A NECESSIDADE DAS BACIAS EXPERIMENTAIS PARA A AVALIAÇÃO DA EFICIÊNCIA DE TÉCNICAS ALTERNATIVAS DE CAPTAÇÃO DE ÁGUA NA REGIÃO SEMI-ÁRIDA DO BRASIL Luiz Rafael Palmier, Departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos; Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais; Avenida Contorno, 842/809 andar; Belo Horizonte - MG; Brasil; CEP 30110-060. Tel: (31) 32381003; Fax: (31) 32381001; email: palmier@ehr.ufmg.br RESUMO Em muitos países situados em regiões áridas e semi-áridas, a disponibilidade per capita de água já é inferior àquela necessária para permitir o cultivo de alimentos para abastecimento local de suas populações. Mesmo países situados em regiões temperadas vêm enfrentando situações de déficit hídrico. Novos conceitos de manejo de água para mitigar escassez vêm sendo propostos e aplicados com sucesso em muitos países. Tais conceitos são baseados no uso de técnicas alternativas de aproveitamento de água de precipitações reduzidas e vazões em cursos d água intermitentes. Quase toda a região nordeste do país e um terço do estado de Minas Gerais apresentam características de regiões classificadas como semi-áridas. Algumas técnicas alternativas vêm sendo utilizadas nessas regiões. Porém, aparentemente, não há uma sistematização de seu uso, muitas aplicações não têm seus resultados monitorados, o desenvolvimento de pesquisas é relativamente limitado, poucos são os esforços para a criação de bancos de dados, e as aplicações não estão associadas a planos regionais. Assim, institutos de pesquisa do país, incluindo as universidades, podem contribuir de forma decisiva para reverter esse quadro, por exemplo, com a implementação de bacias experimentais para avaliar a eficiência dessas técnicas. No presente trabalho são discutidas alternativas para combater o problema da escassez, suas limitações e necessidades futuras para aprimorá-las, incluindo a necessidade de monitorar bacias experimentais para avaliação de seu desempenho.
Palavras-Chave - manejo de água em regiões semi-áridas, técnicas alternativas de aproveitamento de água; escassez de recursos hídricos INTRODUÇÃO Problemas relacionados à disponibilidade de água estão se tornando mais graves em diversas regiões do mundo em função de mudanças climáticas, de ações antrópicas e do aumento do consumo de água. Especialmente em regiões onde são constatadas as ocorrência de secas e de processos de degradação dos solos, a migração de grande quantidade de indivíduos pode causar conflitos sociais. Adicionalmente, o crescimento populacional pode resultar em uma maior competição por limitadas quantidades de água em algumas regiões, situação também geradora de conflitos. É comum a caracterização dos processos de degradação de regiões áridas e semi-áridas com repetidas referências ao fenômeno das secas, as quais são apenas manifestações de flutuações climáticas, geralmente associadas a anomalias da circulação planetária da atmosfera, cuja tendência é diminuir a quantidade de água nas várias fases do ciclo hidrológico (Falkenmark, 1992). Novos conceitos de manejo de água em regiões áridas e semi-áridas para mitigar escassez vêm sendo propostos em alguns países, baseados na aplicação de técnicas alternativas de aproveitamento de água de precipitações reduzidas e vazões em cursos d água intermitentes. Uma parte significativa da região Nordeste do Brasil pode ser classificada como semiárida. Outras áreas da mesma região Nordeste e das regiões norte e nordeste do estado de Minas Gerais são classificadas como subúmidas. Ainda que essas últimas possam não ser classificadas como semi-áridas seguindo critérios eminentemente científicos, certamente as seriam dentro da noção pragmática de serem regiões onde incidem secas prolongadas (Vieira, 1999), com conseqüente deficiência de umidade no solo agrícola. Desta forma, as regiões acima citadas são propensas à aplicação de técnicas alternativas de aproveitamento de água, visando mitigar escassez. No presente trabalho são discutidas as alternativas para combater o problema da escassez, dentre as quais se destacam as técnicas de aproveitamento de água de água de precipitações reduzidas e vazões de cursos d água intermitentes. Adicionalmente, são discutidas as limitações ao uso dessas técnicas e as necessidades futuras para aprimorá-las e torná-las realmente efetivas para mitigar os efeitos da escassez hídrica no Brasil, com especial atenção à necessidade de instrumentação de bacias experimentais para avaliação de seu desempenho.
