COMO ABORDAR A QUALIDADE DA PESQUISA

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1 COMO ABORDAR A QUALIDADE DA PESQUISA objetivos do capítulo Após a leitura deste capítulo, você deverá: entender a relevância da questão da qualidade para um melhor desenvolvimento e consolidação da pesquisa qualitativa; ter uma percepção dos ângulos e níveis em que essa questão se torna relevante; ter uma visão geral dos capítulos seguintes e como eles tratam o tema.

16 Uwe Flick A relevância das questões de qualidade na pesquisa qualitativa A pesquisa qualitativa chegou à idade adulta. O número crescente de livros-texto, publicações acadêmicas e outras, junto com a ampliação da prática de pesquisa em várias disciplinas, demonstra isso. Talvez um outro indicador desse desenvolvimento ou uma necessidade resultante dele seja a atual relevância da questão de como avaliar a pesquisa qualitativa, os planos, os métodos e os resultados obtidos com ela. A fase de desenvolvimento na qual os pesquisadores simplesmente acreditam em seus métodos segundo o que Glaser sugere acreditem na teoria fundamentada, ela funciona pois: simplesmente a apliquem, usem e publiquem! (1998, p. 254) parece ter chegado ao final. Em vez desse otimismo (talvez um pouco ingênuo), encontramos agora muitos artigos que tratam de critérios, listas de itens relevantes, padrões, qualidade, rigor e avaliação da pesquisa qualitativa. Em contraste com as etapas iniciais do desenvolvimento da pesquisa qualitativa, as questões relativas à qualidade não são mais levantadas simplesmente para demonstrar (de fora) que há uma falta de qualidade científica nessa pesquisa. Em vez disso, essa questão é levantada cada vez mais de dentro, com uma perspectiva direcionada a como : como avaliar o que estamos fazendo e como demonstrar a qualidade na pesquisa qualitativa de forma ativa e autoconfiante. A forma de gerenciar a qualidade no processo de pesquisa qualitativa tornou-se um tópico de muita importância para avançar o desenvolvimento da pesquisa qualitativa como um todo. Hoje em dia, trata-se menos da aceitação da pesquisa qualitativa como tal (comparada à pesquisa quantitativa, por exemplo) e mais da aceitação de procedimentos e resultados específicos em uma determinada pesquisa (por razões de financiamento ou de publicação, por exemplo). Portanto, o foco da discussão sobre qualidade da pesquisa qualitativa passou não completamente, mas principalmente de níveis fundamentais, epistemológicos e filosóficos para níveis mais concretos de pesquisa. necessidades internas e desafios externos Contudo, as discussões sobre a qualidade da pesquisa qualitativa estão situadas na encruzilhada das necessidades internas com os desafios externos. As primeiras surgem do desenvolvimento e da proliferação da pesquisa qualitativa como campo. Encontramos cada vez mais alternativas para as pesquisas qualitativas, uma variedade crescente de procedimentos metodológicos

Qualidade na pesquisa qualitativa 17 e programas conceituais e epistemológicos. A pesquisa qualitativa não pode mais ser associada a um ou dois métodos específicos, e encontramos diferentes programas com origens, intenções e estratégias distintas para fazer pesquisa. Embora consigamos identificar características comuns da pesquisa qualitativa nos diferentes programas (ver Flick, 2006a, capítulos 2 e 6, ou Flick et al., 2004a, para sugestões), é possível considerar esses programas competindo internamente. Sendo assim, podemos tratar das questões de qualidade na pesquisa qualitativa dentro do programa de pesquisa único: o que é a boa pesquisa em teoria fundamentada (ver Gibbs, 2007)? O que a diferencia dos maus exemplos? Também podemos abordar essas questões dentro da pesquisa qualitativa, a partir de uma perspectiva comparativa: O que torna um determinado estudo com teoria fundamentada * um bom exemplo de pesquisa qualitativa? O que o torna mais adequado do que uma análise de discurso (ver Rapley, 2007) sobre o mesmo tópico? Em ambos os casos, a questão