira de Tchaikovsky. O princípio geral é o mesmo dos outros exemplos: a sílaba tônica é longa e as outras duas são breves. Em todas as transcrições comentadas acima, a organização rítmica está muito rígida, com pouca ou nenhuma variação além da distribuição de sílabas tônicas em notas longas e sílabas átonas em notas curtas. O ex. nº 24(g) demonstra uma possibilidade mais criativa de distribuição das sílabas tônicas e átonas no interior de cada compasso. Note-se que se respeitam as duas sílabas mais acentuadas da estrofe: en-can-ta e ba-lança. Ambas aparecem com a duração mais longa da frase (semínima). As outras sílabas estão distribuídas em colcheias e semicolcheias de modo a gerar variedade rítmica, com síncope interna (no interior do tempo), no primeiro compasso, e síncope de compasso, no terceiro. No terceiro compasso, a sílaba tônica [cor-] de corpo tem a mesma duração da sílaba seguinte sem que isso afete a compreensão do texto. Isso ocorre porque a sílaba tônica está colocada no tempo forte do compasso, o que não deixa dúvida quanto à sua acentuação fônica. No ex. nº 24(h), os versos estão transcritos para o ritmo dátilo da Escola de Notre Dame. Note-se que, na prática, o ritmo greco-latino que aparece no trecho é o anfíbraco. Entretanto, este ritmo não foi adotado pelos músicos de Notre Dame, que teriam considerado este trecho como uma estrutura dactílica. A análise da organização rítmica de melodias existentes pode esclarecer alguns pontos. O coco alagoano Lavadeira, cujo texto foi citado anteriormente, no ex. nº 17, demonstra uma maneira interessante de tratar os elementos da melodia com relação ao texto. Exemplo nº 25

20 Note-se que o primeiro grupo melódico do ex. nº 25, acima, é formado por dois motivos [(a) e (b)]. O motivo (a) é composto pela combinação de duas síncopes internas, sendo que o primeiro submotivo é construído pela repetição da mesma nota (dó) e o segundo é formado por um movimento conjunto ascendente; o motivo (b) é composto por apenas duas semínimas à distância de terça (notas: fá-lá). Este segmento é empregado para carregar o texto presente no primeiro verso, o que significa que há concordância entre a versificação poética e a fraseologia musical. No segundo grupo melódico, o motivo (a) é transposto à oitava superior, sendo que o primeiro submotivo permanece da mesma maneira (repetição imediata de notas) e o segundo submotivo é invertido (movimento conjunto descendente); o motivo (b) também é invertido, pois agora aparece como um intervalo de terça descendente 11. Na segunda frase, que inicia no quinto compasso, ocorre uma interessante retrogradação 12 dos motivos, pois o motivo (b) aparece antes do motivo (a). Isso acontece devido à mudança métrica que ocorre na poesia, pois o terceiro verso se torna um hexassílabo, em meio a uma estrofe em que predominam versos heptassílabos. Seria fácil manter a estrutura do verso e da melodia idênticos à primeira frase. Para isso, bastaria acrescentar mais uma vez o verbo foi, no início da segunda frase: foi, foi, foi, foi, lavadeira, conforme se pode perceber no exemplo nº 26. Exemplo nº 26 Essa versão, porém, manteria uma regularidade melódica desinteressante que não permitiria o impulso dado pelo salto de quarta justa descendente (tônica-dominante), no início da segunda frase. Note-se, na música original [ex. nº 25], como a segunda frase acrescenta vários elementos que geram diversidade melódica: os dois motivos têm sua posição retrogradada, no início da primeira semifrase; neste mesmo ponto, aparece pela primeira vez o intervalo de 4ªJ (dó-sol); o motivo (a), no sexto compasso, incorpora o intervalo de terça, característico do motivo (b), através de um arpejo sobre o acorde de ré menor; no início da segunda semifrase (compasso 7), o motivo (a) é ampliado através de um movimento por graus conjuntos, sem notas repetidas, que alcança a extensão de quinta justa descendente (lá-ré); o motivo (b) que aparece no último compasso reflete as notas extremas do início da melodia, que, no primeiro compasso, percorre a distância de dó a mi (primeira e última notas do compasso) e, no final, aparece espelhado pelo o salto melódico mi-dó. 11 Ocorre uma inversão tonal, pois o intervalo original era de terça maior ascendente, que é invertido para uma terça menor descendente. Esta modificação na qualidade do intervalo (maior/menor) deve-se à necessidade de manter a melodia no âmbito da tonalidade de Dó Maior. Por isto, chama-se inversão tonal: para manter a melodia na mesma tonalidade. 12 Retrogradação ocorre quando os elementos de uma estrutura musical são tocados de trás para frente.

