A TRAJETÓRIA DE TER: DE VERBO PREDICADOR DE POSSE A VERBO FUNCIONAL DE EXISTÊNCIA



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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul A TRAJETÓRIA DE TER: DE VERBO PREDICADOR DE POSSE A VERBO FUNCIONAL DE EXISTÊNCIA Joana Mendes de OLIVEIRA (UFRJ) Marcia dos Santos Machado VIEIRA (UFRJ) ABSTRACT: This study focuses the phenomenon of gramaticalization that occurs with ter. Depending on the context, this verb can be either a full predicate or a non -full predicate, that is, it can be the main responsible for giving the thematic roles to the arguments of a sentence or it can be a functional verb that denotes existence. The data from which the occurrences of ter were taken belong to Brazilian and European oral and written texts. By developing the qualitative and quantitative analysis of them, this work intend to investigate and show the aspects related to a functional categorization of ter when it participates in existencial expressions. It also tries to stabilish the predicative characteristics of such expressions. KEYWORDS: Grammaticalization; Nuclear verb; Functional verb; Portuguese varieties. 1. Introdução Sabe-se, por conta de fatores semântico-cognitivos e sócio-discursivos, que os itens lexicais de uma língua se sujeitam ao processo de mudança categorial em virtude do qual sofrem transformações tanto lexicais quanto gramaticais. Nas variedades brasileira e européia do Português, o verbo ter revela-se como um desses itens. Neste estudo, pretende-se expor alguns aspectos do caráter multifuncional de ter já identificados na pesquisa que se desenvolve no âmbito do Projeto Formação e expressão de predicados complexos: polifuncionalidade verbal. Focalizam-se, nesta comunicação, as extensões de uso/sentido desse item que ocorrem em predicações possessivas ou existenciais. Parte-se do pressuposto de que, em sua trajetória de verbo predicador de posse a verbo funcional de existência (cf. FRANCHI et alii, 1998: 110), ter deixou de apresentar, pelo menos de modo transparente em determinados casos, certas propriedades relativas à sua configuração semântica e sintática e passou a assumir outras. Interessa à pesquisa em que se insere este trabalho estabelecer as propriedades prototípicas de cada emprego de ter e a relação entre suas interpretações possessiva e existencial. Tendo em vista a relação entre os empregos possessivo e existencial de ter e haver, busca-se, ainda, tecer considerações a respeito da variação de ter e haver em construções existenciais na fala de brasileiros e portugueses, principalmente no que tange aos condicionamentos sociais e lingüísticos dessa alternância. Conta-se com a análise quantitativa e qualitativa de dados coletados em: (i) entrevistas do acervo da equipe VARPORT e dos projetos APERJ, CRPC-Lisboa, NURC-Rio e PEUL; e (ii) periódicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional de Lisboa. Para a pesquisa de aspectos formais e semântico-discursivos relativos à categorização funcional de ter em expressões possessivas e existenciais e de sua trajetória de verbo predicador a verbo funcional, investigam-se os dados orais e escritos à luz de pressupostos funcionalistas de DIK (1997), TAYLOR (1995) e HOPPER (1991). Da Teoria da Gramática Funcional holandesa, seguem-se (i) orientações relativas à configuração semântica e estrutural de predicações, (ii) regras de formação e expressão de predicados complexos, (iii) a noção de operador gramatical. O conceito de categorização gradual apresentado por TAYLOR e o conjunto de parâmetros/princípios de gramaticalização descritos por HOPPER também colaboram para o tratamento do tema que aqui se propõe. Com o intuito de poder examinar a variação de ter e haver no Português, conjugou-se, na medida do possível, esse aporte funcionalista ao enfoque teóricometodológico da Sociolingüística Laboviana. 2. Funções de ter no Português Nos 359 dados de ter e haver obtidos na primeira amostra que se constituiu para a investigação do tema, identificam-se os seguintes tipos de emprego:

