Um case em foco. Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002. Este case foi elaborado pelos professores. Francisco Gracioso Presidente da ESPM



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Transcrição:

Neste case, organizado a partir de entrevista concedida pelo Sr. Guilherme Leal, um dos três presidentes da Natura, verificamos que os princípios da ética e da transparência nos relacionamentos constituíram, desde o início, a base e o diferencial para o desenvolvimento de negócios da empresa. De forma brilhante, ele explica o significado da responsabilidade social corporativa para a Natura e mostra como e por que esta perspectiva foi implementada como prática de gestão. Com base nisso, várias questões são propostas ao estudante. Um case em foco Natura: Liderança baseada na ética e na estéticatica Este case foi elaborado pelos professores Francisco Gracioso Presidente da ESPM Sérgio A. P. Esteves Diretor Presidente da AMCE Negócios Sustentáveis, uma empresa de consultoria de gestão especializada em sustentabilidade e responsabilidade Coordenador do Curso de Responsabilidade Social Empresarial da ESPM Este case faz parte da coleção da Central de Cases ESPM/EXAME, criada para estimular a utilização de cases nas escolas brasileiras. 107

Introdução Desde que foi criada, há 33 anos, a Natura tem sido conduzida por duas grandes paixões: a utilização dos cosméticos como instrumentos para o bemestar e ampliação da consciência, e as relações entre as pessoas como expressões maiores da vida. Ao mesmo tempo em que, objetivamente, a empresa planejava crescer dentro de um mercado competitivo, optando pelo sistema de venda direta, suas lideranças mantinham a convicção de que o mundo exigia compromissos sólidos entre empresas e sociedade. A noção de beleza, para a Natura, solicitava uma nova interpretação, mais atenta à diversidade, mais ligada ao bem-estar físico e emocional. Nesse sentido, produtos deveriam servir como instrumento de ampliação de consciência do ser, do próprio corpo, transmitir conceitos, fazer pensar e despertar para a transformação. Para concretizar essa vocação, de certa forma visionária, a companhia encaminhou sua trajetória para a explicitação e documentação de suas Crenças e Valores e para a formalização de seus compromissos com as pessoas, com o social, com o ambiental. Início da década de 90, isso até provocou uma certa desconfiança nos diferentes stakeholders da empresa, que acreditavam mais no business as usual. Para quem não conhecia as bases da empresa, essas iniciativas, tomadas dentro de um mercado agressivo, chegaram a ser confundidas com ações de marketing e não como diretriz estratégica, capaz de orientar a gestão de negócio e criar diferenciais competitivos, bons para a empresa e essenciais para a sociedade. O sucesso da Natura, que hoje se firma como uma das empresas mais importantes do mercado brasileiro, provou a todos que o caminho escolhido pela direção da empresa foi o mais viável, não só para a sua sobrevivência corporativa, como para a sobrevivência do próprio mercado. Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002 No decorrer de sua história, os princípios básicos adotados pela Natura, como a ética e a transparência em todos os relacionamentos com seus públicos e comunidades, foram ampliados. Tendo suas lideranças participado do antigo PNBE Pensamento Nacional das Bases Empresariais, no início dos anos 90, foi natural que as decisões da empresa contemplassem alternativas voltadas ao exercício da cidadania e à criação de um mercado menos autofágico. No final dos anos 90, as lideranças da Natura envolveram-se com a fundação do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, tornando-se uma das primeiras empresas brasileiras a adotar a responsabilidade social corporativa como prática de gestão. Só que era preciso ir além. Ao lado de expressar seu compromisso, era necessário avaliar processos e práticas. A Natura adotou, então, os Indicadores Ethos de Responsabilidade Social Empresarial para mensurar índices ligados à responsabilidade social, corrigir rotas e avançar. Assumiu, também, o compromisso de divulgar os indicadores de desempenho e os resultados da companhia, em suas dimensões econômicas, sociais e ambientais, integrando em seus relatórios anuais, informações relevantes aos seus diversos públicos de relacionamento. Para compor o seu Relatório Anual de Responsabilidade Corporativa, com duas versões já publicadas, utilizou o modelo proposto pela GRI Global Reporting Initiative, instituição de abrangência e credibilidade mundial, amparada por ampla rede de organizações multilaterais da sociedade civil. Ao adotar, com pioneirismo, essa referência ampla e transparente, a Natura buscou aprofundar o debate sobre o compromisso com a responsabilidade social empresarial. Nas palavras de Guilherme Leal, Presidente Executivo da Natura, a responsabilidade social tornou-se, dessa forma, não apenas um valor básico da cultura organizacional, mas um dos principais fatores que explica a consolidação do extraordinário sucesso da empresa que, hoje, ocupa a liderança do mercado brasileiro de cosméticos e produtos de beleza. Neste case-study, construído a partir da entrevista