21 Com tudo isso, se produz uma quebra na segunda frase que, além de evitar um tratamento automático dos motivos, dá movimento e organicidade à melodia para refletir a estrutura dos versos. Na Canção para uma valsa lenta, de Bruno Kiefer sobre o poema homônimo de Mario Quintana [cf. ex. nº 27], o ritmo ternário ascendente (anapesto) dos versos é transcrito musicalmente para um compasso binário simples, em que as sílabas tônicas aparecem no tempo forte, em semínimas, enquanto as sílabas átonas estão dispostas nos tempos fracos, em colcheias. É interessante notar como a passagem do primeiro ao segundo verso exige a interpolação de um compasso ternário em meio á métrica predominantemente binária. A relação com o acompanhamento também se torna interessante, pois a introdução instrumental aparece como uma valsa lenta com caráter de modinha, que se transforma em um ritmo de marcha para acompanhar o canto. Note-se como os movimentos melódicos do exemplo abaixo também refletem a estrutura métrica do poema, com saltos ascendentes enfatizando as sílabas tônicas 13. Exemplo nº 27 Mesmo quando a música é organizada com base em uma estrutura sem métrica definida, isto é, sem indicação de compasso, é possível definir uma seqüência rítmica perfeitamente adequada à prosódia poética. Tomaremos como exemplo a estrofe a seguir, de Lawrence Salaberry, a qual combina versos de diferentes extensões: o primeiro e o segundo são dodecassílabos; o terceiro verso tem quatorze sílabas; o quarto é um decassílabo. [Escansão] Já não sei mais o tom em que devo cantar. A natureza, quando alguém a contraria, Vinga-se. E o antigo elo de ouro que existia, Rompeu-se ou se desfez no cotidiano mar. Com base nessa estrofe, podemos criar uma estrutura puramente rítmica isto é, que prescinde da ordenação métrica e da organização melódica e se mantém plenamente de acordo com a composição rítmica irregular que compõe os versos. 13 As relações entre a métrica dos versos e a composição melódica serão abordadas mais detalhadamente no próximo capítulo.

22 Exemplo nº 28 No exemplo nº 28(a), acima, está uma seqüência rítmica em conformidade com o poema, em que são diferenciadas somente as sílabas longas e breves por meio de sons com duração longa e curta (como o ritmo não está adequado a nenhuma métrica específica, deve-se tomar a figura de