A. Ter predicador, com valor similar ao de possuir (1) #D- senhor J há muitos problemas assim sei lá de drogarias de mercearias pequenas e coisas assim em relação à concorrência dos supermercados?#i- há há há muito muito muito porque o supermercado eles não ganham dinheiro estão-se valendo é dos capitais que têm [PE oral popular, faixa 1, masculino 06] (2) "(...) Olha, o Paulinho vai sempre lá para Mendes, que ele tem casa lá. Vai sempre para lá, fim de semana vai para lá. Aí, ele fica lá, na casa dele lá. Ele adora aquilo, não é (inint) tem piscina, tem sauna, tem tudo lá. Ele adora aquilo. "(PB oral, PEUL, inq. 47, faixa B, nível2, pág.: 237) B. Ter predicador, com outros valores ( conter ; reter / hospedar ; manter ; guardar ; adquirir; entre outros) (3) faz um exame e vão a essa apanha das algas e o marítimo diz que tem muita influência porque o peixe arribava não é? e criava-se que era coisa da da natureza e criava-se e depois - a costa tinha sempre peixe e agora desde que a apanha das algas tem sido sempre menos menos menos menos e carapaus peixes miúdos choupa robalos e coiso é um caso sério [PE oral popular, faixa 3, masculino 02] (4) eu tive em minha casa aqui em Ipanema uma vez um garoto ele era do Mato Grosso, está? Ele veio prestar o vestibular aqui. [PB oral, PEUL, inq. 37, faixa A, nível 2, p. 93] (5) eu acho Madureira ótimo... e nós tivemos muito sucesso na Cultura Inglesa... fez mu ito sucesso... ( ) no ano de setenta e nove... nós tivemos mil e setecentos alunos lá... não de Madureira porque muito pouca gente mora em Madureira... mas às vezes é ( ) redondeza né...redondeza... [PB oral, NURC90, faixa 3, masculino 01] (6) ninguém paga sabe a colônia faliu eu estou atrasado há um ano ah porque ah eu pago tenho recibo tudo guardo todos os recibos (quer) ver eu pago a colônia que pra ajudar a colônia que que a colônia eu quero levar meu filho no dentista tem um dentista quero levar (ela) no dentista e eu também vou no dentista [PB oral popular, APERJ, faixa 2, masculino 05] (7) TER predicador de posse (sujeito inanimado) #INF L2: "...relativos às empresas, né? Às sociedades anônimas...ah...às empresas estatais... aquele conjunto de papéis e os : os títulos vão tendo valores à medida da... da lei da oferta e da procura..." (PB oral, NURC-RJ, inq355, faixa B, nível 3, pág.: 96) (8) Seu anel de grau deve ter a garantia Masson (...) (PB escrito, VARPORT, O Globo, 12/01/1955, E-B-93-JA-015) C. Ter/haver operadores funcionais, com valor semelhante ao de existir (9) última vez que estiveram no Maracanã o carro dele foi roubado... nem sinal... quer dizer aí... meu pai tá meio... tá meio desiludido... né tá com... quase setenta anos... (ele) num vai mais não... mas deve ter MUIta gente que eu num conheço... muita gente mesmo se afastando... [PB oral, NURC90, faixa 2, masculino 02] (10) "(...) olhe a moda deste ano acho engraçada. Acho, porque é, é tem muita coisa por onde escolher (...)"(PE oral, CRPC-PF, inq.653, faixa B, nível 2, p.169) (11) #D-E assim, por exemplo, em termos de, eh, de você achar importante, como é que você acha uma moça bem vestida? O que você gosta da moda atual das mulheres?#l-(inin t.) Bom, eu, eu gostaria de analisar esse... Eu analisaria essa, essa tua pergunta em relação a uma menina que eu conhecesse, certo? Quer dizer, eu acho que eu vendo assim uma, uma mulher bem vestida na rua, uma mulher que eu não conheço, eu posso, a impressão que ela pode me dar é a impressão de estar, de asseio ou não, né? Agora uma menina que eu conheço, que eu posso identificar que ela, o modo dela vestir, o modo dela se vestir, quer