concedida pelo Sr. Guilherme Leal aos professores Francisco Gracioso e Sérgio A. P. Esteves, a Natura dá a sua própria definição do que é responsabilidade social empresarial. Mostra como esse conceito foi implementado na organização. Descreve as dificuldades encontradas e os resultados obtidos e, finalmente, faz um balanço retrospectivo, com o olhar no futuro. Coloca-se em discussão, aqui, o caminho trilhado pela Natura e todas as suas implicações dentro de um novo mercado, numa dimensão jamais imaginada pelos estudiosos da responsabilidade social empresarial. Como surgiu a Natura Com uma loja e um laboratório, a Natura que conhecemos hoje foi fundada, em 1969, por Antonio Luiz da Cunha Seabra. O objetivo era levar aos consumidores produtos de cuidado pessoal que fossem produzidos com fórmulas baseadas em princípios ativos naturais, climatizados para as condições brasileiras e através de um atendimento personalizado. Em 1970, a empresa passou a ser nomeada Indústria e Comércio de Cosméticos Natura Ltda. Nessa mesma década, a Natura optou pela venda direta como a alternativa que viabilizaria o crescimento da empresa. Nascia a Consultora Natura que garantia contato direto e personalizado com os consumidores. A certeza de que os produtos, além da eficiência técnica e científica, poderiam transmitir conceitos e ser agentes de transformação, criou o diferencial que, anos depois, faria com que a Natura garantisse o seu espaço no mercado, mesmo diante da concorrência de gigantes multinacionais, como a norteamericana Avon. 108

O crescimento Na década de 80, a Natura ganhou força com novos produtos e conquistou mercados regionais no país. Ao contrário do que aconteceu com grande parte das empresas nesse período, ela registrou um crescimento de 35 vezes em 10 anos. A década de 90 também apresentou um crescimento de 5,5 vezes em quatro anos, de 1993 a 1997. Iniciada em 1994, a internacionalização da empresa foi expandida gradualmente, com Centros de Distribuição e formação de Consultoras na Argentina, no Chile e no Peru. Também nos anos 90, a Natura promoveu uma revolução no plano corporativo. Para integrar a diretoria, identificou e convocou lideranças do mercado que compartilhassem a mesma paixão que moveu a sua criação e as mesmas Crenças e Valores da empresa. Investiu-se pesadamente em programas de qualidade e tecnologia, que proporcionaram taxas inigualáveis de crescimento. Em 1999, adquiriu a empresa Flora Medicinal, laboratório de fitoterápicos, dando o primeiro passo para a sua atuação na área da saúde. Consolidação Em 1997 iniciou-se um novo ciclo de investimentos em infra-estrutura e capacitação, com destaque para a construção do Espaço Natura, em Cajamar. O crescimento experimentado nos anos anteriores evidenciou que a fábrica em Itapecerica da Serra (SP) e o Centro de Distribuição em São Paulo não mais atendiam às necessidades da empresa. Assim, foi planejado e construído o Espaço Natura, em Cajamar (SP). Inaugurado em 2001, o novo espaço Natura centraliza as operações de pesquisa, criação, produção, distribuição e capacitação da empresa. A mudança, além de propiciar um significativo aumento da capacidade de produção, oferece a possibilidade de contar com instalações que representam o estado da arte de processos de fabricação e distribuição. A Natura possui o maior centro de Pesquisa e Desenvolvimento de cosméticos do Brasil. Mantém intercâmbio sistemático com universidades brasileiras e com outros centros de excelência em todo o mundo. É uma das empresas brasileiras que mais investe em desenvolvimento científico e aplica cerca de 4% de sua renda líquida nessa área, mantendo o ritmo de lançamento de um produto a cada três dias. A linha de produtos Natura Ekos, lançada em 2000, composta por ativos da flora brasileira, marcou a decisão da Natura de se tornar uma liderança expressiva no uso sustentável de princípios ativos da biodiversidade brasileira e transformou-se rapidamente num sucesso de mercado. A linha motivou a criação do Programa de Certificação de Ativos da biodiversidade brasileira utilizados nos produtos Natura, que contempla atualmente sete espécies em processo de avaliação, adquiridos em reservas localizadas em seis estados brasileiros. Inspirou, também a criação do Projeto Biodiversidade Brasil, uma parceria com a TV Cultura, para difundir e debater aspectos da biodiversidade e do desenvolvimento sustentável. Para levar seus produtos aos seus consumidores, a empresa conta atualmente com cerca de 300.000 Consultoras Independentes, que os revendem em cerca de 4.500 municípios brasileiros dentre elas, 70 mil já estão conectadas à rede natura.net. A Natura sempre buscou inovar e oferecer ao consumidor a mais alta qualidade em seus produtos, uma visão que se concretiza por meio de novos projetos em diferentes áreas. Além da aquisição da Flora Medicinal, a linha Natura Bioequilíbrio marcou o lançamento de produtos na área da saúde, ampliando sua atuação no mercado, oferecendo um sistema integrado de produtos e métodos auxiliares à manutenção e ao restabelecimento do estado saudável do organismo. 109

