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Transcrição:

O ASPECTO EM PORTUGUÊS E NOS CRIOULOS DE BASE LEXICAL PORTUGUESA (alguns pontos divergentes entre os dois sistemas) Barbara HLIBOWICKA-WEGLARZ 1 RESUMO: O objectivo do presente estudo é analisar os pontos divergentes no funcionamento do sistema aspectual em português e no crioulo. Entre os diferentes critérios de comparação propõe-se enumerar os seguintes: número das formas verbais, funcionamento de duas categorias verbais: tempo e aspecto, categoria de referência, influência da classe aspectual do predicado no valor aspectual do enunciado, processos de expressão de oposição aspectual básica, isto é, perfectivo vs imperfecivo. PALAVRAS CHAVE: aspecto; português; crioulo; substrato; superstrato O léxico e a gramática constituem dois componentes da língua como sistema. Partindo do pressuposto de que os crioulos são línguas de léxico do superstrato e a gramática do substrato, parece não haver muitos pontos convergentes no funcionamento do sistema aspectual do português e dos crioulos de base lexical portuguesa. Respeitando as opiniões da maior parte dos linguistas acerca da influência das línguas de substrato e de superstrato na formação dos crioulos, o presente estudo tem como objectivo comparar o sistema aspectual do português e do crioulo, chamando particular atenção para os pontos divergentes. Para atingir este objectivo, era necessário reflectir no funcionamento dos dois sistemas em análise, identificar os critérios 1 Barbara HLIBOWICKA-WEGLARZ, Universidade Marie Curie Skłodowska (UMCS), Instituto de Filologia Românica, Departamento dos Estudos Portugueses, Pl. Litewski 4a, 21-008 Lublin, Polónia, bajaw@hot.pl. 1

essenciais para esta comparação, e depois submeter os dados concretos de ambos os sistemas a esta análise. Como não nos é possível no quadro deste trabalho citar exemplos de todos os crioulos portugueses, tanto africanos como asiáticos, limitamo-nos a exemplificar as nossas observações com os enunciados provenientes de dois crioulos africanos da Alta Guiné: o cabo-verdiano, na sua variedade de Santiago, e o guineense. O português é superstrato tanto do crioulo cabo-verdiano como do guineense. E a língua oficial de dois os países e como tal, é usado em todos os contextos formais, quer dizer na imprensa, no ensino, nos documentos oficiais. As línguas africanas dos escravos trazidos da costa ocidental de África, como: o mandinga, o wolof e o timené podem ser consideradas línguas do substrato do caboverdiano. O balanta é a língua africana mais falada na Guiné, é uma língua da família Níger Congo, do grupo Oeste Atlântico. Com outras línguas africanas faladas na Guiné terá sido uma das línguas mais importantes do substrato do crioulo guineense. Variedade das formas verbais portuguesas vs redução de número das formas verbais crioulas A categoria de aspecto é uma das categorias gramaticais do verbo. Por isso, propomos começar as nossas análises pela comparação do sistema das formas verbais em português e no crioulo. Como se sabe, os verbos finitos da língua portuguesa apresentam flexões de pessoa, número, tempo, modo e aspecto tanto nos tempos simples como nos tempos 2

compostos. Todas as informações gramaticais que se referem às categorias mencionadas são codificadas nos morfemas flexionais do verbo. Enquanto os tempos simples são formados através dos sufixos aglutinados aos radicais dos verbos, os tempos compostos são conjugados com recurso a verbos auxiliares que recebem as marcações de pessoa, número, tempo e aspecto, combinados com o verbo principal no particípio passado. Em relação ao português, nos crioulos não há flexão do verbo. O tempo, o modo e o aspecto são marcados pelos morfemas livres situados antes ou depois da forma verbal que realizam estas funções. Às vezes, acrescenta-se à frase advérbios de tempo para especificar o tempo exacto do processo verbal. A marcação do sujeito é expressa unicamente através dos pronomes pessoais pré-verbais que têm a função de indicar o agente da acção. Assim, pode-se dizer que as informações de pessoa e do número são representadas pelo sujeito. Isto explica também porque o uso do pronome pessoal sujeito é facultativo em português e obrigatório no crioulo. Em consequência de tudo que acabámos de dizer, podemos reparar que o número das formas verbais crioulas apresenta uma enorme diminuição em relação ao sistema português, o que demonstra o quadro abaixo: 1. Número das formas verbais em português e no crioulo cabo-verdiano Pessoa Cabo-verdiano Português 1º sg N krê quero 2º sg bu krê queres 3º sg el krê quer 1º pl nu krê queremos 3