dizer, identificar com os traços do caráter dela, do, do comportamento dela, entende? Pode-se, eh, observar que há uma certa assim coerência, que há, que o modo de vestir é um reflexo do caráter dela. [VARPORT - PB oral culto 70, Oc -B-70-1m-001, Setembro de 1972 Rio de Janeiro/RJ, 25 anos, Masculino, Professor] (12) #I - os americanos fazem exactamente o contrário. viram que há um europeu que descobriu um, digamos, um determinado princípio científico e, eh, desenvolvem-no até mais não poder ser. ora é um pouco nesta, sobre este aspecto que eu vou, vou agarrar em determinados princípios, que estão, não digo em[...], eh, embrionários, mas pouco mais, e que, eh, serão depois aplicados a, a assuntos sérios com determinada rentabilidade, não é? #D - do que aqui em Portugal. #I - do que aqui em Portugal, pois. [VARPORT - PE culto 70, Oc-P-70-3m-001, 57 anos, Masculino, Engenheiro agrónomo (Agronomia)] D. Ter/haver operadores funcionais, com outros valores ( ocupar ; acontecer / ocorrer / dar-(se) ; completar um dado período de tempo ) (13) Discordamos, frontalmente, dos que consideram o PDT próximo do fim, ante a derrota, na sua segunda tentativa de chegar à Presidência da República. Repelimos, também, a idéia de que não teremos maiores espaços na política do Rio de Janeiro com a perda do Palácio da Guanabara. [PB escrito, Editoriais VARPORT, O Dia, 10/01/1995, PDT passa à oposição, p.06, E-B-94-JE-006] (14) #I aí os (cinco) ficam ancorado esperando o tempo passar aí por exemplo eu peguei eu estava pescando dourado em frente ao Farol - o Arraial do Cabo né umas cinco hora pro Farol do do Cabo o local aí bateu um temporal assim rapidamente entendeu? foi o noroeste o vento noroeste aí eu fiquei assim poxa é como pedir a Deus que ajude a gente #D2 - graças a Deus não aconteceu nada #I - é aí graças a Deus não houve nada [ VARPORT PB popular, Op -B-90-1m-003, Fevereiro de 1995, Macaé/RJ, 35, Masculino, Pescador, 4ª série do Ensino Fundamental] (15) #I - deixo a escola e perco as minhas amigas, então vou para a escola embora realmente esteja em oposição com a professora. bem, até ao final do primeiro período não houve mais nada de especial, eu no, no final do período procurei falar com a senhora, ah, pedirlhe uma opinião, ah, aliás mostrando-me aberto mesmo a uma crítica que porventura me focasse determinados aspectos que pudessem ser susceptíveis de correcção. [VARPORT - PE culto 70, Oc -P-70-2m-001, A gravação foi realizada entre 1970 e 1974,43 anos, Masculino, Secretário geral da Inspecção do Desporto Universitário, Licenciatura] E. Ter/haver operador funcional com comportamento semelhante ao de um operador de verbalização (verbo-suporte). (16) #DOC.: "hum agora vocês vendem para o atravessador ou para essa... esse mercado aqui?" #INF.: "o mercado aqui não tem... / não te m muita saída de camarão por exemplo e/ e pescadinha é muita quantidade Macaé não consome todas as pescas de Macaé (...)" (PB oral, APERJ, inq. MAC - 105 - B - 1, pista 3, nível 1, l. 150) (17) #INF L2: "...eu vou comprar o título não sei de quê já que estamos tratando de...mercado de capitais...eu não tenho essa preocupação...eu..." (PB oral, NURC-RJ, inq355, faixa B, nível 3, pág.: 96) (18) #I - porque a a rede que/ que como é o rapaz acabou de dizer uma rede de malha miúda uma rede miúda então ela fica de uma maneira embatumada devido o lodo e não há condição do peixe malhar então essa rede não pode penetrar no Paraíba nessa época só pode entrar aquela de malha grande uma malha mais lassa a gente só apanha o peixe maior[varport PB popular, Op-B-90-2m-008, Fevereiro de 1992. São João da Barra- RJ, 44 anos, Masculino, Pescador, 4 a. série do Ensino Fundamental] (19) LOC - por exemplo... eu sou de família... de família fundadora da cidade do Rio de Janeiro... então... eh... minha avó... pra você ver... minha avó tinha... abria... havia aquela... aquele pessoal que tinha um status... que tinha dia certo pra abrir salão... pra receber... não