Em abril de 2000, a Natura inaugurou seu portal virtual natura.net com o objetivo de estimular a dinâmica das relações humanas por meio da Internet e de integrar a empresa com todos os seus públicos de relacionamento, internos e externos. O site atende ao consumidor final, Consultoras Natura, colaboradores, força de vendas e profissionais da imprensa e da área de saúde. Para cada um desses públicos foi preparado um ambiente específico de navegação. O foco do site é o e-business, por isso a empresa desenvolveu um programa para suportar seu canal de vendas e atingir seu objetivo principal: a qualidade de suas relações. Para internacionalizar a marca Natura, foram planejados novos investimentos na América Latina. De 2000 a 2003, a empresa pretende investir US$ 30 milhões com foco principal no mercado argentino. Além disso, desenha atualmente sua estratégia de ingressar nos mercados dos países desenvolvidos com sua linha EKOS, em parceria com grupos que dominem a gestão de varejo e conheçam as peculiaridades das diversas culturas alem de partilharem dos mesmos valores. Entrevista com o presidente Guilherme Leal FG Qual é o conceito da Natura para a responsabilidade social empresarial? Guilherme Já há algum tempo estamos envolvidos com o tema da responsabilidade social empresarial e, de uma maneira mais ampla, com a questão da cidadania como pré-requisito para a construção de uma nação e de uma sociedade mais justa. Temos, na ESPM, professores e estudiosos que, com certeza, possuem informações Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002 precisas sobre o tema, talvez melhores do que as minhas, mas acho que a Natura tem uma vivência consolidada para compartilhar, o que nos dá muita satisfação. Acredito que a crescente adoção pelas empresas de um comportamento social e ambientalmente responsáveis ajuda a criar um novo modelo de sociedade capaz de enfrentar os desafios que hoje enfrentamos globalmente para conquistar um desenvolvimento sustentável. Os sinais da deterioração do meio ambiente, que nos acolhe e permite a manutenção da vida, são eloqüentes e a reversão dessa situação depende de uma profunda revisão de valores. As civilizações, de tempos em tempos, vivem profundas transições e acredito que estamos passando por uma delas. As empresas têm um papel fundamental nessa transformação, pois são, além de agentes econômicos, criadoras e geradoras de valores sociais, ainda mais neste período recente da chamada globalização no qual as grandes corporações passaram a deter um poder muito significativo. Na construção dessa nova sociedade, no enfrentamento dessa transição e da crise, que se expressa pelas crescentes diferenças sociais e riscos ambientais, fica claro que há que existir uma mobilização de todos os agentes sociais. Estado, sociedade civil organizada e empresas precisam assumir suas responsabilidades e criar uma nova dinâmica que assegure a sustentabilidade da vida no planeta. Os governos, isoladamente, não têm condições para promover a grande transição que precisamos enfrentar. Essa é uma tarefa de toda sociedade, especialmente daqueles que tiveram acesso às condições básicas de educação e a algum tipo de poder econômico. As políticas públicas continuam sendo fundamentais para a criação e formatação deste novo quadro para o qual pretendemos evoluir, mas, isoladamente, os governos são impotentes para equacionar essas questões, até porque muitas demandam respostas de longo prazo que não necessariamente trazem os votos necessários para sua sustentação. Em resumo, para a Natura, as empresas são instrumentos de desenvolvimento social e acreditamos que seu valor se amplia proporcionalmente à sua capacidade de contribuir para esse desenvolvimento e de estabelecer relações de qualidade com consumidores, Consultoras, colaboradores, fornecedores, acionistas e toda a comunidade, promovendo o seu enriquecimento material, emocional e espiritual. Nossa visão é de que podemos ser líderes nos diferenciando pela qualidade das relações que estabelecemos, pela expressão de nossas crenças e valores através de produtos, serviços e um comportamento empresarial que promovam a melhor relação da pessoa consigo mesma, com a natureza e com todos que a cercam. Para persegui-la buscamos introduzir em nossas atividades cotidianas esses preceitos, incorporando, nos planos estratégico e tático, essa busca permanente. Adotamos também indicadores (Ethos / GRI) e temos uma área encarregada de promover permanentemente esses valores 110

no ambiente da empresa, além do profundo e necessário envolvimento das principais lideranças da organização. FG Há quem diga que esse conceito de responsabilidade social teria vindo em boa hora para dar à empresa ideais que vão além dos comerciais. Ideais que, de certa forma, se diluíram, nos últimos anos, com a ênfase na empresa eficiente, produtiva, longe da antiga noção social que muitas corporações tinham, principalmente as européias. Daria essa nova bandeira idealística, além de tudo o que foi mencionado, um novo sentido ao trabalho dos executivos, da empresa e de todos, enfim? Guilherme Acredito muito nisso. A mudança da empresa se insere nesse contexto global, da nova articulação da sociedade civil e da revolução do conhecimento. O fenômeno da revolução das comunicações permite a conexão instantânea de uma miríade de pessoas e