ALTERNATIVAS PARA ENFRENTAR A ESCASSEZ DE ÁGUA A situação dos recursos hídricos em diversos países apresenta um desafio enorme para os responsáveis pela sua gestão. De fato, em muitas regiões a demanda de água excede a quantidade disponível. A necessidade de produzir alimentos e energia, e atender às demandas domésticas e industrial de água, implica que os recursos hídricos deverão ser aproveitados de uma maneira mais efetiva do que os são atualmente; e as soluções adequadas requerem uma visão integrada da gestão de recursos hídricos, considerando as fases de gestão de ofertas e de demandas, usos mais eficientes e proteção da qualidade da água. As principais soluções incluem (Petry e Boeriu, 1998; World Water Council, 2000): a) a reabilitação e proteção de bacias para se obter um regime hidrológico mais adequado e reduzir a quantidade de sedimentos retida nos reservatórios; b) o aumento da produtividade da água - aumentar a produção de alimentos sem modificar, ou mesmo diminuir, a quantidade de água disponível para a agricultura, por meio de práticas agrícolas (melhorando a variedade de culturas, substituindo culturas, melhorando as técnicas agrícolas) ou tornando mais eficientes as técnicas de irrigação; c) a diminuição das taxas de evaporação e a prevenção da poluição dos recursos hídricos; d) a gestão adequada e integrada dos recursos hídricos tomando as bacias hidrográficas como unidade de referência; e e) o aumento da água disponível por meio do acréscimo da capacidade de armazenamento - a construção de grandes barragens tem sido a opção escolhida em muitas regiões do mundo; porém, seus custos econômicos e ambientais têm sido apontados como causas da diminuição na taxa de construção dessas estruturas. As alternativas sugeridas são: pequenas barragens, armazenamento de água em regiões pantanosas, recarga de aqüíferos, técnicas tradicionais de armazenamento em pequena escala e métodos de colheita de precipitações reduzidas e vazões em cursos d água intermitentes. Uma abordagem realista em regiões áridas e semi-áridas deve ser feita considerando-se que o processo de converter sociedades rurais segundo novos modelos de atividades econômicas e sociais requer tempo, fator crucial no desenvolvimento de estratégias, do arcabouço legal e institucional e da capacidade de gestão necessária (Petry e Boeriu, 1998). Desta forma, reconhece-se um dilema para implementar ações em regiões de escassez: o tempo para atender às crescentes demandas por água é limitado, mas existem poucas medidas
disponíveis para se obter mais água, e existe uma competição crescente por verbas para colocar essas medidas em prática. Os países ricos possuem condições financeiras e conhecimento para enfrentar os problemas relacionados com a escassez de água - utilizando-se de métodos como a transposição de bacias e construção de grandes reservatórios, ainda que de alto investimento, e freqüentemente causando danos aos ecossistemas. Adicionalmente, mesmo nesses países, técnicas de aproveitamento de água de chuva e de reuso de água vêm sendo aprimoradas para minorar os problemas de escassez. Portanto, as nações pobres, cuja taxa de utilização de seus recursos hídricos disponíveis é superior a 20%, são as mais vulneráveis ao problema da escassez de água; além de não possuírem os recursos hídricos adicionais, não dispõem de condições econômicas para alterar suas caraterísticas de desenvolvimento, geralmente baseada na irrigação intensiva (World Meteorological Organization, 1997). Países ricos e pobres podem ser atendidos com técnicas alternativas de aproveitamento de água, principalmente as técnicas de colheita de chuva e vazões em cursos d água intermitentes - aplicáveis tanto em áreas rurais, para agricultura ou abastecimento doméstico, ou em áreas urbanas. Os princípios, métodos de construção, uso e manutenção estão disponíveis. Ainda mais importante, o que garante ser uma técnica ao alcance de países pobres, existem muitos modelos financeiros, adequados às diferentes necessidades. TÉCNICAS ALTERNATIVAS DE APROVEITAMENTO DE ÁGUA Ao longo dos séculos, e de forma independente em várias regiões de diferentes continentes, foram desenvolvidas técnicas para aproveitamento de água de chuva e vazões em cursos d água intermitentes, principalmente em regiões áridas e