é? então... agora você vê... houve uma queda financeira... ela não resistiu... até morreu muito nova... estas mulheres antigamente se davam ao luxo de não agüentar o... o rojão como a gente agüenta agora... né? [VARPORT - PB oral culto 70, Oc-B-70-3f-002, Março de 1978 Rio de Janeiro/RJ, 58 anos, Feminino, Advogada] (20) #I - eh, eu não acho nada incorrecto, até acho que se, se eles brincarem com coisas não específicas seria mais certo. quer dizer, formarem eles os próprios brinquedos. até se tende muito para essa #D - hã. #I - orientação. mas, eh, há aquela tendência sempre para dar uma boneca à menina, não é. e elas depois #D - [...]. #I - acabam por la[...], por lidarem com as bonecas como se fossem pessoas, não é. quase assim. mas há realmente crianças que não se interessam tanto. talvez a minha seja uma delas, não sei se é por causa do irmão se não, mas... [...].[VARPORT - PE culto 70, Oc -P-70-1f-004, Anos 70. Lisboa, 32 anos, Feminino, Médica, Curso de medicina] E, ainda, F. Ter híbrido ( opaco ), cujo estatuto lexical (de predicador) ou semi-gramatical (de verbo funcional) não é transparente devido à ocorrência de um pseudo -sujeito /sujeito expletivo ( você, a gente ou nós com referência indeterminada/arbitrária). (21) isso é uma vista que né todo mundo gosta de ver porque você chega aqui no farol você olha pra fora aquilo é um é uma beleza porque o mar você tem aquela caída porque o mar é mais alto que a lagoa o mar é mais alto e aí você vai ver quando o mar é alto ele vem [PB oral popular, APERJ, faixa 3 masculino 01] (22) Não cheguei nem, e Kioto, não fui até Tókio, mas a impressão que você tem, é isso, que é uma cidade, é um país assim super-avançado mas que por exemplo em Kioto você tem aquela confusão da rua, trânsito carro pra caramba, mas você tem aqueles castelos de imperadores antigos, não sei o quê. [PB oral, NURC90, faixa 1, feminino 01] (23) (...) eu falei de música portuguesa, sob[re], nós temos na península ibérica, também temos a considerar a música espanhola (...)"(PE oral, CRPC-PF, inq.1242, faixa A, nível 3, p.277) G. Ter híbrido ( opaco ), cujo estatuto lexical (de predicador) ou semi-gramatical (de verbo funcional) não é transparente devido à possibilidade de interpretação das construções abaixo como contendo um sujeito-possuidor elíptico (de referência indeterminada, nos dois primeiros exemplos, ou determinada ( o ninho ), no terceiro). O terceiro exemplo permite também a leitura de que [no ninho] tinha passarinhos (...) (24) Na Covilhã, [nós] temos a Universidade Católica do Porto, e a Universidade do Porto, a Universidade de Aveiro, e a Universidade do Minho. (PE oral, CRPC, faixa 2, nível 1, masculino) (25) Nos soalhos Fungão Não! Teolin Sim! A tinta TEOLIN vem substituir o velho processo de encerar as casas e de dar cabo da paciencia das CRIADAS. Para [você/alguém] ter um soalho brilhante basta pinta-lo com "Teolin" (PB escrito, VARPORT, O Século, 11/08/1930, E-P-92-JA-036) (26) Encontrei o ninho e tinha passarinhos pequenininhos (PE oral, CRPC, nível 1, faixa 1, masculino) 2.1 Ter predicador: configuração prototípica de predicações de posse Como elemento nuclear da predicação, ter designa um estado de coisas [-controlado] e [-dinâmico] entre duas entidades -participantes que ocupam as posições argumentais de Sujeito e Objeto e se manifestam por meio de sintagmas nominais. Expressa um estado de posse ou, mais genericamente, um cenário em que se relacionam possuidor e objeto possuído, todo e parte ou entidade que possui/contém

e entidade que é possuída/está contida. Por exemplo: (27) inclusive era um pai de um pescador da nossa colônia era o o que tinha uma ca/ Jorge Pereira Viana que tinha uma canoa chamada Adelaide Viana que era essa canoa inclusive o nome da canoa é são os barraco de madeira que antigamente era a colônia era fei/ era nos barraco de madeira onde o pessoal guardava o seu material aqui dentro [PB oral popular, APERJ, faixa 3 masculino 05] (28) #D - mas não tem como subir por quê?