organizações não governamentais que, isoladamente, poderiam ser muito pouco poderosas mas que, conectadas, passam a representar uma importante fonte de pressão sobre o comportamento das empresas. A sociedade cobra, crescentemente, cidadania empresarial embalando produtos e serviços de qualidade a preços competitivos. Por outro lado, à medida que temos na geração de conhecimento o grande vetor de criação de valor, passa a ser crucial para as empresas ampliar sua capacidade de mobilizar o talento humano. Para isso é necessário dar um novo sentido ao trabalho e propostas apenas materiais e/ ou objetivos com ser a maior do mundo são pouco eficazes. FG Deixe-me narrar um caso interessante. Temos um grupo na ESPM que está trabalhando no cruzamento dos dados da revista Exame. São dois bancos de dados um é das 500 maiores empresas brasileiras; o outro é das 100 melhores empresas brasileiras para se trabalhar. Estamos cruzando estatisticamente dados das 100 melhores para se trabalhar que também fazem parte das 500. Criamos dois grupos: um grupo das 500 que não fazem parte do grupo de 100 e um grupo das 500 que estão nesse grupo. Partimos do princípio de que uma boa empresa para se trabalhar já é o começo de uma empresa com responsabilidade social, pois existe uma ética distinta no relacionamento com os colaboradores e outros públicos também. Descobrimos que as empresas consideradas como bons lugares para se trabalhar chegam a ser até 12 vezes mais lucrativas do que as que não são consideradas. É impressionante a diferença em termos de performance empresarial e, talvez, haja outras variáveis. Esse é um estudo pioneiro e, como tal, dever ser encarado com reservas, mas o que percebemos até agora é que parece haver uma relação clara entre ética e performance. Guilherme Muito interessante esse estudo. Por mais que as avaliações devam se aprofundar, acredito nisso. Ao fazermos a análise das razões que nos impulsionaram do fundo de quintal onde nascemos para a 111

posição de destaque que ocupamos hoje, temos convicção que nossa ética de buscar com nossos produtos, serviços e comportamento empresarial promover o bem de cada um e do coletivo social em que nos inserimos, ocupa posição absolutamente destacada. Um exemplo ao contrário que comprova o estudo que vocês fizeram são os escândalos envolvendo empresas norte-americanas e auditorias. O repúdio mundial a essas manipulações, à chamada contabilidade criativa está recolocando a questão da ética de volta às escolas de negócios. Se, durante algum tempo, ela foi esquecida em prol de uma pseudo maximização da eficiência, vai ficando cada vez mais claro que se não houver a opção pela ética da transparência, do respeito às relações por trás da busca pela competitividade, os resultados serão totalmente ineficazes. Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002 FG Conversando, outro dia, com um banqueiro, ele me disse que está tentando introduzir essa filosofia de trabalho em sua instituição. Para começar, ele chamou as lideranças e disse: A partir de hoje eu quero que vocês continuem a fazer gol, mas sem dar canelada. Acho que é mais ou menos o que você está falando. Guilherme Costumo dizer que a capacidade competitiva de uma empresa depende, obviamente, da qualidade de seus quadros e do ambiente de confiança que se estabelece na organização para que o conhecimento flua, se amplie e se converta em valor para todos. A capacidade de atrair esses talentos e também de construir este clima de confiança não se coaduna com o estilo canelada ou gol de mão. É inevitável que, no tempo, a canelada atinja o companheiro do lado e a destruição do ambiente de cooperação se torna uma realidade. Para atrair e reter esses talentos, precisamos oferecer pelo menos duas percepções: a oportunidade de que eles podem fazer diferença dentro da organização empresarial e a de que a empresa pode fazer diferença na sociedade. Isso é fundamental para que ela busque o seu espaço de realização. As pessoas precisam sentir que a organização, para a qual trabalham e emprestam a sua contribuição intelectual e emocional, pode fazer alguma diferença. A responsabilidade social corporativa, que as empresas crescentemente vêm incorporando, traz essa motivação, esse renovado sentido para o trabalho. FG Além do lucro. Guilherme Muito além do lucro, do salário, do bônus. Tudo isso é importante porque estamos falando da construção de uma empresa melhor e de um mundo melhor. A empresa precisa do resultado econômico como o trabalhador precisa do salário, isso é óbvio. Mas não é tudo. Há outros papéis a serem desempenhados por empresas e por pessoas, muito além de apenas gerar valor monetário. Há valores subjetivos a serem gerados. As necessidades das pessoas não são só financeiras, principalmente quando falamos de gente que tem um capital intelectual importante, que reflete, questiona, avalia, exige relevância e significado. Sérgio Esteves Isso que você está dizendo, Guilherme, não se refere apenas aos colaboradores, o público interno da empresa. Qualquer empreendimento precisa que os seus stakeholders se esforcem para adicionar o melhor valor possível a ele, dado um conjunto de circunstâncias. Os stakeholders também precisam sentir que estão a serviço de algo que vale a pena. É muito ruim quando se reduzem as relações a um mero utilitarismo. Hoje, estamos falando da responsabilidade social como matéria relativamente nova na agenda das empresas. Mas damos toda essa ênfase porque estamos preparando um novo ambiente de gestão das empresas, um ambiente capaz de enfrentar a complexidade, ao invés de insistir na redução de escopo da gestão. Um fornecedor, apenas para dar um exemplo, precisa saber no que está envolvido ao prover insumos ou serviços 112