semi-áridas, onde a quantidade de precipitação é limitada e ocorre somente durante alguns meses do ano. Embora de potencial limitado, essas técnicas podem ter um efeito local significativo, representando, em muitas regiões, praticamente a única opção disponível de água para atender ao abastecimento doméstico, à dessedentação de animais e à irrigação. Nos últimos anos, têm-se verificado uma pressão cada vez maior sobre os recursos hídricos e grandes dificuldades na implantação de projetos de recursos hídricos, incluindo irrigação, de sofisticada tecnologia e alto consumo de energia. Assim, observa-se uma nova expansão no uso de técnicas de aproveitamento de água de chuva, tanto em regiões onde eram utilizadas no passado, como em locais onde eram desconhecidas. Essas técnicas, baseadas em práticas antigas e tradicionais, com uso de materiais mais modernos, ou em novas tecnologias,
recebem o nome genérico de técnicas de gestão de águas de chuva, sendo as seguintes as mais representativas (Petry e Boeriu, 1999): aumento de precipitação, redução de evaporação, captação de água de chuva, captação de água de escoamento superficial, recarga artificial de águas subterrâneas, conservação da umidade em solos e gestão da água de chuva para a agricultura. Gnadinler (2000) e Prinz (2001) apresentam um resumo das principais técnicas utilizadas em áreas rurais. LIMITAÇÕES AO USO DE TÉCNICAS ALTERNATIVAS As técnicas alternativas de captação de água de chuva são socialmente atraentes, quando comparadas aos grandes projetos, e podem representar soluções inteiramente adequadas para mitigar escassez de água em um grande número de regiões. Deve-se ressaltar, porém, a necessidade de se avaliar os impactos ambientais dessas técnicas, as quais, quando aplicadas em regiões de montante de uma bacia, podem reduzir o escoamento superficial para outros usuários ou para o próprio ambiente, localizados a jusante. A construção de barragens, necessárias para implementação de algumas dessas técnicas, embora de altura relativamente reduzida, deve ser precedida de estudos de impactos ambientais, assim como o aproveitamento de águas subterrâneas não pode ser feito de maneira indiscriminada, com risco de comprometer sua sustentabilidade. As técnicas disponíveis vêm sendo aplicadas com sucesso em diversas partes do mundo, mas também há situações em que a ausência de uma manutenção adequada dos sistemas de captação de água de chuva resulta no seu abandono, parcial ou total. Algumas das razões operativas, além de problemas financeiros, são (Siegert et al., 1998): a) incompatibilidade das técnicas com as estratégias tradicionais de produção de alimentos; b) grande necessidade de mão-de-obra; c) dependência de máquinas, as quais não estão freqüentemente disponíveis nas fases posteriores à da implementação dos projetos; d) falta de treinamento dos usuários; e e) parâmetros técnicos de projeto muito complexos para os usuários. Porém, mais do que as razões operacionais, o maior obstáculo ao uso disseminado dessas técnicas pode estar relacionado à falta de um gerenciamento eficiente da água. Por exemplo, na América do Sul e Caribe, os maiores problemas enfrentados pelos países que desejam implementar tais sistemas são (Organization of American States, 1997): a) dificuldade de difusão de informação sobre as técnicas aplicadas com sucesso; b) falta de conhecimento da existência e importância dessas técnicas nos vários níveis de participação pública e tomada de decisões; c) limitações econômicas; d) ausência de coordenação
interinstitucional e multidisciplinar; e) ausência de uma legislação adequada; e f) incapacidade de avaliar de forma apropriada o impacto da introdução de tecnologias alternativas nas situações existentes. NECESSIDADES FUTURAS A postura das sociedades com relação aos problemas de escala local, regional e global tem avançado de forma inegável em nível mundial e na América Latina, em particular. No Brasil, apesar da ênfase depositada em grandes projetos de recursos hídricos, como a transposição de águas do rio São Francisco, as técnicas alternativas de captação de água de chuva estão sendo cada vez mais consideradas, principalmente para solução de problemas locais, com o exemplo do projeto de construção de um milhão de cisternas no nordeste para consumo humano. Apesar