#i - a barragem não tem escada não é igual a do Pará (PB oral popular, APERJ, faixa 2, masculino 04) (29) Mesmo por telephone. Pode comprar o seu caminhão usado. Basta exigir que elle tenha a Etiqueta Azul. (PB escrito, VARPORT, Correio da Manhã, 11/11/1937, E-B-92-JA-027) (30) GRIPE sómente ataca os que têm o organismo enfraquecido e uma das causas mais communs de diminuição da resistência organica é o excesso de acidez. (...) (PB escrito, VARPORT, Correio da Manhã, 05/09/1939, E-B-92-JA-036) (31) pois praticam desses preços baixos e as despesas muito elevadas porque está a ver por exemplo eles eles têm ali aquela casa ali no na venda nova que me consta que têm à volta de uns quatrocentos empregados numa média de quatrocent/quatro contos cada mês para cada um empregado alguns ganham mais outros ganham menos veja faça-lhe as contas quanto é que eles têm quanto é que têm de pagar por mês muito embora fazendo muito negócio mas não têm lucros compatíveis com as despesas (PE oral popular, faixa 1, masculino 06) Percebe-se que o verbo predicador ter não impõe condições semânticas restritas aos termos que ocuparão as casas argumentais de Sujeito e Objeto, como fazem outros verbos transitivos. Por mais que, no corpus, se mostre bastante produtivo o preenchimento do argumento interno por um termo com propriedades de entidade inanimada e concreta, nem sempre isso ocorre: identificam-se, por exemplo, termos que designam relações interpessoais, estados psicológicos (ou seja, usos [+ abstratos]). (32) #INF L1: "eu tenho meus irmãos rapazes que o que eu estiver contando para você... você é minha grande amiga...eu conto para eles até as minhas...vamos dizer... as minhas mais íntimas experiências..." (PB oral, NURC-RJ, inq147, faixa A, nível 3, pág.: 59) (33) O govêrno parece muito preocupado, nesta altura, com as manifestações ditas terroristas, mas que de terrorismo efetivamente nada têm, não passando de isolados golpes de mão objetivando, com segundo sentido, provocar a opinião pública. (PE escrito, Editoriais VARPORT, Diário da Noite, 01/02/1962, Solução ilegal agita congresso, E-B-93-JE-005) (34) Devido ao grande sucesso das viagens do Catamarã até a ilha de Paquetá, a transtur vai colocar o Catamarã em operação nesse final de semana prolongado. Assim você vai ter mais rapidez, conforto e segurança para comemorar a sua independência. (PB escrito, VARPORT, O GLOBO, 05/09/1998, E-B-94-JA-004). Quanto à posição de argumento externo, verifica-se que nesta podem ocorrer termos com diversas características: (i) com referência a entidades mais ou menos animadas, concretas ou abstratas, mais ou menos definidas/determinadas no discurso; (ii) com papel semântico de beneficiário/possuidor, experienciador, tema, localização (espacial ou temporal), ou simplesmente com função semântica zero [Ø] (entidade primariamente envolvida num estado), já que, de acordo com DIK (1997), aquelas seriam funções secundárias em relação a esta. Os enunciados abaixo ilustram essas possibilidades: (35) (Sujeito inanimado) #INF L2: "...relativos às empresas, né? Às sociedades anônimas...ah...às empresas estatais... aquele conjunto de papéis e os : os títulos vão tendo valores à medida da... da lei da oferta e da procura..." (PB oral, NURC-RJ, inq355, faixa B, nível 3, pág.: 96) (36) (Sujeito possuidor animado/concreto/indefinido) a gente vê assim um dourado é que o dourado é peixe de água limpa e com aquilo ali que às vezes muita gente diz assim ah se a gente tivesse uma máquina pra gravar que às vezes o peixizinho levanta (a) sai principalmente a a (tuninha) que é o boto né bate e levanta você está com o motor ligado ela vem atrás do barco (pô) mas aquilo é uma é uma beleza pra gente né (PB oral popular,

APERJ, faixa 3 masculino 01) (37) (Sujeito tema inanimado/concreto/definido) Procura uma casa estilo neoclássico que tenha um vitral de Santo António no cimo das escadas e azulejos azuis com florzinhas amarelas na casa de banho? É bem provável que o BESCasa tenha. (PE escrito, VARPORT, Público, 23/09/2000, E-P-95-JÁ-037) (38) (Sujeito possuidor indefinido) #INF F: "Porque, por sinal, eu acho protestante- sou contra. Cada um tem lá a sua religião, agora, eu- a minha sogra está doente e eles visitam, não é? " (PB oral, PEUL, inq29, faixa B, nível2, pág.: 186) (39) (Sujeito locativo) #INF L1: "morando em Ipanema...eu sou suspeita para falar...mas ( ) sinto tanto... eu não posso deixar de pensar em outras pessoas que ( ) Ipanema tem um clima..." (PB oral, NURC-RJ, inq147, faixa A, nível 3, p. 56) (40) (Sujeito experienciador) só que o trabalho é tanto, e a confusão é tanta que, e o cansaço neste momento, ah, as remodelações e os papéis, a burocracia, ah, e a fadiga que os professores têm neste momento, em relação ao ensino, também, começa a ser de tal, de tal maneira forte, que, que as pessoas não querem. não querem, evitam, participar, a não ser uma ou outro professor (PE oral culto, faixa 1, feminino, nível 02) Estruturalmente, as construções possessivas com ter apresentam a seguinte configuração no corpus investigado: [TER (x 1 : SN) Sujeito e (x 2 : SN) Objeto ] Predicação. 