para uma determinada empresa. Principalmente, precisa reconhecer que o seu produto ou serviço é algo absolutamente relevante. Se tomarmos cuidado, no plano da gestão, com a adição de valor a todos os públicos da empresa, seus stakeholders, teremos como resposta um cuidado por parte desses mesmos stakeholders em adicionar valor ao negócio da empresa que representamos. Assim, é mais ou menos natural que a gente espere essa atitude e que essa seja a ética reguladora dos negócios nesse novo ambiente de gestão das empresas que está se delineando. Guilherme Sem dúvida. Para que isso resulte numa competitividade sustentável da empresa, numa capacidade de diferenciação, é fundamental que a ética permeie suas relações com os seus diferentes públicos. Se ela manifestar uma incoerência expressiva ao lidar com seus diferentes públicos, vai pagar um preço significativo. Não há nada melhor para alguém que é cliente e admira uma empresa ouvir um funcionário ou um fornecedor dessa empresa dar um depoimento positivo sobre ela. Isso só reforça uma decisão tomada lá atrás e ajuda a construir a lealdade do consumidor. Todos os cidadãos estão questionando mais as empresas, por isso, antes delas alardearem seu comportamento socialmente responsável, precisam fazer seu dever de casa. Sergio Esteves Essa é uma síntese muito importante, por vários motivos. Mas quero apenas ressaltar a questão das empresas se anunciarem como socialmente responsáveis. Toda a minha experiência nessa área da sustentabilidade e da responsabilidade corporativa mostra que esse não é um bom argumento de publicidade e propaganda. Dizer, ainda que discretamente, eu sou o máximo, vejam o quanto eu realizo pelo social, é algo que potencialmente trabalha contra as empresas. Entretanto, partilhar com a sociedade em geral as boas práticas no campo social faz parte do exercício do papel social das empresas. As boas práticas são inspiradoras para outras empresas e para diferentes segmentos sociais. Como então resolver essa equação? Na minha opinião, ela 113

se resolve pela transparência em relação ao que foi realizado e pelo convite a que isso gere diálogos sociais apropriados. A Natura foi benchmarking nesse sentido, em 2001, com a publicação de seu relatório anual de responsabilidade corporativa e a estratégia de convite ao diálogo social. FG Falando então da Natura, especificamente. Esse conceito global que estamos discutindo de responsabilidade social empresarial foi introduzido como mais um valor cultural da cultura organizacional ou como um projeto específico, com objetivos bem determinados em um cronograma de trabalho? Guilherme Não tenho dúvida de que, no caso da Natura, estamos falando de cultura de organização, de reflexão e de busca de identidade corporativa. Acho que a responsabilidade social corporativa faz parte do nosso DNA. Os valores básicos fazem parte da nossa constituição inicial. A Natura está com 33 anos, mas na virada da década de 80 para 90 ela passou por um processo de fusão das companhias. Éramos cinco empresas menores, interdependentes, que apesar de serem pequenas e terem uma relação próxima, apresentavam diferenças culturais relevantes. Na fusão passamos por um longo processo de questionamento e de reestruturação, que incluiu desde a redefinição dos sistemas de informação, ampliação da capacidade produtiva, redesenho das instalações e substituição de parte do corpo dirigente, até, essencialmente e esse era o núcleo que poderia dar sentido a todas essas redefinições de mudança de plataforma o que eram as suas crenças e valores, qual era o elemento aglutinador dessas companhias, dessas pessoas, desses sistemas. Nesse momento, no começo da década de 90, fizemos um trabalho profundo, tentando responder a algumas perguntas: o que acreditamos ser o papel de uma Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002 empresa; o que queremos; qual é o projeto de empresa; qual é o sentido que isso tem em nossas vidas; e o que a empresa pode oferecer para a sociedade? E foi assim que a gente explicitou os nossos compromissos com alguns valores e começamos, de maneira mais consciente, a disseminar e a construir essa cultura organizacional. A decisão não estava desconectada do ambiente social vivido no início da década de 90. Fiz parte, por exemplo, do PNBE Pensamento Nacional das Bases Empresariais, um movimento que, na virada da década, propunha ao empresariado a reflexão sobre a importância do exercício da cidadania. Vivíamos, também, o fenômeno de crescimento das ONGs e do movimento pela ética. Tudo isso fazia sentido para os nossos valores pessoais e acho que, precocemente, entendemos que esse era o papel das empresas, investindo de fato na construção