2º pl nhos krê quereis 3º pl es krê querem Como se vê, as diferentes formas do sistema português contrastam com a única forma em cabo-verdiano (krê) que não exprime alguma informação acerca das categorias verbais. O radical, nos verbos regulares, permanece inalterável mas o que é muito importante é que a forma verbal traz sempre o sujeito expresso. Os exemplos citados mostram que enquanto em português as formas verbais são variáveis, formadas com os sufixos gramaticais; no crioulo as flexões não existem, as formas verbais não são marcadas de alguma informação gramatical. Categorias de tempo e de aspecto em português e no crioulo Seguindo B. Comrie, partimos da hipótese que as informações temporal e aspectual são sistemas temporais complementares, e que a primeira (tempo gramatical) localiza a situação no tempo exterior, enquanto a segunda (aspecto) especifica a estrutura temporal interna da situação analisada. O tempo localiza os acontecimentos linguísticos relativamente ao momento da enunciação, distinguindo presente, passado, futuro e as suas subdivisões. O aspecto refere a maneira como o tempo decorrido dentro dos seus limites temporais é considerado: ou como global, do qual não interessa referir a constituição temporal interna (o perfectivo), ou como um certo período de tempo com referência na sua temporalidade interna (o imperfectivo). O uso da forma perfectiva, por exemplo, significa, neste sentido, que o falante quer marcar ou não, escolhendo a forma perfectiva ou imperfectiva, a temporalidade interna dos acontecimentos linguísticos. 4

Esta referência do falante é independente do ponto deíctico da enunciação, visto que centra o tempo no fato e não o fato no tempo (Costa, 1990, p. 21). Em português, como em muitas outras línguas naturais, a referência ao tempo conta com duas categorias linguísticas para a sua expressão: o tempo e o aspecto. O tempo e o aspecto surgem sempre associados na organização verbal do discurso, constituindo o tempo uma das mais importantes categorias gramaticais conducentes à distinção de valores aspectuais. A categoria de aspecto não dispõe de próprios recursos formais para a sua expressão e comparte os mesmos morfemas com a categoria de tempo. Assim, os marcadores linguísticos básicos de valores temporais são igualmente marcadores de valores aspectuais, a informação temporal cruza-se sempre com a informação aspectual. Neste sentido, determinar em que é que consiste o aspecto separadamente do tempo parece impossível. No entanto, é preciso dar-se conta do facto de que embora as duas categorias tenham referência ao tempo e se sirvam em português dos mesmos recursos formais, constituem duas categorias distintas, tratando o problema da temporalidade das maneiras completamente diferentes. Os crioulos codificam as distinções semânticas temporais, aspectuais, assim como modais, servindo-se de um número restrito de morfemas associados ao verbo. No entanto, vale a pena sublinhar que o crioulo, sem descurar o sistema temporal e modal, confere uma importância primordial ao sistema aspectual. O aspecto é o primeiro factor que estrutura o sistema verbal da maioria das línguas crioulas. Como sublinha Veiga (1995, p. 200) esta característica do crioulo constitui uma das maiores diferenças em relação às outras línguas naturais, como por exemplo o português, que dá muita importância aos tempos e aos modos verbais. 5