23 menor valor, a colcheia, como unidade de tempo); são empregados apenas três valores rítmicos: semínimas pontuadas para as sílabas tônicas acentuadas no verso, semínimas para as sílabas tônicas das palavras que não têm acentuação métrica no verso e colcheias para as sílabas átonas. Este processo mecânico não permite criar uma linha rítmica de caráter musical, apenas serve como exemplo de transcrição direta das sílabas à duração das notas. No ex. nº 28(b), a linha rítmica se torna mais elaborada pelo acréscimo de subdivisões da estrutura rítmica e emprego de síncopes e quiálteras que permitem manter a semínima como unidade de tempo. Neste caso, a rítmica musical se distancia da simples projeção da métrica do poema e já é elaborada levando em conta necessidades frásicas especificamente musicais. Por isso, nem sempre as durações coincidem com as sílabas átonas e tônicas do verso; o que não é um problema, desde que o texto seja corretamente projetado na rítmica musical, isto é, desde que se respeite a hierarquia métrica de cada um dos versos. No ex. nº 28(c), são acrescentados processos rítmicos aditivos que resultam em uma linha rítmica irregular e aperiódica, como ocorre na música indiana, por exemplo. Neste caso, a figura tomada como unidade que será somada para projetar o ritmo no tempo é novamente aquela de menor valor, isto é, a semicolcheia. O trecho foi escrito de forma a permanecer a semínima como unidade de tempo, porém a duração que dá origem às outras é a semicolcheia, pelo seguinte processo: nas primeiras quatro notas, tem-se uma adição rítmica que tem por base a semicolcheia, pois tem-se a seqüência de semicolcheias 1 + 2 + 3; o que gera a seguinte combinação de durações: semicolcheia + colcheia + colcheia pontuada que está escrita como uma semicolcheia ligada a uma colcheia, no ex. nº 28(c). Para finalizar o exemplo, foi realizada a soma de semicolcheias: 1 + 2 +3 + 4 + 5 + 6. O exemplo nº 29, abaixo, demonstra o que foi dito. Exemplo nº 29 O exemplo nº 28(d) apresenta uma organização similar à do ex. nº 28(c), porém com algumas adaptações que proporcionam maior liberdade à linha rítmica. Com estes processos de organização rítmica por adição, podem ser obtidas estruturas rítmicas mais maleáveis do que através do sistema de divisão mensural europeu. São bastante comuns esses processos rítmicos nas tradições musicais em que o canto deriva diretamente da língua falada, como ocorre na música indiana, na música africana e, pelo que se conhece dos manuscritos que chegaram até hoje, na música da Grécia clássica. Em grande parte, a canção popular brasileira onde o canto freqüentemente tem sua gênese como modulação pronunciada da fala se organiza com base em processos aditivos que resultam em síncopes,

24 contratempos, polirritmias e ritmos cruzados. Certamente, vem daí parte da riqueza rítmica da música brasileira. 5. ESTRUTURA MELÓDICA A melodia das duas primeiras frases da Canção para uma valsa lenta, de Bruno Kiefer, citada anteriormente no ex. nº 27, reflete precisamente a estrutura métrica dos versos, mesmo se forem abstraídas a disposição métrica e a configuração rítmica da música. Isso significa que, também no nível da pura distribuição das notas no tempo, a linha melódica está perfeitamente adaptada ao poema de Quintana. No ex. nº 30, abaixo, em que foram suprimidos os aspectos métricos e rítmicos para evidenciar a estrutura puramente melódica, percebe-se que, mesmo sem a quebra de compasso nem a diferenciação rítmica entre uma frase e outra 14, as duas frases estão claramente articuladas devido ao salto de oitava existente entre a última nota da primeira frase e a primeira nota da segunda frase. Exemplo nº 30 Além do uso da distribuição melódica das notas para demarcar finais e inícios de frase, ou de versos, como neste caso da peça de Kiefer, também é necessário que a linha melódica esteja de acordo com a métrica interna de cada verso do poema. Ao analisar o primeiro verso minha vida não foi um romance, percebe-se que existem três sílabas acentuadas, aquelas que estão sublinhadas acima. Cada uma dessas sílabas está enfatizada na melodia de maneira diferente. A sílaba vi, de vida, ocorre como uma bordadura superior de semitom, sendo enfatizada porque aparece emoldurada por repetições da mesma nota [cf. ex. nº 30(a)]. Se a sílaba vi fosse cantada com a nota lá, não se diferenciaria das outras notas que estão em volta dela e, por essa razão, não se destacaria no contexto; isso produziria indiferenciação das primeiras quatro sílabas do verso, ou seja, nenhuma de suas sílabas seria melodicamente acentuada. A palavra foi aparece com uma acentuação melódica mais enfática do que a sílaba anterior, pois aparece da maneira mais usual de se produzir acentuação através da melodia: a sílaba tônica é alcançada por um salto melódico ascendente e deixada através de um movimento de graus conjuntos descendentes [cf. ex. nº 30(b)]. Com isso, esta sílaba aparece inequivocamente acentuada pela distribuição melódica das notas, sem ser necessário que se 14 Para observar a quebra de compasso binário para ternário, na passagem de uma frase à outra, e para conferir a mudança rítmica de semínimas, no final da primeira frase, para colcheias, no início da segunda frase, ver o exemplo nº 27.