dessa cultura. Portanto, como resposta à sua pergunta, não temos um projeto mercadológico que se esgota no tempo; temos, sim, a instalação de uma cultura. Para que ela se sustente, precisamos de instrumentos de gestão, de indicadores e de uma série de elementos que a retirem da esfera do discurso e a coloquem no plano da vivência cotidiana da companhia. FG Pensando nos nossos leitores, que instrumentos foram esses? Guilherme Quando se quer instalar uma cultura, o primeiro elemento é o comportamento da liderança. Ele é insuficiente muitas vezes, mas é absolutamente indispensável. Se as lideranças maiores, de uma instituição qualquer, não estiverem de fato comprometidas com os valores que ela apregoa eles serão apenas decorativos. Sérgio Esteves As pessoas precisam ser do jeito que mencionam ser em seus discursos. O eu sou assim é bastante diferente do eu penso assim. Guilherme Exato. Outro importante passo que demos foi buscar modelos, exemplos que pudessem transmitir as nossas crenças para o corpo da organização, mostrando que aquilo que estávamos falando era possível. Na década de 90, começamos a desenvolver um relacionamento com a escola ao lado da fábrica de Itapecerica da Serra, sem qualquer grande pretensão. A riqueza desse aprendizado mútuo e o retorno que tivemos surpreendeu a todos nós. O interesse que uma ação social simples despertava na sociedade era enorme. Ainda no cerne das nossas atividades, fizemos uma opção pela ética, absolutamente inquestionável, fechando questão de que não faríamos qualquer tipo de concessão para comportamentos menos éticos advindos de representantes do poder público ou de qualquer outro setor, mesmo vivendo em uma sociedade em que o grau de corrupção, de burocracia e de pressão exercida sobre o mundo empresarial é contundente. Deixamos claro que não haveria qualquer condescendência na organização com qualquer tipo de comportamento menos lícito e, portanto, cada um que tratasse, em suas áreas e em suas responsabilidades, de cuidar da aplicação desse princípio. Decidimos, ainda, que se fôssemos autuados 114

por qualquer circunstância, iríamos para a justiça discutir os nossos direitos. Isso é um belo discurso e as pessoas tendem a dizer: Será que é assim mesmo? Para ilustrar, conto uma história que aconteceu logo no começo da década de 90, tornando-se o único espero que para sempre acidente de trabalho fatal que tivemos nos 33 anos de companhia. Uma pessoa de uma empresa terceirizada da área de limpeza, em uma unidade industrial nossa, sofreu um choque elétrico. Como tinha um problema cardíaco, veio a falecer um fato extremamente dramático para todos nós. Como é previsto pela legislação, alguns de nossos colaboradores diretores, gerentes foram submetidos a um processo criminal. Conhecíamos a situação e sabíamos que não acontecera nenhum descuido nas condições de segurança, mas era preciso cumprir a lei. Consultamos nossos advogados, colaboradores e contratados, para nos dar um aconselhamento jurídico sobre os trâmites do processo com o intuito de defender nossos gestores. Todo o aconselhamento foi no sentido de que resolvêssemos a questão junto aos peritos, na fase preliminar do processo, utilizando-se para isso de meios que jamais poderiam ser classificados como éticos. Tínhamos, no entanto, acabado de dizer que isso jamais deveria ocorrer, e instalou-se um dilema ético de grande relevância dentro da organização. Se de um lado, firmamos um compromisso de lealdade com colaboradores importantes de muitos anos, de outro não queríamos ser coniventes com a corrupção. Resultado: expressamos e levamos a cabo nosso desejo de ser leal a nossos companheiros e nossos valores e os defendemos dentro da ética, da legalidade e da justiça, e ganhamos o processo. Esse é o tipo de comportamento que, para mim, é exemplar, é instrumento de criação de cultura, ação efetiva do líder diante do dilema. No começo da década passávamos por uma fase de revisão de nosso portfólio de produtos e decidimos, então, estabelecer diretrizes firmes. Entendemos que as necessidades dos consumidores não se limitam às funcionais e que poderíamos levar a eles outra natureza de valores, de ordem emocional, espiritual, poderíamos fazê-los como instrumentos de ampliação de consciência. Quando lançamos, por exemplo, a linha Mamãe-Bebê, com uma proposta de ação adequada para a higienização do recém-nascido, levamos também uma mensagem sobre a importância do vínculo mãe e filho, do toque para o desenvolvimento de adultos mais plenos, mais capazes. Esse fato, pouco conhecido e comprovado cientificamente acabou transformando essa linha num sucesso fantástico de mercado. Criamos um negócio em torno de 50 a 100 milhões de reais, em um ano e meio de lançamento. Quer dizer, a incorporação de valores éticos, no caso a importância do cuidar da vida, mostrou uma grande eficácia do ponto de vista mercadológico. FG Pode-se, portanto, concluir que, deixando de lado os objetivos sociais, comunitários de que você falou no início, esse conceito de responsabilidade é bem mais amplo e é útil para a empresa, até mesmo na condução do seu negócio. Guilherme Sem dúvida alguma. Como o Sérgio Esteves disse, ao somar mais esse compromisso, aumentamos, claramente, a nossa capacidade de atrair os melhores talentos e contar com o melhor deles. Desenvolvermos uma relação mais verdadeira com os consumidores, estabelecendo uma cumplicidade no processo de transformação, uma responsabilidade pelo coletivo, social e ambiental. Da mesma forma, atraímos os melhores fornecedores, o que aumentou a nossa capacidade de desenvolver relações de intercâmbio, de compromissos mútuos. A adoção da Governança Corporativa 115

