CIÊNCIA EM CRISE Nuno Grato diz que quer investigação de grande qualidade Nicolau Ferreira Ministro da Educação e Ciência, ouvido ontem na Assembleia da República, argumenta que não há desinvestimento na ciência. Pelo contrário, o seu Governo até travou os cortes
de grande qualidade: este foi o desejo expresso ontem de manhã por Nuno Crato, ministro da Educação Ciência e Ciência, na Assembleia da República. O ministro foi chamado ao Parlamento pelo Partido Socialista, que invocou o direito potestativo, e foi repetidamente questionado pela oposição sobre a diminuição de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), tutelada pelo ministro. Nuno Crato sublinhou que a aposta da política de ciência é na "grande qualidade", o que também dependia do "esforço dos cientistas, com a elevada qualidade do seu trabalho, conseguiram ir buscar fundos europeus". "Não há abandono da formação avançada", disse o ministro. "Temos um programa de retenção dos melhores dos nossos cientistas e dos melhores investigadores internacionais", referindo-se ao concurso internacional Investigador FCT, que vai ser impugnado judicialmente por uma plataforma de cientistas criada há pouco tempo, alegando irregularidades. "Há um mito que é preciso refutar: o Governo não desinvestiu na ciência e continua a apostar na formação avançada." Crato diz que nos últimos anos a ciência tem tido mais dinheiro, e mostra um gráfico sobre o financiamento da FCT para sustentar as suas afirmações. "Reparem na queda iniciada em 2009. Reparem como nós, a partir de 2011, sustivemos a queda e conseguimos que mais dinheiro fosse investido", disse o ministro, referindo-se ao orçamento efectivamente gasto da FCT. "Não confundamos um concurso de bolsas individuais, com o total de bolsas em execução." Indo então aos números. Até 2009, e sob alçada do governo socialista de José Sócrates e o ministro da Ciência Mariano Gago, o dinheiro orçamentado para a FCT tinha vindo a aumentar. O pico do dinheiro orçamentado anualmente (o que não quer dizer que venha a ser realmente gasto) foi atingido em 2009, com 639 milhões de euros. Mas há uma diferença entre dinheiro orçamentado e dinheiro gasto (ou executado, na linguagem técnica). A maior fatia do dinheiro executado pela FCT foi em 2010, com 469 milhões de euros gastos (mais três milhões do que em 2009). Nos anos seguintes, a FCT executou ao máximo face ao orçamentado: 410 milhões de euros gastos em 2011, 416 milhões em 2012 e 424 milhões em 2013. Para 2014, o orçamento pro- O ministro Nuno Crato acompanhado pela secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, ontem no Parlamento
posto é de 436 milhões de euros. O que realmente o gráfico mostra é que o dinheiro orçamentado veio a baixar desde 2009. Que o dinheiro oriundo do Orçamento do Estado veio também a baixar. E que, desde 2011, o dinheiro executado tem-se mantido, mas é menor do que nos anos anteriores. De ano para ano, os cortes no financiamento da FCT foram-se reflectindo em cortes no orçamento dos laboratórios do Estado e dos laboratórios associados (uma rede de 26 laboratórios), criando dificuldades financeiras na comunidade científica, que se queixa também de uma excessiva burocracia. Na semana passada, os cortes ganharam visibilidade. Soube-se que 5190 candidatos não receberam bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento da FCT. De 2012 para 2013, o número de bolsas de doutoramentos atribuídas baixou quase 40% (mesmo tendo em conta as 431 bolsas dadas em 2013 nos novos programas de doutoramento da FCT). E o número de bolsas de pós-doutoramento caiu ainda mais, chegando a um corte de 65%. E os cientistas foram para a rua: numa manifestação, na terça-feira em Lisboa, que reuniu cerca de mil pessoas, ouvia-se em frente da sede da FCT palavras de ordem: "Incompetência está aí, excelência está aqui." Ontem no Parlamento, Elza Pais, deputada do PS, argumentou que o Governo está a expulsar do país os mais qualificados. "O novo paradigma