Alteridade e responsividade em Bakhtin Sebastiana Almeida Souza (UFMT/MeEL) 1 Sérgio Henrique de Souza Almeida (UFMT/MeEL) 2 Introdução Este artigo pretende trabalhar a noção de alteridade e responsividade em uma abordagem bakhtiniana através da análise do poema O Outro, de Mário de Sá Carneiro, musicado por Adriana Calcanhoto. Assim, serão abordadas também as noções de sujeito e dialogismo, uma vez que, para Bakhtin e seu Círculo é somente nas relações dialógicas que o sujeito se instaura enquanto ser responsivo. Música: O outro (Adriana Calcanhoto) Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o outro. No poema de Mário de Sá Carneiro, musicado por Adriana Calcanhoto, a nosso ver, encontra se resumido com poucas palavras o que Bakhtin e o Círculo entendem pela relação do sujeito com seu outro, uma relação de incompletude. Iniciaremos analisando o primeiro verso do poema eu não sou eu nem sou o outro. Baseando se na teoria bakhtiniana, compreendemos que somos constituídos em uma relação entre o eu e o outro, mas, nas interações, num sentido aparentemente paradoxal, não deixo de ser eu, por isso, eu não sou eu (no sentido de uma identidade fixa, estática), nem sou outro 1 Mestranda do Programa de Pós graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá, Brasil, tianaalmeida@gmail.com. 2 Mestrando do Programa de Pós graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá, Brasil, sergio.almeidabr@gmail.com.
(em que o eu se perde ou é assujeitado pelo outro). Nesse aspecto, Bakhtin assinala que a busca da palavra como ato, por sua vez singular e irrepetível, deve descrever de maneira participante a concreta arquitetônica, focada ao redor do eu, cujos momentos, segundo os quais se constituem e se dispõem todos os valores, os significados e as relações espaço temporais, são eu para mim, o outro para mim e eu para o outro (Bakhtin,1992, p.38), o que caracteriza a arquitetônica do eu em termos de alteridade. A dialogicidade do eu que Bakhtin (1929 e 1963) descreve, analisando a na obra de Dostoiévski, é a expressão desta inevitável situação do eu e da palavra na qual se decide cada vez o seu ouvir, o seu pensar, o seu agir, o seu dizer, o que fica claro no poema, a qual, se trabalharmos de forma dialógica, consequentemente, fará os alunos refletirem e refratarem os diversos sentidos ali sugeridos. Os versos sou qualquer coisa de intermédio: pilar da ponte de tédio nos remetem ao conceito de interação, ao evento da interação, que se constitui em um eu e o outro, ou seja, é no momento da interação que acontece o diálogo e ali se constitui a natureza da linguagem. Para Bakhtin (isso permeia toda a sua obra), viver é tomar posições continuamente, é enquadrar se em um sistema de valores e, do interior dele, responder axiologicamente. A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (Bakhtin/Voloshinov (1929/2006:127) Desse modo, partindo dos pressupostos bakhtinianos de que a linguagem humana é essencialmente dialógica e de que vivemos "no universo das palavras do outro", focalizaremos, mais precisamente, em que medida o dialogismo e a alteridade figuram e se configuram no discurso, neste caso na análise do poema. Entendemos, com Bakhtin, que nossas palavras estão imbricadas com a palavra do outro. (...) Vivo no universo das palavras do outro. E toda a minha vida consiste em conduzir me nesse universo, em reagir às palavras do outro. (...) A palavra do
outro impõe ao homem a tarefa de compreender esta palavra. A palavra do outro deve transformar se em palavra minha alheia (ou alheia minha). Distância (exotopia) e respeito. O objeto se transforma em sujeito (em outro eu) (Bakhtin, 2000, p. 385,386). 1. Alteridade e Dialogicidade da palavra Analisando o último verso do poema Que vai de mim para o outro, entendemos que estamos constantemente internalizando e ressignificando os enunciados dos outros. A linguagem apresenta, segundo Bakhtin (2003), um caráter heteroglóssico; assim como dialógico, uma vez que esses enunciados sempre pressupõem uma atitude responsiva do(s) outro(s) a quem eles se dirigem. Conforme o próprio Bakhtin (2004, p. 79), Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou: é produto da interação entre falantes e em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu. Por conseguinte, o eu e o outro constroem, cada qual, um universo de valores. A esse respeito, Faraco (2003, p. 22) acrescenta: O mesmo mundo, quando correlacionado comigo e com o outro, recebe valorações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que elas são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): é na contraposição de valores que os atos concretos se realizam; é no plano dessa contraposição axiológica (é no plano da alteridade) que cada um orienta seus atos. Baseado na concepção de alteridade, Bakhtin afirma que não há um destinatário pacífico, cuja única função se resume em compreender o locutor. A atitude do destinatário em relação à fala do locutor é sempre responsiva ativa e materializa se na sua resposta (externa ou interna). Ponzio (2010, p. 54) acrescenta que o destinatário da palavra tem uma posição de quem responde de forma ativa; (...) o seu acordo ou desacordo (...) estão em jogo (...) desde a primeira palavra do falante. É exatamente uma resposta e não uma compreensão passiva que o locutor espera do(s) outro(s) a quem o seu discurso se dirige. Resposta que pode se materializar sob a forma de uma concordância, pois nossos enunciados estão repletos da fala dos outros, isto é, de outros enunciados que são assimilados ou empregados de forma consciente ou não consciente.
