O USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS NA CONTEMPORANEIDADE: UMA VISÃO PSICANALÍTICA Flávia Angelo Verceze (Discente do Curso de Pós Graduação em Clínica Psicanalítica da UEL, Londrina PR, Brasil; Silvia Nogueira Cordeiro* (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise, departamento de Psicologia e Psicanálise, UEL, Londrina PR, Brasil) Palavras chave: Toxicomania, psicanálise, contemporaneidade. contato: vercezeflavia@gmail.com O uso de drogas não é uma prática recente. Sabe se que o uso de substâncias consideradas tóxicas consiste numa prática milenar presente em diferentes povos e culturas. Todavia, em cada civilização ou época, a droga apresenta uma finalidade diferente dentro daquele grupo. Na contemporaneidade o uso de drogas está relacionado ao modo de vida e aos ideais vigentes no contexto social, caracterizado fundamentalmente por uma cultura do narcisismo e do espetáculo, na qual o individualismo e o autocentramento do sujeito adquirem proporções enormes (STACECHEN & BENTO, 2008). Assim, diante deste contexto, o que se tem verificado na clínica psicanalítica são sintomatologias que não seguem a lógica do conflito, do recalque e da representação, mas patologias com a presença de quadros narcísicos, ou seja, da ordem da ação. Essas são chamadas por muitos autores de psicopatologias do ato, dentre elas encontra se a toxicomania. Ou seja, encontramos nestas situações indivíduos que fazem uso prolongado de substâncias psicoativas e tóxicas (KEGLER, 2006). Partindo dessa concepção de droga presente na contemporaneidade e do pressuposto de que a subjetividade humana e as patologias são construídas a partir de articulações das relações culturais com a história individual do sujeito, o presente estudo teve como objetivo discutir o fenômeno da toxicomania na contemporaneidade. Todavia, é importante salientar que no presente estudo não defendemos a concepção de que essa patologia surgiu com a contemporaneidade. O que entendemos é que ela já existia, mas que a cultura contemporânea tem favorecido tanto em seu aumento, quanto no
surgimento de novas sintomatologias. Também é relevante dizer que nem todo consumo de drogas pode ser entendido como uma patologia do narcisismo. Segundo Birman (2003), o funcionamento psíquico dos toxicômanos difere do usuário recreativo da droga, que não são necessariamente portadores de alguma patologia narcísica. Foram realizada leituras de textos psicanalíticos que abordassem a temática das drogas. Focando principalmente a leitura de Freud e Lacan, até autores mais atuais que se encontram dentro da linha de pensamento desses autores. Freud não se dedicou especificamente à temática das drogas, embora o tema do uso e abuso de substâncias tóxicas apareça em alguns períodos ao longo da sua obra. Nos primeiros escritos de Freud em que aparece referência à toxicomania e adicção, datados anteriores a 1900 período pré psicanalítico, é possível perceber que o uso de drogas é associado às dependências em geral. Posteriormente, um texto de Freud que pode ser usado para entender o significado da droga para o sujeito é o Mal estar na Civilização (1930/1974). Neste, é possível perceber que Freud considera a intoxicação a medida paliativa mais grosseira e a mais eficaz em proporcionar uma redução do mal estar diante da exigência de renúncia de satisfação pulsional, pois a droga, ao influir sobre o organismo e alterar a química deste, promove efeitos no corpo, funcionando como um amortecedor de preocupações, o que leva o indivíduo a afastar se da pressão da realidade. Deste modo, a função da droga é vista como um modo substitutivo de satisfação da pulsão, uma solução encontrada pelos sujeitos para lidar com o mal estar próprio da cultura (MENDONÇA, 2011). Segundo Tomás (2008), quando Freud se refere às drogas como medidas paliativas, ele passa a ideia de que o uso de drogas seria um esforço de economia psíquica na busca do caminho mais curto para o prazer. O efeito das drogas sobre o psiquismo seria provocar uma regressão da libido para etapas anteriores do desenvolvimento, como o narcisismo primário, onde reinaria apenas o princípio do prazer. Dessa maneira, é possível perceber que, para compreender o fenômeno da toxicomania, o narcisismo primário descrito por Freud apresenta se como conceito chave.