dos avanços, as dificuldades presentes são múltiplas (Siegert et al., 1998): não há dados suficientes sobre os métodos de gestão de águas de chuva, sobre técnicas tradicionais e sobre avaliações de produção agrícola em sistemas implementados por um período superior a cinco anos em uma mesma área. Adicionalmente, não há uma base confiável de dados para se estimar custos das diferentes técnicas de captação de água de chuva. Algumas medidas que poderão ser estudadas e desenvolvidas para aprimorar o uso das técnicas de gestão de água de chuva incluem (Siegert et al., 1998): a) coletar mais dados relativos aos custos e benefícios dessas técnicas; b) pesquisar métodos tradicionais para determinar se ainda podem ser utilizados e para identificar formas de aumentar sua eficiência; c) identificar as condições necessárias para transferir com sucesso técnicas de uma região para outra; d) propor formas de monitoramento e avaliação para obtenção de dados básicos e informação da capacidade de aceitação dos impactos socioeconômicos dessas técnicas; e) incumbir uma instituição a responsabilidade de coordenação de todos os programas de técnicas de gestão de água e de criação de um banco de dados; f) elaborar planos nacionais de manejo de terras; e g) desenvolver atividades sistemáticas de treinamento. CONSIDERAÇÕES FINAIS Algumas técnicas alternativas vêm sendo utilizadas em estados da região Nordeste do país e em Minas Gerais. Porém, aparentemente, não há uma sistematização do uso dessas técnicas, muitas aplicações não têm seus resultados monitorados, o desenvolvimento de
pesquisas é relativamente limitado, poucos são os esforços para a criação de bancos de dados, e as aplicações não estão associadas a planos regionais. Há uma grande demanda, portanto, por trabalhos de pesquisa cuja metodologia contemple a avaliação do aproveitamento do potencial hídrico em regiões semi-áridas, no contexto das condições características do território brasileiro, tendo como pressuposto básico o uso das técnicas de gestão de água de chuva. Isso poderia ser feito por meio da instrumentação de bacias experimentais dessas regiões para que fossem avaliadas a adequação e a eficiência dessas técnicas, considerando os seguintes aspectos: a) disponibilidade atual da oferta de água, e a perspectiva de aumentá-la no tempo e no espaço; b) demandas atuais de água, e a gestão mais adequada para possibilitar uma maior eficiência no uso da água; c) perspectivas de aumento da produtividade da água, reduzindo a competição por esse recurso, considerando o uso de técnicas agrícolas e de gestão de recursos hídricos mais adequadas; e d) preservação da qualidade do meio ambiente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FALKENMARK, M., Water scarcity generates environmental stress and potential conflicts. In: James, W. e Niemczynowicz, J. (ed.), Water, development and the environment, 1992. GNADLINGER, J., Rainwater harvesting for household and agricultural use in rural areas, 2 nd World Water Forum, Haia, Países Baixos, 2000. GNADLINGER, J., Why to promote rainwater catchment systems in the Brazilian semiarid tropics?, 10 th International Conference on Rainwater Catchment Systems, Mannheim, Alemanha, 2001. ORGANIZATION OF AMERICAN STATES, Source book of alternative technologies for freshwater augmentation in Latin America and the Caribbean, Estados Unidos, 1997. PETRY, B. e BOERIU, P., Engineering components of water harvesting systems,international Institute for Infrastructural, Hydraulic and Environmental Engineering, Delft, Holanda, 1998.
PRINZ, D., Water harvesting for afforestation in dry areas, 10 th International Conference on Rainwater Catchment Systems, Mannheim, Alemanha, 2001. SIEGERT, K., PETRY, B. e BOERIU, P., Water harvesting systems: design aspects, In: Engineering components of water harvesting systems, Petry, B. e Boeriu, P. (ed.), 1998. VIEIRA, V.P.P.B., Água doce no semi-árido, In: Águas doces no Brasil; capital ecológico, uso e conservação/organização e coordenação científica, Rebouças, A.C., Braga, B. e Tundisi, J.G., Escrituras Editora, 1999. WORLD METEOROLOGICAL ORGANIZATION, The world s water: is there enough?, WMO - No. 857, 1997. WORLD WATER COUNCIL, World water vision: making water everybody s business, Earthscan Publications Ltd, Londres, 2000.