Prof. André de Freitas Barbosa Análise literária Luís de Camões (1524?-1580?) SONETOS (1595)
Aspectos da lírica camoniana Luís de Camões é o maior expoente do Classicismo literário e, por extensão, do Renascimento em Portugal (século XVI). A adoção do soneto, herdado do Humanismo italiano (séculos XIII e XIV) comprova a marca renascentista, em especial pela influência de Francesco Petrarca (1304-1374), maior divulgador da mais popular forma fixa do Ocidente. Camões se aproxima de Petrarca tanto pela forma quanto pelo conteúdo lírico (elogio da amada e celebração do amor após a morte). Ao fazer inúmeras referências mitológicas, Camões se aproxima, ainda, da cultura erudita de matriz clássica.
Camões dominou vários gêneros: teatro, poesia épica (Os Lusíadas, 1572) e numerosa obra lírica, da qual se destacam cerca de 200 sonetos. Até hoje ninguém sabe com segurança quantos sonetos foram escritos por Camões. Na 1ª edição (1595), há 65 sonetos; na 2ª edição (1598), aparecem 105; na edição de 1685, há 264; na edição de 1860, 352. Após 1900, o número de sonetos seguiu caminho inverso, pois começou a decrescer: ao longo do século XX, há edições que ultrapassam 200 sonetos, com recuos e avanços nem sempre justificáveis. Nesta aula usamos como base a coletânea do Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão, que compreende 166 sonetos.
O soneto é uma forma poética fixa, isto é, com regras claramente definidas e invariáveis. O modelo mais consagrado, conhecido como soneto italiano, possui 14 versos distribuídos em duas estrofes de quatro versos (quadras) seguidas de duas estrofes de três versos (tercetos). A maior novidade formal do Classicismo era a adoção de versos decassílabos (possuidores de 10 sílabas poéticas). Francesco Petrarca (1304-1374), mestre da poesia lírica humanista
O principal tema da lírica camoniana em medida nova é o amor, concebido tanto em sua dimensão racional (busca de definição, tentativa de compreensão de seus efeitos), quanto em sua manifestação mais sofrida (desilusão do eu lírico e morte da amada).
Ah! minha Dinamene! Assi deixaste Quem não deixara nunca de querer-te! Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te, Tão asinha esta vida desprezaste! Como já pera sempre te apartaste De quem tão longe estava de perder-te? Puderam estas ondas defender-te Que não visses quem tanto magoaste? Nem falar-te somente a dura Morte Me deixou, que tão cedo o negro manto Em teus olhos deitado consentiste! Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte! Que pena sentirei que valha tanto, Que inda tenha por pouco viver triste. (Soneto 101)
O poeta tratou também dos desencontros entre o indivíduo e o mundo, de que resulta uma poesia marcada pelo pessimismo e pela angústia existencial. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança: Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança: Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem (se algum houve) as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto, Que não se muda já como soía. (Soneto 92)
O eu lírico camoniano consegue ser, ao mesmo tempo, intimista (na referência a um conjunto de experiências particulares) e universal (atribuindo a essas experiências uma reflexão mais ampla):
Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; mas não servia ao pai, servia a ela, que a ela só por prémio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia passava, contentando-se com vê-la; porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se a não tivera merecida; começa de servir outros sete anos, dizendo: Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida. (Soneto 30)
Camões e o neoplatonismo amoroso O neoplatonismo é a base filosófica da maioria dos sonetos camonianos. Trata-se da retomada das ideias de Platão (428-348 a.c.), que imaginava dois planos distintos da experiência humana: o mundo sensível (onde o homem vive ligado à matéria) e o mundo ideal (atingido após um processo de ascensão espiritual). Segundo Platão, a experiência ideal seria a do amor espiritualizado o amor platônico. Em Camões, a temática do amor espiritual convive com a do amor carnal. Essa tensa coexistência permite perceber o que há de maneirista na poesia camoniana.
Muitos sonetos expõem o conflito entre as expectativas e realizações humanas. Dele advém o difundido Maneirismo de Camões, característica entendida como a expressão dramática das contradições humanas (expressão que está na origem da arte barroca).
Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor? (Soneto 5)
Há muito de maneirista também no reconhecimento das limitações da razão no esforço de definição do amor: Busque Amor novas artes, novo engenho, para matar-me, e novas esquivanças; que não pode tirar-me as esperanças, que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, conquanto não pode haver desgosto onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê. Que dias há que n alma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê. (Soneto 3)
EXERCÍCIO (Unicamp) Leia o seguinte soneto de Camões: Oh! Como se me alonga, de ano em ano, a peregrinação cansada minha. Como se encurta, e como ao fim caminha este meu breve e vão discurso humano. Vai-se gastando a idade e cresce o dano; perde-se-me um remédio, que inda tinha. Se por experiência se adivinha, qualquer grande esperança é grande engano. Corro após este bem que não se alcança; no meio do caminho me falece, mil vezes caio, e perco a confiança. Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança, se os olhos ergo a ver se inda parece, da vista se me perde e da esperança.
a) Na primeira estrofe, há uma contraposição expressa pelos verbos alongar e encurtar. A qual deles está associado o cansaço da vida e qual deles se associa à proximidade da morte? O cansaço da vida está associado ao verbo alongar, e a proximidade da morte está associada ao verbo encurtar. b) Por que se pode afirmar que existe também uma contraposição no interior do primeiro verso da segunda estrofe? Porque existe uma contraposição evidente entre gastar (no sentido de diminuir) e crescer ; além disso, em certo sentido pode-se contrapor a idade (a maturidade) como um bem e a palavra dano entendida como um mal ou desgraça. c) A que termo se refere o pronome ele da última estrofe? O elemento a que se refere o ele da última estrofe é o termo bem da estrofe anterior.
E assi darei vida a meu tormento; que, enfim, cá me achará minha lembrança sepultado no vosso esquecimento. (Soneto 29, terceto final) Até a próxima aula! Prof. André