O dialogismo na teoria bakhtiniana pode ser interpretado como o elemento que instaura a natureza interdiscursiva da linguagem, na medida em que diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, que existe entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade (Brait, 1997, p. 98), assim, podemos pensar que o poema de Mário de Sá Carneiro se torna um elemento representativo das relações discursivas que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos. Analisando o poema na perspectiva da linguagem verbal, verificamos várias questões que se iluminam. Assim como na língua, podemos dizer que também aqui são as obras concretamente produzidas (os enunciados poéticos) que permitem o acesso das pessoas à fruição e compreensão da poesia. Poesia não é só um texto que se divide em estrofes e versos. Poesia é uma forma de se expressar e transmitir sentimentos, emoções e pensamentos. O poema é a forma em que a poesia se expressa com a linguagem escrita. No poema, as palavras se combinam de uma forma especial: Muitas delas (as palavras) se combinam de tal forma que evidenciam terem sido selecionadas não só pelo seu significado, mas também pelo seu significante, com o intuito de sugerir formas, cores, odores, sons, criar imagens, etc. Isso é o que observamos quando lemos, vemos ou ouvimos, um poema. Além disso, das palavras emana uma espécie de melodia, um ritmo, decorrente da forma como o poema é composto. (CEREJA, 1995) Os sistemas, as regras formais, as escolas estilísticas só são acessíveis, só tem existência por intermédio das obras concretas. Fora delas, não passam de abstrações, possibilidades virtuais que podem ou não vir a se realizarem. Analogamente ao funcionamento linguístico, também todo enunciado poético é dirigido a alguém, pressupõe um interlocutor presente ou ausente, real ou imaginário que de algum modo lhe será um respondente. A resposta aos enunciados poéticos, também como na língua, nem sempre é imediata e materialmente visível, pois pode ser desde uma simples fruição da obra ou uma manifestação verbal (como um elogio, saudação ou cumprimento) até a criação de outra obra em algum outro momento ou numa outra linguagem artística, no nosso caso, uma música. Esse jogo de respostas a enunciados artísticos através da criação de outras obras, aliás, é uma característica muito presente no campo artístico de modo geral, não apenas no poema.
Desse modo, compreendemos que se trabalharmos o poema em sala de aula, em nosso caso, musicado, numa perspectiva dialógica, o professor estará de forma lúdica e prazerosa e bastante agradável, enfatizando sua relevância para o desenvolvimento cognitivo de seus alunos. Pela poesia e pela música, o professor tem a oportunidade de levar seu aluno a se expressar, reivindicar, falar ao mundo do mundo e do seu próprio mundo. Assim, o poema e a música nascem de um querer dizer. Provêm de uma necessidade humana de expressar por meio do enunciado poético seus sentimentos em relação aos acontecimentos do dia a dia, suas angústias, medos, dores, injustiças, amor, enfim, sonhos e devaneios. Podemos ter bons frutos no processo educativo se colaborarmos para a formação de leitores críticos capazes também de serem leitores de si mesmos. A música, expressão artística mais presente no cotidiano do aluno, tem a capacidade de ampliar e facilitar a aprendizagem do educando, ensinando o indivíduo a ouvir e a escutar de maneira ativa e reflexiva. Considerações finais: reflexões para outros horizontes Muito embora nosso caminho reflexivo nessa direção ainda esteja no início, a perspectiva discursiva mostra sinais positivos também ao jogar algumas luzes nas nossas práticas educativas e reflexivas sobre a questão do ensino de poesia e da música, em particular. O fato de concebermos o poema e o campo musical como uma cadeia discursiva permite uma revisão radical dos procedimentos que envolvem o ensino de leitura e escrita de poemas na escola. Para além do campo analítico dos elementos linguísticos apenas, pensamos que esse modo de entender o poema e a música como um querer dizer, seja promissor também para os estudos da discursividade. Desse modo, alicerçados na concepção dialógica da linguagem, podemos dizer que a nossa fala, assim como o poema, a música, não pertence só a nós. Neles ecoam muitos discursos, muitas vozes, às vezes explícitas, às vezes silenciadas. Nesse sentido, observamos que o discurso do outro na abordagem bakhtiniana revela a presença do heterogêneo na constituição do discurso, o que nos mostra a contribuição de Bakhtin para os estudos da heterogeneidade, a partir de sua reflexão sobre o discurso de outrem.
Referências BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 1 ed. Tradução de Maria Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1992 b., M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006. BRAIT, Beth. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem In: (org). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: UNICAMP, 1997. CEREJA, William R. MAGALHÃES, T. C. Literatura Brasileira. São Paulo, Atual, 1995. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Curitiba: Criar, 2003. PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.