da qualidade é levantada de dentro da pesquisa qualitativa e dentro da prática desse tipo de pesquisa, portanto, internamente. Os desafios externos à pesquisa qualitativa relacionados a essas questões passam a ser relevantes quando ela se torna competitiva em relação a outras abordagens de pesquisa, por exemplo, quando quer entrar em campos tradicionalmente dominados por outras formas. Quando pesquisadores qualitativos da psicologia, por exemplo, querem publicar suas pesquisas em revistas acadêmicas com revisão por colegas, os quais tradicionalmente tiveram uma orientação experimental, surge o desafio de demonstrar que aquele estudo específico é bom exemplo. Ou quando, por exemplo, os sociólogos do campo da saúde querem publicar um estudo usando métodos qualitativos em uma revista médica, na qual predominam não apenas outras temáticas, mas também os ideais das ciências naturais, a questão da qualidade é ainda mais relevante. Outro campo em que há competição é o financiamento da pesquisa em áreas em que são predominantes os pesquisadores tradicionalmente experimentais ou quantitativos. Mais uma vez, nesse caso, levantam-se de fora questões de qualidade para avaliar a solicitação de financiamento específica para comparar essa solicitação com outras de origens diferentes ou simplesmente para ter bons argumentos para rejeitar propostas. Finalmente, o ensino e o planejamento de currículos passaram a ser um campo em que a pesquisa qualitativa compete com outras propostas por * N. de R.T. Neste livro o termo em inglês grounded theory foi traduzido como pesquisa fundamentada.

18 Uwe Flick recursos: qual é a parte da pesquisa qualitativa no currículo para a formação de psicólogos ou sociólogos e qual sua relação com abordagens mais quantitativas ou experimentais? Em todos esses campos, a capacidade da pesquisa qualitativa de demonstrar que há critérios, estratégias e abordagens para distinguir a boa pesquisa da insatisfatória e para melhorar e afirmar a qualidade da pesquisa qualitativa representa um desafio externo. Quanto mais os pesquisadores quantitativos conseguirem apresentar soluções para esse problema, mais êxito terão em se estabelecer nesses campos em relação a seus concorrentes. Como veremos em um momento posterior do livro, a questão da qualidade na pesquisa qualitativa não é somente um problema técnico, mas também se refere à qualidade dos resultados e conclusões decorrentes da pesquisa ou do estudo (e o que há de novo nisso?). quatro níveis da pergunta sobre A qualidade A partir do que se disse até aqui, a pergunta sobre a qualidade na pesquisa (qualitativa) pode se feita em quatro níveis diferentes e por quatro diferentes grupos de atores. o interesse dos pesquisadores em saber o quanto sua pesquisa é boa ou insuficiente Os iniciantes em pesquisa, em particular, terão interesse em avaliar até onde podem confiar em seus resultados e se aplicaram seus métodos de forma correta e, em termos mais gerais, até onde sua própria pesquisa é produtiva. Como posso saber se a entrevista que fiz é satisfatória (ver Kvale, 2007)? Como descobrir até onde posso confiar em meus resultados a partir dessa entrevista ou de outras que eu tenha feito? E, por fim, que conclusões bem fundamentadas posso tirar delas? Como posso ter certeza de que as ideias que surgiram a partir dessas entrevistas representam o que o entrevistado pensa ou vivenciou? Se trabalho com outros pesquisadores, como posso ter certeza de que cada um de nós age de forma semelhante, para que as entrevistas e os resultados sejam comparáveis entre si e não apenas revelem diferenças entre os entrevistados? Nesse contexto, os critérios de qualidade ou as estratégias para avaliar e aprimorar a qualidade da pesquisa serão considerados úteis para que o pesquisador adquira confiança e se prepare para ser avaliado e criticado por outros (bancas de doutorado, por exemplo). Entretanto, também as questões de originalidade e novidade podem confundir os pesquisadores em relação a seus estudos.