2.2 Ter existencial 2.2.1 Distribuição dos dados por contextos extralingüísticos 2.2.2.1Variedade nacional A distribuição dos dados de ter no corpus corrobora a hipótese inicial desta pesquisa (fundamentada em outros estudos a esse respeito) de que, apesar de ocorrer no Português Europeu, sua extensão de sentido existencial tem maior expressividade de uso no Brasil. Variedade Nacional POSSE EXISTÊNCIA Oco % Oco % P.R. PB 61/101 61% 40/101 39% 0,610 PE 59/64 93% 5/64 7% 0,330 2.2.2.2 Faixa etária Conforme se visualiza na tabela a seguir, ter existencial é empregado por falantes das três faixas etárias consideradas. Entre falantes mais velhos apresenta uma produtividade um pouco maior. Faixa etária POSSE EXISTÊNCIA Oco % Oco % P.R A (18-35) 22/35 63% 13/35 37% 0,420 B (36-55) 28/42 66% 14/42 34% 0,453 C (56-...) 15/33 46% 18/33 54% 0,642

2.2.2.3 Nível de escolaridade Apesar de o quadro abaixo exibir um percentual um pouco menor de ter existencial entre os falantes com terceiro grau de escolaridade, não se pôde captar, pelo menos até esta etapa preliminar da pesquisa, o condicionamento da variável nível de escolaridade que se imaginava: maior tendência ao emprego de ter existencial entre falantes menos escolarizados, uma vez que, submetido à pressão normativa que envolve o processo de escolarização, o falante tenderia a adquirir a variante padrão, substituindo o ter existencial por haver existencial. Grau de escolaridade POSSE EXISTÊNCIA Oco % Oco % 1 25/41 60% 16/41 40% 2 9/23 40% 14/23 60% 3 31/46 68% 15/46 32% 2.2.2 Aspectos lingüísticos Além de significados distintos (de existência, apresentação, acontecimento/evento, ilustrados pelos enunciados do item D no início da seção 2 deste artigo), as construções existenciais caracterizam-se por resultarem da articulação de ter/haver com um constituinte interno preenchido por um termo com função referencial e, em alguns casos, com um pseudo-sujeito /sujeito expletivo com referência arbitrária/impessoal, do tipo você, ele, a gente e até nós (indefinido). Observem-se os exemplos do item F. De acordo com FRANCHI et alii (1998), em sentenças existenciais ter/haver não se comportam como núcleos da predicação e, conseqüentemente, transferem para um constituinte predicativo à direita o papel de predicador da sentença. Esse constituinte pode ter a estrutura de um sintagma preposicional ou adverbial (com sentido de localização no espaço ou no tempo), um sintagma oracional (uma oração finita ou reduzida de gerúndio/infinitivo, com sentido de apresentar um estado de coisas ou uma propriedade em relação a uma entidade contida/possuída/experimentada (argumento interno)), conforme nos exemplos: (41) "(...) olhe a moda deste ano acho engraçada. Acho, porque é, é tem muita coisa por onde escolher (...)"(PE oral, CRPC-PF, inq.653, faixa B, nível 2, p.169) (42) Sei que com ele sempre existia carnaval. Então teve um ano aqui que ele se aborreceu e não quis (...) (PB oral, PEUL, inq. 32, faixa C, nível 2, p. 66) O SN argumento interno portador da noção de objeto contido/possuído/experimentado (conteúdo) não tem relação gramatical com ter, mas com o constituinte predicativo, que seria o responsável pela atribuição de papel temático ao SN argumento interno. Cogita-se a hipótese de que, na verdade, ter nessa condição partilhe com o constituinte a função predicante de estabelecer o estado de coisas em relação ao argumento interno com traços semânticos de objeto possuído/conteúdo/estado psico-social experiementado, constituindo, portanto, uma espécie de predicador complexo (ter + constituinte predicativo). Teríamos, então, a