Mutação constitucional do conceito de mercadoria. Simone Costa Barreto Mestre e doutoranda PUC/SP

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Transcrição:

Mutação constitucional do conceito de mercadoria Simone Costa Barreto Mestre e doutoranda PUC/SP

Para reflexão: O conceito de mercadoria consolidado pela doutrina, e que vem sendo utilizado pelos aplicadores do direito, o qual pressupõe a noção de bem corpóreo, permanece inalterado diante do desenvolvimento tecnológico ocorrido nos últimos anos?

Nossa proposta: Análise semântica do termo mercadoria, à luz da norma constitucional de repartição da competência tributária.

Interpretação: contexto e inesgotabilidade. A realidade social apresenta papel relevante no processo de interpretação. O modo de agir da sociedade, aos olhos do intérprete, conduz à atribuição de certa significação para um dado enunciado.

intérprete norma jurídica sociedade

Karl Larenz: a interpretação nunca é definitiva, porque a variedade inabarcávele a permanente mutação das relações da vida colocam aquele que aplica a norma constantemente perante novas questões.

Normas constitucionais de outorga de competência: tipos ou conceitos? Tipos conceitos estrutura aberta, flexível, notas renunciáveis estrutura fechada, rígida, notas irrenunciáveis

CF brasileira: rígida e inflexível. Conceitos fechados. Visto que o signo mercadoria encerra um conceito fechado, pode o mesmo sofrer mutação? Inesgotabilidade da interpretação e contexto.

Consoante Misabel Derzi: Conceitos jurídicos e classificações não são, por sua própria natureza, imutáveis, eternos, mas sempre ligados às lentas mutações de significações ou às alterações legislativas. O sistema jurídico é histórico e aberto. Reconhecermos tendências conceituais classificatórias em um ou outro ramo jurídico, não significa optarmos por uma visão estática e fixa do Direito. Os conceitos jurídicos e as classes, ao longo do tempo, tendo em vista as potencialidades de criação legal ou as mudanças de significação, oscilam e se alteram. (...)

Conceito fechado mutação Mutação alteração do conceito

Art. 155, II da CF Mercadoria: valeu-se o constituinte do conceito preexistente desse signo, comum na linguagem jurídica antes mesmo da promulgação da Carta de 1988. Ricardo Guastini: os textos normativos e o uso comum dos juristas são a fonte para a busca das significações próprias do discurso jurídico, e não os dicionários.

Trecho do voto do Min. Cezar Peluso, no RE nº 346.084-6/PR: Como já exposto, não há, na Constituição Federal, prescrição de significado do termo faturamento. Se se escusou a Constituição de o definir, tem o intérprete de verificar, primeiro, se, no próprio ordenamento, havia então algum valor semântico a que se pudesse filiar-se o uso constitucional do vocábulo, sem explicitação do sentido particular, nem necessidade de futura regulamentação por lei inferior. É que, se há correspondente semântico na ordem jurídica, a presunção é de que a ele se refere o uso constitucional. Quando u amesma palavra, usada pela Constituição sem definição expressa nem contextual, guarde dois ou mais sentidos, um dos quais já incorporado ao ordenamento jurídico, será esse, não outro, seu conteúdo semântico, porque seria despropositado supor que o texto normativo esteja aludindo a objeto extrajurídico.

A partir do D. Comercial, a doutrina chega a um consenso sobre o conceito de mercadoria. Paulo de Barros Carvalho: (...) não se presta o vocábulo para designar, nas províncias do Direito, senão a coisa móvel, corpórea, que está no comércio(...) Roque Carrazza: (...) configura mercadoria o bem móvel corpóreo adquirido pelo comerciante, industrial ou produtor, para ser de objeto de seu comércio, isto é, para ser revendido

José Eduardo Soares de Melo: mercadoria, tradicionalmente, é bem corpóreo da atividade empresarial do produtor, industrial e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição para consumo, compreendendo-se no estoque da empresa, distinguindo-se das coisas que tenham qualificação diversa, segundo a ciência contábil, como é o caso do ativo permanente.

O conceito de mercadoria na jurisprudência. STF: RE nº 176.626-3/SP. O Ministro Relator Sepúlveda Pertence, ao analisar a incidência do ICMS sobre licenciamento de software, afirmou em seu voto que (...) o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo. O mesmo conceito foi adotado por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 199.464-9-SP, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão.

Cotejo do conceito de mercadoria recepcionado pela CF/88 com a realidade social somente os bens corpóreos são mercadorias? Pensamos que não. O mesmo bem que antes era adquirido fisicamente hoje pode ser adquirido virtualmente, o que não lhe retira a qualidade de mercadoria.

Pode-se dizer que houve mutação do conceito constitucional de mercadoria. Limites: (i) limites do signo; (ii) deve-se respeitar a competência tributária dos Municípios (essa mutação só é aceita desde que não implique invasão da competência dos Municípios); e (iii) somente os bens incorpóreos postos no comércio estão sujeitos ao ICMS.

STF -MC na ADI 1945 -trecho do voto do Min. Nelson Jobim: A pergunta fundamental, portanto, é essa: é possível a incidência de ICMS sobre a circulação de mercadoria virtual? A resposta, para mim, é afirmativa. (...) Existem, basicamente, duas formas, hoje, de aquisição de programa de computador:uma delas se dá pela tradição material, corpórea de um instrumento que armazena o mencionado programa. Tratava-se de forma usual e a mais comum de aquisição de programa de computador. Entretanto, a revolução da internet demoliu algumas fronteiras por meio da criação e aprimoramento de um mundo digital. A época hoje é de realizações de negócios, operações bancárias, compra de mercadorias, acesso a banco de dados de informações, compra de músicas e vídeos, e aquisição de programa de computador nesse ambiente digital. Não há nessas operações a referência ao corpóreo, ao tateável, mas simplesmente pedidos, entregas e objetos que são, em realidade, linguagem matemática binária.

Conclusão A evolução, o desenvolvimento é o que todo ser humano almeja. Esse desejo é natural do homem. Todos buscam progredir, e não retroceder. E o direito, na qualidade de objeto cultural que visa a disciplinar a conduta humana, tem que acompanhar essa evolução. Na medida em que há uma significativa mudança no comportamento da sociedade, o direito deve alcança-la. Por isso, a admissão de conceitos imutáveis vai na contramão desse mister. É inexorável admitir-se que, na interpretação das normas jurídicas já existentes no Texto Constitucional, inclusive aquelas que versam sobre a repartição da competência impositiva, os conceitos constitucionais são passíveis de mutação, dentro, porém, dos limites possíveis do signo. É o que ocorre com o signo mercadoria. Forçoso reconhecer-se que, com o passar dos anos, a significação desse signo passou a alcançar também os bens incorpóreos postos no comércio.

FIM