No crioulo, as categorias verbais mencionadas: tempo e aspecto, não dispõem dos mesmos recursos formais para a sua expressão. As informações temporal, aspectual, assim como a modal, são actualizadas não por desinências verbais, como acontece em português, mas por diferentes partículas geralmente antepostas ao radical verbal. É importante reparar também que as categorias citadas dispõem cada uma delas das suas marcas próprias para a sua expressão. Assim, os marcadores linguísticos de valores temporais são diferentes de marcadores de valores aspectuais. Ponto de referência em português e na narrativa crioula Antes de passarmos à apresentação dos processos de expressão do aspecto em português e no crioulo, é preciso reparar ainda no outro ponto divergente entre os dois sistemas. Trata-se de categoria da referência, categoria que compõe a significação dos tempos verbais. Tratar de tempo numa língua significa localizar os acontecimentos linguísticos em relação ao momento em que se encontra o falante. O tempo assim compreendido, ao que se chama em sentido lato, o tempo do discurso, organiza-se em torno do ponto deíctico da enunciação que designa o ponto temporal e espacial em que o falante está situado no momento em que fala (Tº). Aos acontecimentos linguísticos que ocorrem no momento em que o falante produz o enunciado atribuímos o tempo presente. Por conseguinte, os outros tempos subdividem-se, conforme a localização que têm com o presente, em: passado (que situa acontecimentos linguísticos antes do momento em que se fala), e o futuro (que situa os acontecimentos linguísticos depois do momento em que se fala). Ao adoptarmos esta teoria, podemos associar a todos os acontecimentos linguísticos um dos 6

três tempos naturais, conforme o valor de anterioridade, de simultaneidade ou de posterioridade que têm em relação ao momento de enunciação (Tº). A partir dos tempos naturais estabelecem-se os tempos verbais. O presente é indivisível mas é possível, tomando em consideração indicações cronológicas mais precisas, subdividir o passado e o futuro. Assim, podemos distinguir diferentes tempos passados e futuros, situando os acontecimentos linguísticos não só em relação ao ponto deíctico da enunciação, mas também uns em relação aos outros. Os tempos que têm dois pontos de referência mencionados chamam-se tempos relativos e caracterizam-se por recorrer o ponto deíctico da enunciação e por levar em consideração um outro ponto da linha de tempo que é anterior ou posterior ao momento da enunciação. Em português, o ponto de referência determina a interpretação do tempo verbal que gramaticaliza a relação entre o tempo de um acontecimento linguístico e o ponto zero temporal. O sistema verbal português é bem complexo, servindo-se de cinco tempos passados (simples e compostos), dum tempo presente e dum futuro sem contar as numerosas construções perifrásticas. Como se sabe, em português onde as formas verbais não são marcadas aspectualmente, é o emprego do tempo verbal que decide do seu valor aspectual. O ponto de referência na narrativa crioula é a própria acção. Como repara Couto (1996, p. 39): toda a acção só pode ser narrada depois de ocorrida. Assim, a noção de tempo passado relaciona-se essencialmente com o tempo em foco, que é normalmente estabelecido no início do discurso. 7

Para a marcação do tempo anterior ao tempo em foco e o tempo ainda mais anterior empregam-se morfemas livres, o que demostram os exemplos seguintes do guineense 2 : 1. N tene ba un livru (port: tinha um livro) - o morfema ba indica o tempo anterior 2. N kumpra ba dja un livru (port: tinha comprado) a combinação dos morfemas ba e dja em posição pós-verbal indica o tempo mais anterior Se nós aceitarmos a proposta apresentada por Reichenbach (1947) para caracterizar situações na linha temporal (o momento do evento, o momento de referência e o momento de fala), podemos atribuir o momento de fala (MF) como ponto de referência ao sistema português e o momento de evento (ME) ao sistema crioulo. Influência da classe aspectual do predicado no valor aspectual do enunciado - verbos fracos e verbos fortes no crioulo O aspecto pode manifestar-se através de recursos gramaticais e recursos lexicais. No primeiro caso é designado por aspecto gramatical (Aspekt) e corresponde sobretudo às oposições expressas pelas formas verbais que ocorrem nos enunciados. O segundo caso, habitualmente referido como Aktionsart designa, geralmente, a natureza aspectual do predicado. O aspecto lexical encontra vários modos de expressão na língua. Em português, pode ser expresso através do próprio valor aspectual do lexema verbal, isto é, através das classes aspectuais a que os predicados pertencem. Esta manifestação deve-se ao 2 Os exemplos citados provêm de Incanha Intumbo (2007, p. 58, 59). 8