seguinte configuração: [TER [ (x 1 : SN) [SP/SAdv/SOpredicador] ] Predicação ] Predicação. Essa hipótese será objeto de apreciação em outra etapa da pesquisa em que se insere esta comunicação. De qualquer modo, vale antecipar um aspecto interessante que parece um contra-argumento para essa hipótese: nem sempre se identifica o tal constituinte predicativo em sentenças existenciais. Não é obrigatória, por exemplo, a presença de um locativo em construções existenciais. A noção de espaço pode ser expressa ou não. Observa-se, no entanto, que a não-expressão da localização por meio de um sintagma preposicional ou sintagma adverbial parece ocorrer toda vez que essa informação estiver imediatamente acessível aos interlocutores. Por exemplo:

(43) É uma cultura completamente diferente, principalmente aqui no Rio de Janeiro, né, lá [no Japão] é, todo mundo muito ligado a trabalho, é, pontualidade impera, entendeu, você vai numa fila do metrô o pessoal ta numa fila realmente, não tá naquele amontoado, que nem aqui no Rio, e o cara fica parado e o Metrô pára exatamente onde você tá parado. Tem os locais marcados, é tudo por, cronometrado, entendeu, o fluxo de de carros não tem, não é essa zona que é aqui no Rio, entendeu, é tudo, é é engarrafado, tem bastante, que eu só visitei uma cidade (...) no Japão. (PB oral, NURC, inq. 90, faixa 1, p. 1) Em outros casos, ao ocorrer com nome inanimado abstrato, ter pode até ser considerado um Vsuporte que opera sobre esse nome, formando com este um predicado complexo (cf. exemplos do item E no início da seção 2). 2.3 Sua variação com o verbo haver: aspectos lingüísticos Em geral, ter é mais empregado que haver, principalmente na variedade brasileira. Porém, já se pôde identificar um contexto lingüístico em que parece haver preferência pela variante haver: a natureza semântica do SN argumento interno. Nota-se que as construções existenciais com ter são freqüentemente empregadas para apresentar a relação entre conteúdo/objeto contido e container/possuidor. Já as com verbo haver tendem a ser utilizadas para denotar fenômenos/eventos ou lapso de tempo decorrido. No corpus, registra-se a maior parte das ocorrências de haver com a indicação de tempo decorrido, e poucas ocorrências de ter com este uso. Ao que parece, ter especializa -se na indicação de sentido [+ existencial] ou [+ apresentacional] ao passo que haver se mantém na indicação de eventos ou tempo decorrido, neste caso chega a atuar como uma espécie de operador de quantificação temporal (à semelhança do que ocorre com fazer, cf. MACHADO VIEIRA, 2001). Observem-se os exemplos a seguir: (44) Júpiter, que há meses brilha na constelação do Leão, alcançou a posição oposta ao Sol em 29 de Fevereiro último, e surge agora com brilho intenso (...) (PE escrito, VARPORT, Público, 13/03/1992, p. 26, E-P-95-JN-011) (45) Há pouco mais de trinta annos, o feijão preto custava 380 réis o kilo. (PB escrito, VARPORT, O Globo, 01/07/1925, E-B-92-JE-001) (46) A câmara, ontem, teve uma reunião tranqüila com a presença de 177 deputados e não houve discussões sobre a reforma. (PB escrito, VARPORT, Jornal do Brasil, 01/04/1977) (47) O Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema confirmou ontem que nos últimos dias houve ligeiras paralisações do trabalho em setores da indústria, mas desmentiu que os trabalhadores tenham feito greve. (PB escrito, VARPORT, Jornal do Brasil, 12/05/1978) 2.4 A relação entre os seus comportamentos de verbo predicador e verbo funcional Determinadas sentenças/predicações possessivas e existenciais consistem, na verdade, em construções que revelam perspectivas de descrição distintas do mesmo estado de coisas. Comparem-se os exemplos abaixo: (48) O país já tem 2 milhões de desempregados (PB escrito, VARPORT, Jornal do Brasil, 30/06/1986, E-B-94-JN-018) (Já tem 2 milhões de desempregados no país.) (49) "(...) aqui em cima é uma... uma espinhazinha que ele tem nas costas né? (...)" (PB oral, APERJ, inq. MAC - 104 - B - 0, pista 1, nível 1, l.651) (As costas [dele] têm uma espinhazinha.)