Qualidade na pesquisa qualitativa 19 O interesse das instituições de financiamento em avaliar o que deveria ser ou já foi financiado A questão da avaliação torna-se relevante no processo de financiar a pesquisa em dois aspectos. Em primeiro lugar, uma proposta deve ser avaliada em relação à sua coerência e sua adequação ao que deve ser estudado e à qualidade dos resultados que se pode esperar. Em segundo, no final do financiamento, a pesquisa ou o relatório deve ser avaliado para ver quais de suas promessas foram cumpridas, até onde a pesquisa foi bem planejada e realizada segundo o plano e, em geral, o que resultou do estudo como um todo. Nesse caso, a comparabilidade torna-se, mais uma vez, uma questão relevante: de que forma essa proposta (qualitativa) específica é comparável com outras propostas qualitativas e como pode ser comparada às advindas de outras disciplinas, como as ciências naturais ou tecnológicas? Os processos de revisão costumam passar por comitês de vários níveis antes que uma decisão final seja tomada e são baseados principalmente em avaliações de vários cientistas. A pesquisa qualitativa, com sua flexibilidade e abertura em termos de como a pesquisa é planejada e praticada, costuma ser menos compatível com esses processos de avaliação do que a pesquisa padronizada ou experimental, em que a maior parte do planejamento é realizada no início do processo. Essas são razões pelas quais as instituições como ESRC, no Reino Unido, o National Institutes of Health, nos Estados Unidos, e o Conselho de Pesquisa da Alemanha têm dado contribuições consideráveis à discussão interna sobre como avaliar a qualidade da pesquisa qualitativa. Sua contribuição foi solicitar que pesquisadores de diferentes tradições qualitativas fizessem listas de critérios e itens que deveriam ser verificados para permitir julgamentos e decisões mais racionais e transparentes (ver Capítulo 2). Os resultados dessas atividades levaram a uma renovada intensificação da discussão acadêmica em relação às questões de qualidade, já que muitos pesquisadores não consideram que sua abordagem específica à pesquisa qualitativa em geral esteja representada nessas listas. O interesse dos editores de publicações acadêmicas na decisão sobre o que publicar e o que não publicar Uma tendência semelhante pode ser observada no contexto da publicação da pesquisa qualitativa. Quanto mais o número de artigos publicados em revistas, com revisão por pares se torna um indicador da qualidade científica e dos méritos de pesquisadores individuais, grupos de pesquisa, institutos, faculdades e universidades, mais a pesquisa qualitativa também deve ser submetida e revisada por especialistas. Nesse caso, também identificamos o problema de como tornar esse processo racional e transparente para aqueles

20 Uwe Flick que submetem um artigo ou solicitam avaliações de artigos qualitativos. Novamente, são observadas tentativas de definir listas de itens a ser verificados para avaliar a pesquisa relatada e, ao mesmo tempo, avaliar a forma como a pesquisa é avaliada e apresentada de forma transparente. Nesse aspecto, a questão da qualidade tem sua importância, de alguma forma, dobrada. As considerações de rigor e critérios na pesquisa são vistas como essenciais se houver intenção de publicar a pesquisa. Em sua apresentação, a pesquisa deve ser relacionada à literatura existente, por exemplo, o que é um critério em termos de representação. o interesse dos leitores em orientações sobre em qual pesquisa confiar e em qual não confiar Isso nos traz ao quarto nível no qual a questão da qualidade se torna relevante. Se você lesse um artigo sobre um estudo com resultados interessantes, talvez se interessasse em saber até onde esses resultados são baseados naquilo que foi estudado e o que possibilita que você acredite no que leu. Essa é a descrição mais geral da relevância da questão da qualidade em termos de usuário da pesquisa qualitativa. Na pesquisa padronizada, os testes de confiabilidade, validade e importância também cumprem a função de permitir uma verificação de credibilidade bastante simples e fácil em relação ao estudo e seus resultados. Isso não é transferível à pesquisa qualitativa (ver Capítulo 2), mas os critérios e as listas de itens podem ser a forma de responder à questão da credibilidade. De qualquer forma, seria útil para a recepção da pesquisa qualitativa se houvesse um instrumento comparável disponível e geralmente aceito nesse caso. o problema: como AvAliAr A qualidade da pesquisa qualitativa Até aqui, apresentei a relevância de tratar da questão da qualidade na discussão da pesquisa qualitativa. A seguir, concentro-me mais em como são os problemas gerais de estabelecer instrumentos de garantia de qualidade na pesquisa qualitativa. Esses problemas podem ser a razão pela qual, diferentemente da pesquisa qualitativa, ainda não foi estabelecido e aceito um cânone geral de critérios na pesquisa qualitativa. AvAliAção da pesquisa com base na padronização? Nas pesquisas qualitativa e experimental, encontramos uma relação próxima entre avaliação da pesquisa e padronização das situações de pesquisa.

