Prefácio Prefácio Da Europa e da França - os passos suspensos O livro que agora vem a lume resultou da uma Dissertação de Mestrado que a autora realizou na Universidade de Aveiro e que acaba de ser distinguida pelo Centro Europeu Jacques Delors com uma menção honrosa. Nada de mais justo, em nossa opinião, que acompanhámos e orientámos a realização deste excelente trabalho, o qual traz, efectivamente, um conjunto de novidades teóricas importantes e revela as qualidades excepcionais de uma investigadora que se transformou, entretanto, numa qualificada estudiosa da obra lourenceana, justificando em pleno o mérito que agora lhe é publicamente reconhecido, a que se acrescenta ainda a merecida (e necessária) publicação do seu trabalho. A maior originalidade desta investigação encontramo-la logo no título do livro, o qual coloca implicitamente o problema que ocupa a investigadora: trata-se de analisar as relações entre a França e a Europa na obra de Eduardo Lourenço. Com efeito, a dimensão europeísta da obra deste nosso filósofo da cultura tem já sido sobejamente trabalhada e analisada, mas quase sempre a partir das coordenadas da própria Europa (da sua História, Cultura, Representações, Mitologias, etc.), ou em confronto com a actual Cultura Mundializada cuja origem e cerne 7
Maria Manuel Baptista é situada por Lourenço nos Estados Unidos da América. Conhecemos, igualmente, trabalhos que problematizam a relação de Portugal (e até da Península Ibérica) com a Europa. Este é, porém, o primeiro esforço para investigar as relações que, no contexto da reflexão lourenceana, a França mantém com a Europa. Com efeito, em nosso entender, este é um problema fundamental, que o presente estudo vem confirmar, discutindo-o e clarificando-o nas suas múltiplas e tensionais coordenadas. E dizemos tratar-se de um estudo fundamental, quer para as questões europeias, quer para um maior conhecimento e aprofundamento da(s) identidade(s) cultural(ais) francesa(s), por várias razões: em primeiro lugar, porque a obra de Eduardo Lourenço tem sido quase toda produzida em França e encontra-se, obviamente, muito determinada (ao menos do ponto de vista filosófico e teórico, mas não apenas ) pela Cultura Francesa. Compreende-se, assim, que um dos pontos de mira por excelência da obra de Eduardo Lourenço sobre a Europa se faça precisamente a partir desse contexto gaulês. Por outro lado, esse ponto de vista privilegiado do autor conduz a reflexão da pesquisadora a procurar os nexos e nós problemáticos que ligam e (retro)alimentam a crise francesa e a crise europeia, a identidade francesa e a identidade europeia, a cultura francesa e a cultura europeia num movimento de auto e e hetero-explicitação de ambas. Veja-se, por exemplo e a título ilustrativo, mas paradigmático, o modo como a autora analisa, entre outros aspectos, as articulações que encontra em Lourenço a temática da laicidade vista quer a partir da cultura francesa, quer da cultura europeia (e daí a naturalidade com que a autora se achou na necessidade de aprofundar as relações entre o ensaísmo de Montaigne e a laicidade francesa, acabando finalmente por seguir as respectivas repercussões teóricas no próprio ensaísmo lourenceano). Com efeito, interrogar a França neste domínio da laicidade (actividade de que se têm encarregue muitos dos cidadãos franceses de origem cultural islâmica) é interrogar a própria Europa, que dificilmente pode abandonar o olhar francês sobre esta questão, desde logo quando também sobre ela teve de reflectir recentemente (por exemplo, a propósito da tentativa de elaboração de uma Constituição Europeia com ou sem a referência explícita à matriz cultural judaico-cristã), mas já pelo menos desde a Revolução Francesa. Na verdade, a intuição de base deste trabalho, que parte da ideia de 8
Prefácio que talvez a chave para compreender boa parte do pensamento europeu de Eduardo Lourenço se encontre na reflexão que o filósofo da cultura produz sobre a França, permite que a agora Mestre Dulce Martinho possa chegar a conclusões surpreendentes, não só por detectar na obra lourenceana uma espécie de centralidade francesa quando este pensa a Europa, mas também por reconhecer que esta ocupa, paradoxal e simultaneamente um topos periférico, que não deixa de ser reforçado por alguns laivos oriundos da actual avalanche da cultura anglo-saxónica. Só assim se pode compreender o passo suspenso da Europa, como passo suspenso da França (ou o inverso, bem vistas as coisas). Verdadeiramente, o que fica bem assente nesta investigação é que, na reflexão de Eduardo Lourenço, a Europa e a França são centro e periferia uma da outra, limitam-se mutuamente, estimulam-se e provocam-se como um par amoroso, indissociável por vezes, e noutras alturas comportando-se como se cada uma destas singularidades histórico-culturais lhes fosse um peso insuportável. Mas, para que a obra que agora temos entre mãos pudesse ter atingido esta qualidade e rigor reflexivos muito contribuíram as capacidades intelectuais da candidata e também o seu enorme esforço, que não soçobrou à tarefa de lidar com a extensíssima bibliografia de Eduardo Lourenço, mesmo centrando-se preferencialmente naquela que à Europa e à França dizem respeito, tendo analisado textos que vão desde a década de 40 do século XX até à primeira década do século XXI, nos mais diversos formatos textuais (ensaios, entrevistas, excertos auto- -biográficos, etc), procurando traçar, pela primeira vez, a evolução do pensamento lourenceano a este propósito. Não podemos, porém, terminar esta breve nota de apresentação do trabalho que agora se publica sem salientar um outro núcleo de profunda novidade da investigação da Mestre Dulce Martinho e que se refere ao modo como nela faz comunicar as obras de Montaigne, Lourenço e Steiner, através da comum procura do que são as Identidade(s) Europeia(s) nas suas relações com as Identidade(s) Francesa(s). Mais do que isso, a investigação realizada acaba por revelar que é a aguda consciência da categoria ôntico-existencial do Tempo (de Montaigne a Steiner, passando por Eduardo Lourenço) que acaba por se tornar o elemento identitário simbolicamente mais profundo e relevante da Europa e de todas as europas nela contidas (a França em primeiro 9
Maria Manuel Baptista lugar). E daqui o podermos voltar à ideia central desta investigação, colhida na própria obra de Eduardo Lourenço e que justamente sublinha a autora deste trabalho, ao considerar que «( ) metonimicamente a Europa é a França, porque a primeira ( ) é em grande parte não só criatura da mesma França, mas na sua já concreta existência, realidade francesa». Aveiro, 28 de Outubro de 2010 Maria Manuel Baptista 10