de que falam não serve a ciência, faz parte de um programa de destruição de tudo o que é público", disse. Mas Crato refutou esta tese e mostrou os números: 2300 projectos em execução com o financiamento de 280 milhões de euros; um aumento de 43,9% de financiamento das unidades de investigação - 293 no país, espalhadas pelas universidades, onde estão 1500 investigadores; mais de 10.000 investigadores apoiados anualmente. Em relação aos 5190 candidatos sem bolsa, o ministro não reagiu. Na bancada parlamentar do PS, a interpretação sobre o estado da ciência divergia. Odete João considerou o Programa do Governo para ciência como uma "errata", que "não cumpre nada daquilo que definiu" e "gera instabilidade, insegurança, não dá às instituições os recursos necessários para desenvolver o seu trabalho", deixando o futuro do país "cada vez mais empobrecido". Já o PCP insistiu na condição precária dos bolseiros de investigação. "Estes trabalhadores são os mais qualificados do país, não têm direito ao apoio social, dão aulas de graça", denunciou Paula Baptista. A deputada do PSD, Nilza de Sena, referiu que o PS veio, mais uma vez, mostrar um "cenário alarmista", que não representa o que se passa em Portugal. "Este Governo mantém o financiamento do sistema", disse a deputada, argumentando que o Governo de José Sócrates diminuiu "em 25%" o financiamento anual da FCT entre 2009 e 2011. Luís Fazenda, deputado do Bloco de Esquerda (BE), quis saber se as ciências sociais estavam a ser alvo de preconceito em relação ao financiamento atribuído e pediu explicações sobre as irregularidades do concurso das bolsas individuais, que estão a ser contestadas por plenários de avaliação e já deram origem a pedidos de demissão. "É a comunidade científica que contesta", argumentou o bloquista, referindo que o BE vai chamar o ministro à Comissão de Educação, Ciência e Cultura. Mas o ministro remeteu a explicação para Miguel Seabra, presidente da FCT, que seria ouvido ontem mais tarde na comissão mencionada (ver caixa). Nuno Crato disse ainda que houve cerca de 30% das bolsas atribuídas às áreas das ciências sociais, rejeitando qualquer discriminação (ver texto nas páginas 28/29). "É muito difícil falar quando não nos querem ouvir", queixou-se o ministro. "Estamos a manter Portugal nas grandes organizações europeias, com dívidas que vieram do passado e que têm custos para a FCT", disse ainda, justificando parte do destino do financiamento da FCT, e referindo ainda que a queda do Produto Interno Bruto em ciência reflecte uma "queda do investimento das empresas". O ministro comentava assim a descida deste indicador que mostra o esforço do país em ciência e inclui dinheiros públicos e privados. Atingido o pico em 2009 (1,64%) e, desde então, tem estado em queda, sendo de 1,50% em 2012. Miguel Seabra no Parlamento painéis que avaliaram as bolsas da Fundação Ospara a Ciência e a Tecnologia (FCT) não foram informados das alterações nos resultados dos concursos para evitar mais atrasos -justificou ontem Miguel Seabra, presidente da FCT, ouvido na Comissão de Educação, Ciência e Cultura a pedido do Bloco de Esquerda. "Se tivéssemos feito com os painéis aquilo que gostaríamos de ter feito, o que evitaria algum desconforto, demoraríamos mais um mês a publicar os resultados", disse. Os resultados, que deviam ter sido divulgados no final de Dezembro, foram conhecidos na semana passada. Estas declarações surgem após queixas de painéis de avaliação dos últimos concursos individuais de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento da FCT, lamentando alterações na ordenação dos resultados do concurso sem que tivessem sabido disso. A FCT diz que estas mudanças foram de cariz métrico, não envolveram qualquer avaliação científica e afectaram 3% dos candidatos (cerca de 170 pessoas). "A coordenação dos painéis da FCT deveria ter informado atempadamente as alterações e discutir os critérios", admitiu Miguel Seabra, "mas lembremse da pressão dos prazos dos bolseiros". E nota que qualquer candidato pode pedir recurso. Na sessão, os deputados da oposição questionaram