Qualidade na pesquisa qualitativa 21 Para aumentar as validades interna e externa da pesquisa e seus resultados, são controladas as condições que interfiram. Caso seja necessário testar a inter-relação entre duas variáveis, a exclusão das variáveis que interfiram pode ser feita padronizando-se a situação de pesquisa para que não haja interferência de quaisquer variáveis não controladas. É por isso que a pesquisa em psicologia acabou acontecendo principalmente no laboratório experimental, onde as chances de haver esse tipo de controle são altas. A validade externa é a possibilidade de generalização dos resultados da situação de pesquisa (e do caso) para outras situações e casos. Isso pode ser obtido, mais uma vez, excluindo-se variáveis que interfiram, como vieses de amostragem, por exemplo. Sendo assim, a amostragem aleatória se aplica à pesquisa qualitativa porque possibilita excluir qualquer viés da amostra. Podem-se apresentar exemplos semelhantes para o caso da confiabilidade (ver Capítulo 2). O que esses exemplos mostram é que, na pesquisa quantitativa e experimental, critérios como a validade e a confiabilidade são conceituados de maneiras muito dependentes da padronização da situação de pesquisa. Se esses critérios e conceituações forem aplicados à pesquisa qualitativa, eles são confrontados com as situações de pesquisa que ganham muito com o fato de não serem padronizadas, não estarem situadas em laboratórios e não serem caracterizadas por um grau semelhante de controle. O que isso significa em nosso contexto? Se a avaliação de pesquisa está muito relacionada à padronização das situações e práticas de pesquisa, as formas tradicionais de avaliação são de difícil uso na pesquisa qualitativa, embora a intenção principal da pesquisa possa ainda ser relevante. Se tomamos o sentido cotidiano das palavras, os pesquisadores qualitativos também estão interessados em saber se os resultados (deles) são válidos e se é possível confiar neles. Contudo, esse interesse não significa necessariamente que eles adotem os procedimentos e as condições das formas com que a validade e a confiabilidade são verificadas na pesquisa padronizada. Parece haver uma necessidade de fazer esse tipo de pergunta, mas também uma necessidade de desenvolver formas adequadas de respondê-las. Essa é a primeira dimensão do problema uma necessidade de fazer perguntas semelhantes, mas também uma necessidade de desenvolver formas adequadas de respondê-las. No entanto, o que se disse até aqui torna pouco provável que a pesquisa qualitativa venha a corresponder ao conceito dos critérios para todos os tipos de pesquisa (social) empírica ou soluções gerais para a questão da qualidade em todas as ciências. Em vez disso, haverá necessidade de uma solução específica para lidar com a qualidade na pesquisa qualitativa.