significado inerente aos predicados, às suas características intrínsecas (p.ex. na tipologia de Vendler: ter estado, cantar actividade, almoçar evento prolongado, adoecer - evento instantâneo). Como se sabe, em português o aspecto verbal não depende exclusivamente da classe aspectual do predicado. Martin (1971) fala só da tendência ou orientação aspectual dos lexemas que, em definitivo, no emprego discursivo se confirma ou não. Para abordarmos uma qualquer forma aspectual na língua portuguesa temos de analisar todas as propriedades que concorrem para a definição desta forma ao nível do enunciado, e não só ao nível do verbo. O valor aspectual de uma situação é estabelecido pela integração de todos os constituintes que participam na sua definição. Como diz Mateus et al. (1983, p. 125): o valor aspectual de um dado enunciado é função da classe aspectual a que pertence o predicador que nele ocorre e da forma aspectual deste. Assim, podemos dizer que a classe aspectual dos predicadores não decidem do valor aspectual da forma verbal portuguesa. O comportamento aspectual do verbo crioulo apresenta diferenças em relação ao sistema português. Para compreendermos a lógica do comportamento aspectual do verbo crioulo é preciso explicar a distinção entre os verbos fortes e os verbos fracos, assim como a influência da aderência dos verbos a estes grupos no valor aspectual da forma verbal. O sistema crioulo distingue os verbos fracos, chamados por alguns linguistas de acção (p.ex.: cantar) e os verbos fortes, referidos como estativos ou de estado (p.ex.: conhecer). A maior parte dos verbos apresentam o comportamento aspectual de verbos fracos, o número muito restrito dos verbos apresentam o comportamento aspectual de verbos fortes. 9

Os verbos crioulos podem ser marcados ou não com os morfemas de tempo, de modo ou de aspecto. A referida marcação ou não marcação está relacionada com a subclasse do verbo, isto é, o seu carácter estativo ou não estativo 3. Vejam-se os seguintes exemplos do guineense: 3. N tene kaneta (port: Tenho uma caneta) 4. N kumpra Livru (port: Comprei um livro) Para um lusofalante a tradução dos exemplos acima mencionados parece errada. É difícil compreender porque no primeiro exemplo a forma tene corresponde ao presente do indicativo da língua portuguesa, e a forma kumpra do segundo exemplo citado corresponde ao pretérito perfeito português. Ambas as formas: tene e kumpra são formas verbais que ocorrem sem marcadores suplementares. A explicação desta situação reside no funcionamento do sistema crioulo e na distinção entre os verbos fracos e fortes. As duas formas verbais são flexionadas no aspecto perfectivo, chamado também completivo, que exprime um acontecimento linguístico (seja acção, seja estado) completamente acabado, plenamente realizado. A análise semântica destes enunciados permite compreender a diferença entre os exemplos citados na tradução. Como já conclui a acção de ter, isto implica que, no momento em que estou a falar, se não acontecer uma situação especial, tenho a caneta também. Se conclui a acção de comprar o livro, no momento em que estou a falar, o livro efectivamente já foi comprado, não estou a comprar o livro. Esta interpretação permite 3 Incanha Intumbo (2007, p. 57). 10

compreender a razão pela qual a forma tene é traduzida por meio do presente e a forma cumpra por meio do pretérito perfeito. Resumindo, podemos dizer que os verbos fracos flexionados no aspecto completivo e na ausência de qualquer outra marca, são interpretados como referindo-se ao passado. Os verbos fortes, flexionados no aspecto completivo e na ausência de qualquer outra marca, são normalmente interpretados como tempo presente do indicativo da língua portuguesa. Assim, enquanto a classe aspectual do verbo não decide do valor aspectual da forma verbal na língua portuguesa, em crioulo tem uma influência muito importante, decidindo da sua interpretação perfectiva ou imperfectiva. A oposição aspectual perfectivo vs imperfectivo em português e em crioulo processos de expressão da oposição básica Depois de ter apresentado alguns pontos divergentes entre o sistema aspectual da língua portuguesa e dos crioulos de base lexical portuguesa, é preciso demonstrar com mais detalhe as estratégias pragmáticas utilizadas na expressão do aspecto nas línguas em análise, para mostrar como elas exprimem a oposição aspectual básica, isto é, perfectividade vs imperfectividade. Em português, em que as formas verbais não são marcadas aspectualmente, é o emprego do tempo gramatical que decide do seu valor aspectual. Neste sentido, podemos dizer que o português, assim como as outras línguas românicas, na expressão do aspecto se baseia na deixis temporal. A oposição aspectual imperfectivo vs perfectivo realiza-se através dos tempos gramaticais: pretérito imperfeito e pretérito perfeito simples. O pretérito perfeito 11