25 escute a estrutura rítmica ou métrica para perceber a acentuação métrica do texto. A acentuação melódica da sílaba man é enfatizada através de um processo mais sutil, pois aparece no decorrer de um movimento de graus conjuntos descendentes, conforme demonstra o ex. nº 30(c). Como a linha melódica não é suficiente, a acentuação desta sílaba deve ser reforçada por outros elementos. Na canção de Kiefer, a ênfase é dada pela forma como a nota mi é utilizada na frase. Esta nota é tratada como uma apojatura [cf. ex. nº 31], pois é uma nota estranha à harmonia de ré menor da parte de piano e resolve por grau conjunto descendente, na nota ré. Assim percebe-se que é possível projetar ênfase melódica em determinada nota através de sua função harmônica que, neste caso, está sendo reforçada pela colocação métrica da nota mi, no tempo forte do compasso. Note-se que a apojatura (nota apoiada) é uma dissonância colocada sobre o tempo forte ou sobre a parte forte do tempo; sendo característica uma acentuação em sua execução, que conduz a uma resolução posterior [cf. ex. nº 31: ap. resol. ]. Desde a modinha do século XIX, tem sido bastante comum o emprego de apojaturas com o significado de lamento ou suspiro, na música brasileira, como é o caso da Canção para uma valsa lenta, de Kiefer. Com isso, percebe-se que, às vezes, são necessários outros elementos para que determinada sílaba seja enfatizada melodicamente. Considera-se a apojatura como ênfase na melodia porque ela é considerada como uma figura de ornamentação melódica; como também o são a nota de passagem, a bordadura e a suspensão, entre outras notas estranhas à harmonia. Exemplo nº 31 Os processos de ênfase melódica das sílabas tônicas presentes no ex. nº 31(d) e 31 (e) do segundo verso da Canção para uma valsa lenta seguem o mesmo princípio empregado no item (b) do primeiro verso, isto é, a sílaba acentuada é alcançada através de um salto melódico ascendente e deixada por movimento conjunto descendente. O item (d) ainda é enfatizado pela repetição da nota ré imediatamente antes do salto para o fá. Cria-se uma configuração melódica interessante, neste ponto, pois ocorre uma transposição do motivo réfá-mi para dó-mi-ré, na passagem entre (d) e (e). A última sílaba do segundo verso é enfatizada principalmente do ponto de vista métrico [compare-se o ex. nº 27 com o ex. nº 30(f)], pois a simples repetição da nota lá não produz ênfase melódica, assim como a repetição de duas semínimas no compasso não produz ênfase rítmica. Assim, o que gera acentuação na sílaba tônica da palavra segredo, no final do trecho citado [cf. ex. nº 30(f)], é a função melódica da nota lá como dominante da tonalidade de Ré Menor e sua colocação métrica no tempo forte do compasso.

26 Outro processo que pode ser utilizado para gerar ênfase em determinados pontos do verso é o contorno melódico. Por contorno melódico (ou desenho melódico), entende-se a forma externa de determinada melodia, isto é, como esta melodia se projeta no tempo. O contorno melódico preciso do trecho citado de Kiefer está assinalado no ex. nº 32. A linha pontilhada indica a passagem de uma frase a outra. Exemplo nº 32 Note-se, no exemplo acima, como, com exceção da última palavra de cada uma das frases, o contorno melódico condiz plenamente com a métrica do texto: as sílabas tônicas são alcançadas por movimentos ascendentes e deixadas por movimentos descendentes. Nem sempre, porém, o contorno melódico detalhado se mostra útil para a compreensão das características de determinada peça de música ou para a definição dos melhores caminhos para uma boa colocação do texto em música. Para isso, às vezes é necessário abstrair os elementos para chegar a generalizações. Para analisar as melodias de canções que estava pesquisando, Charles Adams elaborou uma tipologia de contornos melódicos em que são levados em consideração os seguintes aspectos: Nota inicial da melodia ou frase Nota final da melodia ou frase Nota mais aguda da melodia ou frase Nota mais grave da melodia ou frase Com este método, Adams conseguiu sistematizar todas as melodias possíveis em apenas quinze tipos diferentes. O esquema abaixo demonstra a classificação dos contornos melódicos, conforme tipificados por Adams.