Segundo Tomás (2008), o que está em jogo nesta patologia não é apenas a experiência de prazer que a substância tóxica provoca no organismo, mas uma experiência de prazer correlata à interferência provocada pela droga na posição do sujeito em relação ao objeto/realidade, um tipo de prazer que pode ser qualificado como narcisista. Seguindo este raciocínio apresentado na teorização de Freud, Lacan realiza sua contribuição a respeito da temática. Assim, ao traçarmos um panorama do percurso de Lacan a respeito das drogas, vemos que sua primeira referência ao tema ocorreu em 1938 em Os complexos familiares na formação do indivíduo, em que relacionou a toxicomania ao traumatismo psíquico do desmame. Diante disso, percebe se que para a teoria lacaniana, a adicção às drogas se configura como uma resposta ao sofrimento que demandaria uma simbolização, mas o sujeito responde através da ação, fazendo uma eleição do gozo que suprime a falta e só aceita o gozo que é obtido no próprio corpo. Deste modo, foi possivel perceber que Lacan parte de sua descoberta analítica sobre a divisão do sujeito para articular o recurso às substâncias tóxicas com seu conceito de gozo. O termo gozo na obra de Lacan aparece desde 1938 até o fim. No começo, ele se confunde com o termo prazer. Mas, depois, se diferencia e torna se um conceito central na tópica lacaniana (LAZNIK PENOT, 1990). A respeito da toxicomania e o gozo, muitos autores seguindo o pensamento de Lacan, vão dizer que o toxicômano é aquele que recusa a castração, permanecendo no campo do gozo (não fálico). Isto é, o toxicomano encontra um modo de substituição da sexualidade, conjugando amor e gozo em só produto, a droga. Assim, o que fica bem evidente no fenômeno da toxicomania é a questão do esgarçamento dos vínculos sociais do sujeito, fazendo com que suas relações se constituam de forma extremamente precária e frágil, reduzindo aos poucos seu círculo social. A respeito disso, Oliveira (2010) refere se à toxicomania como uma técnica de manipulação do próprio corpo com o objetivo de extrair lhe gozo. E trata se de um gozo particular, regulado pelo Outro, sendo, portanto, não fálico. Assim, a toxicomania visa
recuperar parte do gozo primitivamente perdida a partir da inscrição da função fálica, ou seja, a inscrição do sujeito no simbólico. Desta maneira, o toxicômano se recusa a entrar no gozo fálico, optando por um gozo mortífero, fazendo com que a dimensão fálica se torne radicalmente ausente, o que o leva a recusar todos os valores impostos pelo gozo fálico, que constituem a vida em sociedade. Já em sua conferência O lugar da psicanálise na medicina (1966/2001), Lacan vai compreender os tóxicos enquanto produtos da ciência, isto é, um caso de materialização do efeito real da ciência sobre o corpo. Seguindo este raciocínio, no seminário XVII, O avesso da psicanálise, Lacan (1969 1970/1992) apresenta as formas de gozo no mundo atravessado pelo discurso da ciência. Assim, embora neste texto ele não tenha feito uma alusão explícita ao uso de drogas, ele apresenta uma ideia importante para a compreensão do tema: o conceito por ele descrito como gadgets, termo inglês que caracteriza invenções forjadas pela ciência, sem valor de uso, mas com função de oferecer aos sujeitos meios de uma fictícia recuperação da satisfação pulsional. Desta maneira, o recurso à droga estaria visando à recuperação desta satisfação e exercendo efeitos sobre o corpo dos sujeitos, o que tornaria possível uma relação de gozo (OLIVEIRA, 2010). Segundo Santiago (2001), essas fabricações da ciência, por oferecerem ao sujeito os meios de uma recuperação da satisfação pulsional, fazem com que este se ligue a eles, até mesmo agarra se e fixa se neles. E é nisso que consiste o efeito real da ciência sobre o corpo. No caso das drogas, elas passam a responder à questão do gozo do corpo, ou seja, a ciência fornece operadores químicos capazes de se constituírem em reguladores da própria economia libidinal, cuja única finalidade é extrair satisfação. Desta maneira, é possível perceber que, embora Freud e Lacan não tenham se debruçado muito sobre a temática das drogas, muitos autores atuais utilizam se de conceitos apresentados por eles para entender o fenômeno da toxicomania na pós modernidade. Com isso, conclui se que atualmente dentro do campo psicanalítico, especialmente sob um referencial lacaniano, a toxicomania é entendida como uma nova forma de sintoma da
pós modernidade. Isto é, entendem o fenômeno da adicção/toxicomania fazendo parte das novas formas de adoecer, chamadas de psicopatologias do ato, ou do vazio, ou do narcisismo. E que tais patologias não são concebidas como um sintoma no estrito sentido freudiano, por não se constituirem do mesmo modo que as clássicas formações do inconsciente, que implicam um retorno do recalcado e envolvem a vertente simbólica. São patologias em que a elaboração psíquica cede lugar à ação, abarcando sujeitos com uma importante fragilidade narcísica. E que essas estão muito relacionadas ao contexto social da sociedade pós moderna, que apresenta como característica o autocentramento e o individualismo. Neste sentido, a toxicomania, juntamente com outras doenças, como, por exemplo, a bulimia, a anorexia e ataque de pânico, caracterizam se como um sintoma pós moderno, que serve para evitar a dor e fugir da subjetividade. Referências BIRMAN, J. (2003). Dor e sofrimento num mundo sem mediação. Revista Cultura. v. 95 Petrópolis: Ed. Vozes, p. 25 29. LACAN, J. (1938/1985). Os complexos familiares na formação do indivíduo, ensaio de análise de uma função em Psicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. LACAN. J. (1966/2001). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana: Revista brasileira internacional de psicanálise, n. 32. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise. LACAN, J. (1960 1970/1992). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. LAZNIK PENOT, M. C. (1992). A construção do conceito de gozo em Lacan. Revista Percurso, v. 5 n.8 Disponível em: http://revistapercurso.uol.com.br/pdfs/p08_texto01.pdf Acesso em: 24 nov de 2014 MENDONÇA, J. R. S. (2011). A droga como um recurso ao mal estar na civilização. Psicologia em revista, Belo Horizonte, v.17, n 2, p. 240 260. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/viewfile/p.1678 9563.20 11v17n2p240/3242. Acesso em: 25 nov 2014. KEGLER, P. (2006). As patologias do narcisismo e a clínica psicanalítica: novas configurações subjetivas na contemporaneidade. Monografia, Programa de Graduação em
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