o grande corte do número de bolsas atribuídas. Seabra respondeu que se pode reter cientistas através de projectos. Mas argumentou que a diminuição de bolsas também reflectiu um ajustamento do orçamento. "Os compromissos plurianuais no passado tinham uma previsão de orçamento que não se verificou e houve um reequilíbrio", explicou, defendendo mais dinheiro do Orçamento do Estado para a FCT. N.F. Falar de ciência e inovação com cortes em pano de fundo Ana Gerschenf eld O biólogo britânico Paul Nurse, Nobel da Medicina II ão houve por aí um sítio Bonde o número de estudantes de doutoramento «Icaiu 40%?" A pergunta, irónica, veio do biólogo I britânico Paul Nurse, prémio Nobel da Medicina e presidente da Royal Society, durante a palestra, intitulada "Fazer funcionar a ciência", que proferiu ontem na Universidade de Lisboa (UL). Como se soube há dias, o número de bolsas de doutoramento atribuído pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) sofreu uma queda de 40% em relação ao ano anterior e que o das bolsas de pós-doutoramento diminuiu 65%. Nurse não foi o primeiro nem o último a referir-se directa e duramente. ao longo de uma conferência organizada pela Fundação Francisco Manuel do Santos (FFMS) sobre o tema "ciência, cultura e inovação", aos recentes cortes do financiamento público da ciência em Portugal. Logo no início, enquanto dava as boas-vindas aos intervenientes perante uma sala cheia, o reitor da UL, António Cruz Serra, evocou durante alguns minutos "o enorme ataque às universidades e o desinvestimento na ciência", achando que "as circunstâncias exigiam que fizesse este discurso". Também o sociólogo António Barreto, presidente da FFMS, argumentou na sua curta intervenção que "embora nada nem ninguém escape aos cortes, o que em certo sentido é justo, a austeridade excessiva pode causar mais estragos do que benefícios". Mais tarde, Paul Nurse faria notar ainda que "quando se corta do lado das descobertas científicas, rapidamente se perde a inovação a curto prazo", qualificando quem acredita o contrário de "ingénuo". José Brandão de Brito, do Instituto Superior de Economia e Gestão, foi outro orador que não quis deixar de salientar oportuna a realização da conferência num momento em que a ciência "acaba de receber um enorme e violento golpe - talvez o maior desde que recuperámos a democracia em 1974". Já à margem do evento, Carlos Salema, que foi presidente da JNICT (antecessora da FCT) entre 1989 e 1992, disse ao PÚBLICO que o que está a acontecer é "sobretudo uma alteração profunda" de uma situação que já existia, mas que está agora a ser feita "com pouco cuidado". "Claro que não concordo!", exclamou. "Passar de mil bolsas [de doutouramento] para 300!" Graça Carvalho, ex-ministra da Ciência de Durão Barroso e hoje eurodeputada, mostrou-se mais moderada, mas disse-nos, contudo, que o corte "deveria ter sido mais gradual" e que "em altura de crise faz mais sentido continuar com mais bolsas individuais do que ter tantos cursos doutorais", fazendo referência às novas bolsas criadas pelo Governo em 2012 e que são atribuídas pelas universidades aos seus candidatos a doutoramento. "É mais barato e [as bolsas individuais] chegam mais depressa às pessoas." Elvira Fortunato, da Universidade Nova de Lisboa, desenvolveu há uns anos o primeiro transístor em papel. E a área em que trabalha - engenharia dos materiais - foi considerada pela UE como uma das mais competitivas em Portugal. Porém, também não escapou aos cortes. "Acho que o corte foi muito drástico", disse-nos. "E foi transversal", acrescenta - em todas as áreas, de forma indiscriminada. "No ano passado, a área [dos materiais] teve 54 bolsas de doutoramento; este ano foram nove, com a desculpa de que havia os planos [bolsas] doutorais." Mas essas são ainda menos - apenas seis - o que corresponde a uma quebra de mais de 70%.