simples funciona como o membro não marcado da principal oposição aspectual. A referida ausência da marca significa que o PPS descreve os processos como uma totalidade sem referir as suas estruturas internas. Trata-se da realização dos processos descritos e não da sua temporalidade interna. O pretérito imperfeito funciona como o membro marcado da oposição aspectual básica. Interpreta os processos como imperfectivos, considerando a sua temporalidade interna. Vale a pena notar ainda que uma das peculiaridades do aspecto em português consiste no emprego do pretérito perfeito composto, tempo verbal que, em relação aos outros tempos compostos noutras línguas românicas, tem algumas características diferentes. Esta diferença resulta do facto deste tempo gramatical marcar imperfectividade e não perfectividade o que acontece, por exemplo em francês ou em espanhol. O pretérito perfeito composto marca uma duração que tem início no passado e que continua no presente. A esta duração ao depender do tipo de situação, pode-se acrescentar adicionalmente uma interpretação de iteratividade. Como já referimos anteriormente, o crioulo para a expressão do aspecto usa as diferentes partículas geralmente antepostas ao radical verbal que constituem a única maneira de marcação desta categoria gramatical. Veiga (2002, p. 97) no seu manual intitulado O Cabo-verdiano em 45 lições apresenta os marcadores verbais para o aspecto realizado (perfectivo) e não realizado (imperfectivo) em cabo-verdiano. Segundo o autor mencionado os principais marcadores para o aspecto realizado, na variedade de Santiago, são: 2. Marcadores do aspecto realizado no crioulo cabo-verdiano 12

Marcas Cabo-verdiano Português Zero N kume Comi dja v dja dja N kume dja acabei de comer dja v ba dja N kumeba já tinha comido v du kumedu a gente comeu v da kumeda tinha-se comido dja v du dja dja kumedu dja acabou-se de comer dja v da dja dja kumeda dja tinha-se acabado de comer Os exemplos mencionados merecem algumas explicações: Em primeiro lugar é preciso reparar que os exemplos em cima representam as formas do verbo de acção: kume (comer), isto é, verbo fraco, que, como já referimos anteriormente, usado sem outra marca qualquer, interpreta uma acção referindo-se ao passado. Para podermos interpretar o verbo kume, como presente, seria necessário marcar a forma verbal do outro actualizador: ta (N ta kume). Voltaremos à análise deste marcador, analisando as formas imperfectivas. Repare-se também que o cabo-verdiano marca o completivo empregando o marcador dja pré-verbal, que provavelmente provém do advérbio português já. A segunda observação muito importante a fazer é que cada verbo no crioulo tem só cinco formas sintéticas: forma do infinitivo e as formas da voz activa e passiva no presente e no passado, o que mostra o esquema seguinte e o que se encontra no quadro já apresentado: Infinitivo: kume Voz Activa Presente: kume 13

Voz Activa Passado: kumeba Voz Passiva Presente: kumedu Voz Passiva Passado: kumeda Vale a pena acrescentar que todos os verbos regulares conjugam-se da mesma maneira que kume, não têm flexões, salvo du, da, ba. Relembremos também, uma vez mais, que as formas verbais crioulas trazem sempre o pronome pessoal ou o sujeito expresso. Os verbos estativos têm conjugação ligeiramente diferente. A forma habitual (ou durativa) dos verbos estativos é marcada pelo marcador zero (sem marcador ta que se usa com os verbos de acção) 4. O traço semântico [+estativo] bloqueia a compatibilidade dos verbos estativos com a forma progressiva, razão pela qual este tipo de verbos não a têm. Passemos agora aos marcadores do imperfectivo, isto é, actualizadores para as formas não realizadas e comecemos pelas formas habituais no presente e no passado: 3. Marcadores das formas não-realizadas no crioulo cabo-verdiano Marcas Cabo-verdiano Português ta v N ta kume como, comerei ta v ba N ta kumeba comia, comeria ta v du N ta kumedu come-se ta v da N ta kumeda comia-se No crioulo cabo-verdiano o aspecto habitual é indicado através do marcador ta pré-verbal. Para exprimir o aspecto habitual a língua portuguesa recorre ao verbo 14