foi outra ação que trouxe transparência e mais confiança na relação com os acionistas. Enfim, no mundo todo, as universidades, as escolas de negócios, estão voltando a falar de ética como uma questão central porque estamos vivendo o ápice do descrédito. Por tudo isso, acho que a responsabilidade social é estratégica não só para os resultados da empresa como para a sua própria sobrevivência. FG O fenômeno que nós, da comunicação com o mercado, já percebemos há muito tempo é a convergência de duas imagens a imagem institucional corporativa e a imagem da marca. No caso da Natura, pode-se, em princípio, identificar duas formas de comunicação que vocês transmitem continuamente ao mercado Natura como empresa, instituição e Natura sob a forma de produtos. Na verdade, cada vez mais, essas duas imagens convergem. Não há mais como alguns anos atrás a possibilidade do consumidor detectar e as considerar isoladamente. É evidente que, nesse caso, a imagem da Natura como empresa ética, como empresa integrada na comunidade, ajuda a reforçar a imagem de marca. Você concorda com isso? Guilherme Concordo totalmente e acho que mais e mais as empresas percebem essa conexão. As marcadas virtuais, criadas do nada, desvinculadas de um comportamento corporativo tendem a ter uma consistência cada dia mais duvidosa. O exemplo clássico da Nike tendo seus produtos boicotados por conta de seus processos industriais globalizados que não davam conta de evitar o uso de mão de obra infantil é confirmador desta tendência. Sérgio Esteves Essa convergência, no caso da Natura, é possível, por uma razão muito clara. O Guilherme, há pouco, falou dos indicadores de performance que ajudam a empresa a se mover no seu Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002 processo de gestão. Dentro do campo da responsabilidade social corporativa, no plano internacional, consideram-se três tipos integrados de indicadores: econômicos, sociais e ecológicos. Não como eventos ou perspectivas separadas, mas como um conjunto que representa a empresa em sua totalidade. Esses indicadores são conhecidos como o triple bottom line das empresas. No caso da Natura, eles têm o que nós chamamos na AMCE de triple first line o que significa dizer: a Natura tem um conjunto de crenças e valores que funcionam como premissas e que, depois, dão sentido aos resultados colhidos através dos indicadores. No caso deles, não há uma esquizofrenia entre a identidade corporativa e os resultados colhidos com a aplicação dos indicadores. A Natura tem, então, a responsabilidade social corporativa como um elemento de sua estratégia de negócios. Em outras palavras, eles têm legitimidade junto aos seus diferentes públicos para estabelecer em que direção seguir a partir dos cenários mostrados pelos indicadores. Essa convergência da imagem corporativa com a imagem de marca será sempre possível quanto mais essas duas perspectivas princípios, valores e indicadores forem convergentes. FG Isso é realmente muito importante, Sérgio. Nem sempre as pessoas que cuidam da gestão das empresas estão preparadas para perceber essas sutilezas. Quero fazer uma outra pergunta ao Guilherme. É caro conseguir tudo isso? Você gasta mais do que gastaria se tivesse uma filosofia mais pragmática, mais objetiva, menos preocupada com o ético e o social? Guilherme Depende muito da abordagem e da estratégia. Mas, se não tivéssemos realizado os investimentos para expressar a nossa identidade como empresa que privilegia a sustentabilidade e a responsabilidade corporativa, sequer estaríamos aqui conversando, porque seríamos uma empresa inexpressiva, ainda próxima do fundo de quintal onde nascemos. Não tenho dúvidas de que a ética foi a grande propulsora do nosso sucesso empresarial e econômico. Em alguns momentos, especificamente, isso pode significar maiores custos ou investimentos, mas nossa convicção, suportada pela performance de alguns índices como o Down Jones Sunstainability Index apontam que o retorno é compensador. Lembro-me, quando estávamos, em 1998, participando do lançamento do Instituto Ethos e uma rede de televisão nos convidou para uma conversa sobre a questão da responsabilidade social empresarial. Num dado momento, o jornalista questionou se esse tema teria sentido no meio de tantas empresas brasileiras que lutavam pela sobrevivência. Eu respondi que é a solidariedade que aumenta as chances de cada um dos indivíduos sobreviver. Se você acha que é o individualismo que aumenta as suas chances de sobrevivência, estamos em campos opostos. Uma competição que não aceite a solidariedade como elemento constitutivo da sociedade, para mim, é absolutamente perniciosa. Então, às vezes, custa caro, mas tenho certeza de que o retorno é extremamente compensador, 116