22 Uwe Flick Tamanho único? Sendo assim, o que dizer dos critérios e estratégias para a pesquisa qualitativa em geral? Encontramos duas alternativas na literatura. Há uma discussão geral sobre os critérios de qualidade ou as listas de itens que devem ser verificados para a avaliação da pesquisa qualitativa em geral (p. ex., Elliot et al., 1999) e há intervenções como a de Reicher (2000), argumentando contra esse tipo de abordagem generalista e defendendo critérios, padrões e diretrizes específicos para cada abordagem. Barbour (2001, p. 1115) fala do engodo das soluções de tamanho único nesse contexto. O cerne do problema é que o termo pesquisa qualitativa é uma espécie de guarda-chuva sob o qual se juntam ou são embaladas abordagens com origens teóricas, princípios metodológicos, questões de pesquisa e objetivos muito diferentes. O que elas têm em comum é, às vezes, não mais do que o fato de serem não quantitativas de uma maneira ou de outra. A discussão geral sobre o que a pesquisa qualitativa é ou deixa de ser muitas vezes perde de vista as diferenças na abordagem e nas metas de diferentes tipos de pesquisa qualitativa. Se realizarmos um estudo em teoria fundamentada usando entrevistas, com interesse nos conteúdos do conhecimento cotidiano em um determinado campo, a meta será desenvolver uma teoria substancial a partir dele. Em uma análise de conversação (ver Rapley, 2007) de uma interação em aconselhamento, a abordagem estará muito mais direcionada aos princípios formais dessa interação, e o objetivo será desenvolver um modelo formal da interação, em comparação a outras formas de conversa. Em ambos os exemplos, as origens teóricas são tão diferentes quanto os focos empíricos e a meta geral dos estudos. Portanto, é possível avaliar esses dois exemplos com os mesmos critérios quando se trata de financiamento e publicação ou precisamos de diferentes critérios para cada um, considerando as características especiais de cada um sem nos tornarmos completamente relativistas em nossos julgamentos em relação à pesquisa boa ou ruim? Outra distinção a ser considerada é entre a pesquisa qualitativa com interesses principalmente acadêmicos (digamos, um projeto de dissertação) e campos mais específicos, como a avaliação quantitativa (ver Flick, 2006b). Por exemplo, importantes contribuições à discussão de qualidade vieram de Patton (2002), e há vários exemplos disponíveis de orientações para a boa avaliação qualitativa (ver Capítulo 2). Além de questionar se os métodos e as abordagens da pesquisa qualitativa em geral podem ser aplicados à avaliação, também podemos perguntar se esses indicadores de qualidade podem ser transferidos individualmente a áreas de pesquisa qualitativa mais (ou exclusivamente) interessadas na descoberta ou na descrição sem avaliação. Sendo assim, a questão interessante seria como desenvolver abordagens à qualidade na pesquisa qualitativa com uma orientação que percorra os di-

Qualidade na pesquisa qualitativa 23 ferentes campos e abordagens e que seja sensível aos aspectos específicos das diferentes tradições de pesquisa. Critérios adequados à pesquisa qualitativa ou pesquisa qualitativa adequada aos critérios? Barbour (2001, p. 1115) menciona outra questão relevante nesse contexto. A autora relata que vários pesquisadores a informaram que devem seguir vários procedimentos (como validação com entrevistados, codificação múltipla, etc.) para satisfazer os requisitos das revistas específicas em que esperam publicar seus trabalhos. Embora ela tenha dúvidas sobre até onde essas afirmações são verdadeiras ou exageradas, um problema específico da tendência a critérios e diretrizes é mencionados aqui. Eles podem desenvolver vida própria e ser usados estrategicamente em vez de funcionalmente. Se determinados métodos forem usados não por serem mais adequados à questão em estudo, mas porque oferecem mais probabilidades do que outros de garantir a publicação, alguma coisa está errada. Se estratégias ou critérios de qualidade específicos forem aplicados não por serem mais adequados ao que é a pesquisa ou como ela é feita, e sim porque facilitam entrar em determinadas revistas e receber financiamento, o rabo (critérios, listas de itens) começa a sacudir o cachorro (a pesquisa), nas palavras de Barbour. A autora discute vários exemplos de estratégias ou técnicas de pesquisa que se tornaram preferidas para corresponder às expectativas de listas de itens, publicações acadêmicas e financiamentos (validação por entrevistados, codificação múltipla, triangulação, amostragem propositada e teoria fundamentada). Nesse caso, poderíamos acrescentar o uso de programas como ATLAS.ti* (ver também Gibbs, 2007), que costumam ser mencionados em artigos sobre pesquisa qualitativa como algum tipo de método para analisar dados em vez de um dispositivo técnico para dar suporte a um método de análise (como a codificação teórica: Strauss e Corbin, 1998). Às vezes suspeito de que a ideia é que o uso da tecnologia torne mais confiável a pesquisa qualitativa e que o uso (e menção) dessa tecnologia é mais estratégico do que adequado. Como avaliar a qualidade da pesquisa de forma sensível e adequada Aqui, encontramos dilemas entre as necessidades da sensibilidade aos pontos fortes e fracos da pesquisa qualitativa e as necessidades e interes- * N. de R.T. ATLAS.ti é uma empresa que comercializa um software para análise de dados qualitativos.