flexionado no presente do indicativo, ou à construção perifrástica com o verbo flexionado costumar seguido de infinitivo. passado: As formas abaixo exprimem as diversas formas progressivas no presente e no 4. Marcadores das formas progressivas no crioulo cabo-verdiano Marcas Caboverdiano Português sa ta v N sa ta kume estou a comer sa ta v ba N sa ta kumeba estava a comer sa ta v du N sa ta kumedu está-se a comer sa ta v da N sa ta kumeda estava-se a comer Como se vê, os marcadores sa ta do progresivo são também pré-verbais e indicam que a acção de kume está em curso. As construções progressivas semelhantes funcionam em todas as línguas crioulas. Em português o progressivo resulta da combinação entre o auxiliar estar e o verbo principal no infinitivo ou no gerúndio precedido da preposição a (p.ex.: estou a comer). Os exemplos de cabo-verdiano que seguem confirmam a multiplicidade das combinações possíveis dos marcadores aspectuais nas formas crioulas: Indicativo Presente 4 Veiga, 2002, p. 104. 15

N ta kume (port: como) forma não realizada habitual actual N sa ta kume (port: estou a comer) forma não realizada progressiva actual dja N kume dja (port: acabo de comer) forma realizada no presente recente ta kumedu (port: come-se) forma não realizada indefinida sa ta kumedu (port: está-se a comer) forma não realizada indefinida progressiva Pretérito Imperfeito do Indicativo N ta kumeba (port: comia) forma não realizada no passado Pretérito Perfeito do Indicativo N kume (port: comi) forma realizada no passado remoto kumedu (port: a gente comeu) forma realizada actual indefinida Pretérito Mais-que-Perfeito do Indicativo N kumeba (port: tinha comido) forma realizada no passado anterior kumeda (port: a gente tinha comido) forma realizada indefinida no passado anterior dja N kumeba dja (port: tinha já comido) forma realizada no passado anterior recente Futuro do Indicativo N ta kume (port: comerei) forma não realizada prospectiva N al kume (port: hei-de comer) forma eventual prospectiva al kumedu (port: a gente deve comer) forma eventual indefinida 16

A estrutura das formas verbais do crioulo cabo-verdiano apresenta muitas semelhanças com outras línguas crioulas. O sistema de marcação do aspecto, assim como do tempo e do modo (sistema TMA) é semelhante em outros crioulos, podendo dispor de outros marcadores verbais, combináveis entre si, que podem ser pré-verbais ou pós-verbais. Conclusões Todas as análises por nós apresentadas permitem tirar algumas conclusões sobre a influência dos superstratos e as do substrato no funcionamento do sistema aspectual do crioulo. A primeira observação a fazer é que o português, considerado como língua de superstrato não exerceu grande importância no sistema aspectual crioulo. As estruturas analisadas confirmam o papel do substrato africano na formação desses crioulos. Assim, os crioulos por nós analisados, o cabo-verdiano e o guineense, confirmam as opiniões de todos os defensores da hipótese da relexificação que afirmam que os crioulos são línguas de vocabulário de superstrato e gramática do substrato. Referências Bibliográficas CAMPOS, Maria Henriqueta Costa, XAVIER, Maria Francisca (1991): Síntaxe e semântica do português, Universidade Aberta, Lisboa. COMRIE, Bernard (1976): Aspect: an introduction to the study of verbal aspect and related problem, CUP, Cambridge. COSTA, Sónia Bastos Borba (1990): O aspecto em português, Contxto, Sao Paulo. 17

COUTO, Hildo Honório do (1996): Introdução ao estudo das línguas crioulas e pidgins, Editora da Universidade de Brasília, Brasília. HLIBOWICKA-WEGLARZ, Barbara (1998): Processos de expressão do aspecto na língua portuguesa, Wydawnictwa Uniwersytetu Marii Curie Skłodowskiej, Lublin. INTUMBO, Incanha (2007): Estudo comparativo da morfossintaxe do crioulo guineense, do balanta e do português, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra. MARTIN, Robert, (1981): Temps Linguistique et Temps Logique «, (in :) Languages, nr 64, pp.7-27. MATEUS, Maria Helena Mira et alli (1983): Gramática da Língua Portuguesa, Livraria Almedina, Coimbra. VEIGA, Manuel (2002): O Caboverdiano em 45 lições, INIC, Praia. 18