Nas construções em que ter ocorre com estatuto de verbo predicador de posse, o estado de coisas é expresso a partir da perspectiva da(o) entidade/ser que contém (do container). Já nas sentenças em que ter revela comportamento de verbo funcional de indicar existência, o estado de coisas é apresentado da perspectiva da(o) entidade/ser contido (do conteúdo). Observa-se que, nessas construções, o sintagma nominal com relação gramatical de sujeito do verbo de posse e o sintagma preposicional com relação gramatical de predicador secundário são preenchidos por termos com papel semântico de localização, ou que possam ser interpretados/entendidos como tal. De acordo com DIK (1997), o componente gramatical de assinalação das funções sintáticas tem o papel de determinar a diferença de perspectiva de configuração dos estados de coisas, ou seja, de captar os diferentes pontos de vista a partir dos quais os estados de coisas podem ser apresentados. A atribuição de sujeito em uma predicação implica a singularização de um dos argumentos como ponto de observação a partir do qual é descrito o estado de coisas. Tendo isto em vista, entende-se que as sentenças existenciais e possessivas constituem recursos estruturais distintos para a obtenção de efeitos de sentido diferentes a partir de um mesmo estado de coisas (relação entre parte e todo, conteúdo e container, elemento e grupo, ser/entidade e espaço/cenário). Pode-se focalizar o espaço como o possuidor (argumento externo) ou como o cenário. Parece que, no Português do Brasil, os falantes re-interpretam o SN argumento sujeito de estruturas possessivas portador de noção semântica de lugar/tempo presente como um locativo e, como esta função é uma das menos proeminentes na hierarquia de funções semânticas, passam a concretizá-lo como um componente circunstancial em posição de satélite/adjunto. Essa correspondência, no entanto, nem sempre é possível. Veja-se o seguinte exemplo: (50) Se o camarada tiver a embarcação com bússola ele vai... não tem problema (PB oral, APERJ, inq. MAC107C0, pista 1, nível 1, l. 763) (Porém: *Se tiver a embarcação com bússola no camarada.) O SN e o SP não equivalem a termos com papel temático locativo, fator que inviabiliza a correspondência entre as sentenças. 3. Considerações finais Na próxima etapa da pesquisa, prevê-se (i) o aprofundamento da pesquisa que se empreendeu até o momento com a ampliação da amostra para análise, a retomada de alguns aspectos lingüísticos averiguados e o exame de alguns dados/enunciados com ter que ficam na fronteira entre as interpretações possessiva e existencial, (ii) a investigação de implicações discursivas relativas às sentenças existenciais (com ou sem pseudo-sujeito / sujeito expletivo de caráter genérico/arbitrário) e (iii) a observação da influência de aspectos relacionados ao discurso (como planos da narrativa (figura e fundo) e finalidade discursiva (narrar, descrever/caracterizar, argumentar, instruir, apresentar), entre outros) no emprego de ter existencial e na sua alternância com haver existencial. RESUMO: Este estudo enfoca o fenômeno da gramaticalização que ocorre com TER. Dependendo do contexto, esse verbo pode ser um predicador pleno ou um predicador não pleno, ou seja, pode ser o principal responsável por dar papéis temáticos para os argumentos da sentença ou pode ser um verbo funcional que denote existência. As ocorrências com ter foram retiradas de dados pertencentes a textos orais e escritos do português brasileiro e europeu. Desenvolvendo uma análise qualitativa e quantitativa de tais ocorrências, este trabalho pretende investigar e explicitar os aspectos relacionados com a categorização funcional de ter quando participa de expressões existenciais. Também procura-se estabelecer características predicativas de tais expressões. PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização; Verbo predicador; Verbo funcional; Variedades do Português.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALLOU, Dinah & AVELAR, Juanito O. de. Sobre ter e haver em construções existenciais: variação e mudança no português do Brasil. Gragoatá, n.9, p. 85-100, 2001. Letras/UFF, Niterói. DIK, Simon. The Theory of Functional Grammar. Editado por Kees Hengeveld. Berlin: Mounton de Gruyter. 2 v. FRANCHI, Carlos et alii. Sobre a gramática das orações impessoais com Ter/Haver. D.E.L.T.A., n. especial, v.14, p. 105-131, 1998. HEINE, Bernd et alii. (1991) Grammaticalization: a conceptual framework. Chicago: University of Chicago Press. HOPPER, Paul J. (1991) On some principles of Grammaticalization. In:TRAUGOTT, Elizabeth Closs & HEINE, Bernd. (eds.). Approaches to grammaticalization, Vol. 1. Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins Company. (p.16-35) MACHADO VIEIRA, Marcia dos S. (2001) Sintaxe e semântica de predicações com verbo fazer. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ. Tese de Doutorado. TAYLOR, John R. (1995) Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. 2 ed. Oxford: Calderon Press. (1989)