24 Uwe Flick ses de atores externos à comunidade em essência isto é, quem contrata a pesquisa qualitativa, seus leitores, consumidores e editores. Neste livro, trataremos de várias formas de definir, abordar e promover a qualidade da pesquisa qualitativa. Isso será situado entre a formulação e a aplicação de critérios, reflexões sobre padrões e a formulação e aplicação de estratégias. É importante, nesse contexto, que cada uma das alternativas critérios, padrões e estratégias seja usada não apenas com um olhar para afirmações e interesses científicos, mas de forma que façam justiça ao que está sendo avaliado a pesquisa qualitativa e mais ainda aos participantes e instituições que estão prontos para tomar parte em uma pesquisa. Nessa encruzilhada, encontramos as relações entre qualidade e questões éticas na pesquisa qualitativa. ética e qualidade na pesquisa qualitativa A relação entre ética e qualidade na pesquisa qualitativa pode ser discutida a partir de três ângulos. Do primeiro, a qualidade é considerada como precondição para a pesquisa eticamente sólida. Pode-se dizer que é antiético fazer pesquisa qualitativa que não tenha refletido sobre como garantir a qualidade da pesquisa e sem ter certeza de que esse estudo será um bom exemplo no final do processo. A boa pesquisa é eticamente mais legítima à medida que vale a pena as pessoas investirem seu tempo nela e em revelar sua própria situação, ou em oferecer uma visão de sua própria privacidade. Se a qualidade final da pesquisa não for alta, é antiético fazer com que as pessoas participem ou revelem sua privacidade. Garantir e promover a qualidade da pesquisa torna-se uma precondição para a pesquisa ética nessa versão. O segundo ângulo considera a reflexão sobre questões éticas (proteger os dados, evitar danos aos participantes, respeitar perspectivas e privacidades e assim por diante) como uma característica de qualidade da pesquisa (qualitativa). Sendo assim, esse tipo de reflexão ética torna-se uma etapa necessária no processo de pesquisa (semelhante a, por exemplo, desenvolver um bom conjunto de perguntas ou lidar com casos desviantes e outros do gênero) e deve ser considerado quando a qualidade da pesquisa qualitativa é considerada. E há um terceiro ângulo: fazer pesquisa segundo padrões de qualidade pode afetar questões éticas. Fazer com que alguém relate toda a história de sua vida pode ser importante de um ponto de vista metodológico para entender como uma determinada doença se torna parte dessa vida e como as pessoas lidam com essa doença. Quanto mais e mais detalhadamente uma narrativa dessas for desenvolvida pelo participante do estudo e quanto mais espaço e apoio ele receber da pesquisa para isso melhor será a qualidade

Qualidade na pesquisa qualitativa 25 dos dados produzidos dessa forma (ver Gibbs, 2007). Entretanto, se estiver causando muita vulnerabilidade e exaustão aos pacientes, a doença pode ser um desafio grande demais para que eles reflitam, façam um relato e reconsiderem suas vidas como um todo em (muitos) detalhes. Nesse caso, há um conflito entre padrões metodológicos (ou expectativas de qualidade) e preocupações éticas em relação aos pacientes encararem certos aspectos de suas vidas. Isso também pode ser aplicado a abordagens como verificações por parte de membros (ver Capítulos 2 e 3) ou validação comunicativa (ver também Kvale, 2007), que fazem com que os participantes se deparem com o que disseram (ou com o que o pesquisador encontrou ao analisar essas declarações). Ambas as abordagens são estratégias para aumentar a qualidade na pesquisa qualitativa, mas também podem ser um problema ético em pesquisas com pessoas vulneráveis. A estrutura do livro Deve ficar claro que a questão da qualidade na pesquisa qualitativa é levantada em diferentes níveis, com distintas intenções e consequências. No restante deste livro, trataremos das diferentes abordagens para responder questões ligadas à questão da qualidade na pesquisa qualitativa. Trataremos das principais estratégias para o controle, ou seja, para a garantia e o aperfeiçoamento da pesquisa qualitativa. Nos primeiros capítulos do livro, discutiremos padrões, critérios e estratégias para abordar e avaliar a qualidade da pesquisa qualitativa. No capítulo seguinte, o problema de como avaliar a qualidade da pesquisa qualitativa e essas três alternativas serão desdobrados mais detalhadamente (Capítulo 2). As abordagens na literatura para a aplicação de validade, confiabilidade e objetividade à pesquisa qualitativa também serão discutidas, assim como tentativas de estabelecer padrões, diretrizes e listas de itens que devem ser verificados. A abordagem de estratégias para a avaliação de qualidade é tratada pela primeira vez neste capítulo, quando voltamos nossa atenção a estratégias para a avaliação de qualidade na pesquisa qualitativa (Capítulo 3). Na segunda parte do livro, o foco estará na triangulação como estratégia para promover qualidade na pesquisa qualitativa. Isso servirá de orientação em várias etapas. Depois de discutir os diferentes conceitos de triangulação que foram desenvolvidos no decorrer dos últimos anos (Capítulo 4), discuti remos o uso de triangulação metodológica por meio de vários exemplos (Capítulo 5). Isso é visto com mais detalhes para o campo da etnografia (ver Angrosino, 2007), mais uma vez com o uso de exemplos de várias áreas (Capítulo 6). Os pesquisadores qualitativos com frequência encontram a ideia de que uma forma de promover e garantir qualidade em sua pesquisa é combiná- la à

26 Uwe Flick pesquisa quantitativa. Isso mais recentemente passou a ser um tópico de discussão no contexto da pesquisa com métodos mistos. No Capítulo 7, serão discutidos o poder e os limites dessas combinações no contexto da promoção da qualidade. A etapa final dessa parte trata de questões práticas sobre como planejar e realizar um estudo usando triangulação visando à promoção de qualidade (Capítulo 8). Na parte final, os temas serão as estratégias para o gerenciamento da transparência, qualidade e ética na pesquisa qualitativa. Em primeiro lugar, trataremos das relações entre qualidade, criatividade e ética como formas distintas de fazer perguntas semelhantes (Capítulo 9) e abordar questões éticas na pesquisa qualitativa de diferentes ângulos. No capítulo final (Capítulo 10), trataremos da qualidade na pesquisa qualitativa sob o ângulo do processo de pesquisa e com um foco na transparência desse processo para os consumidores de um projeto de pesquisa (leitores, contratantes das pesquisas, estudantes, etc.). O esclarecimento da indicação da pesquisa qualitativa ou de suas variantes específicas será discutido no contexto da gestão de qualidade. pontos-chave A questão da qualidade na pesquisa qualitativa está situada na encruzilhada entre as necessidades internas e os desafios externos. Tornou se uma questão crucial com o estabelecimento progressivo de pesquisa qualitativa na concorrência com outras formas de pesquisa e outras disciplinas pelo financiamento, publicação e influência. A formulação de critérios é apenas uma solução para o problema. leituras complementares Nos textos abaixo, as questões de qualidade para pesquisa qualitativa são apontadas e resumidas de forma mais detalhada, com mais ou menos foco em uma área (como a avaliação), mas com relevância para a pesquisa qualitativa como um todo: Flick, U. (2006a) An Introduction to Qualitative Research (3rd ed.). London: Sage, part 7. Gibbs, G. (2007) Analyzing Qualitative Data (Book 6 of The SAGE Qualitative Research Kit). London: Sage. Publicado pela Artmed Editora sob o título Análise de dados qualitativos. Kvale, S. (2007) Doing Interviews (Book 2 of The SAGE Qualitative Research Kit). London: Sage. Patton, M.Q. (2002) Qualitative Evaluation and Research Methods (3rd edn). London: Sage, chap. 9. Rapley, T. (2007) Doing Conversation, Discourse and Document Analysis (Book 7 of The SAGE Qualitative Research Kit). London: Sage. Seale, C. (1999) The Quality of Qualitative Research. London: Sage.