em todos os sentidos. No sentido econômico, porque, obviamente, é o que primeiro se espera de uma empresa; e também no sentido de vida de cada um de nós que participa da empresa. FG Você está satisfeito com o que já conseguiu, nesse terreno? Sei que é difícil responder objetivamente porque estamos falando de conceitos, valores. Mas, de qualquer forma, olhando para trás, você cometeu algum erro? Faria as coisas de forma diferente, hoje? E o que você gostaria de conseguir ainda? Guilherme Ouvi, outro dia, uma piada. Perguntaram ao Walt Disney se ele faria alguma coisa diferente se tivesse que viver novamente. Ele respondeu: Faria tudo igual. Mas não me peçam para fazer outra vez, pelo amor de Deus! No meu caso, não faria nada diferente. É óbvio que cometemos inúmeros erros, mas eles fazem parte do processo de aprendizado. Agora, quanto às possibilidades futuras e quanto àquilo que não conseguimos fazer e que poderia vir a ser feito, acho que é um campo grandioso de possibilidades. Estamos, por exemplo, incorporando o conceito de sustentabilidade na companhia de uma maneira mais ampla, olhando cada um dos processos de uma maneira mais competente, de forma que a gente possa criar metas mais objetivas e enraizar os elementos desse conceito na cultura corporativa. Quer dizer, fazer com que cada pessoa, cada colaborador dessa aventura chamada Natura possa dar a sua contribuição, possa ter um olhar mais aguçado para identificar oportunidades de contribuir para a criação dessa nova ordem. Não tenho dúvidas de que as possibilidades são inúmeras. E acho que a acumulação de riqueza tem um sentido para a humanidade. O bom uso do dinheiro tem que reverter em qualidade de vida das pessoas e da sociedade. Esse bom uso é que faz com que ele se multiplique. Portanto, o caminho para o desenvolvimento da organização Natura está correlacionado com essa capacidade de contribuir para a evolução social, evolução desse coletivo do qual todos nós fazemos parte. FG Que conselhos você daria a empresários, administradores que estão sentindo a necessidade de firmar esse compromisso com a sociedade? O que devem fazer para começar? Guilherme Uma observação preliminar é que a responsabilidade social corporativa não se restringe a empresas ricas e poderosas. Na minha percepção, a responsabilidade social 117

das empresas está ao alcance de qualquer uma, seja a que está nascendo ou a centenária, seja uma micro, pequena, média ou grande empresa do setor industrial, de serviços comerciais ou financeiros. Seja qual for a sua atividade, o seu porte ou a sua origem geográfica, há a possibilidade e a conveniência de exercer a responsabilidade social. Costumo brincar, dizendo que a padaria da esquina pode exercer a responsabilidade social, melhorando a qualidade da relação com seus funcionários e clientes. O simples ato de varrer a calçada ou de preservar a árvore em frente ao seu estabelecimento é uma contribuição importante para a sociedade. Para mim, a responsabilidade social empresarial é algo aplicável por todos os setores de segmentos e dimensões de empresa. O principal é não ter medo de dar o primeiro passo, qualquer que seja ele, pois esse é um processo que só avança. A responsabilidade social não resolve todos os desafios que uma empresa tem que enfrentar, mas ela pode ser uma cultura extremamente propícia para sustentar um desenvolvimento consistente. Não é a toa que, quando criamos o Instituto Ethos, o primeiro material que produzimos foi justamente uma pequena cartilha sobre os primeiros passos. Nós, da Natura, começamos adotando aquela pequena escola da comunidade. E a partir daquilo, o conceito ganhou expressão e amplitude. Isso acontece aprendendo, errando, trocando com companheiros, pois ninguém é dono da verdade e nem tem fórmulas mágicas. O importante é ter coragem de dar o primeiro passo e de se comprometer com o processo de aprendizado. Se juntarmos esses dois elementos, não tenha dúvida de que o processo vai longe. Revista da ESPM Julho/Agosto de 2002 Aplicação do case pontos a discutir Além dos temas que serão levantados pelo professor responsável, sugerese que os grupos de discussão analisem as seguintes questões: 1. O case da Natura mostra que as implicações da adoção de uma política de responsabilidade social pela empresa vão muito além do que se pode imaginar. Nota-se que o entrevistado pouco falou de obras sociais e beneficentes, que muitos associam à responsabilidade social da empresa, e deteve-se muito mais nos aspectos éticos, corporativos, seja nas relações com terceiros, seja no respeito ao consumidor e à coisa pública. À vista do exposto, pede-se ao aluno que conceitue com suas próprias palavras o sentido de responsabilidade social da empresa, analisando as suas implicações éticas, sociais e, até mesmo, políticas. 2. O Sr. Guilherme Leal refere-se à consciência de responsabilidade social como um valor que faz parte da cultura organizacional da Natura. Ele se refere também às várias ferramentas utilizadas para disseminar essa consciência na organização. Imagine agora que você foi encarregado dessa tarefa (disseminar a consciência da responsabilidade social, numa determinada empresa). O que você faria para atingir os vários níveis hierárquicos e em que níveis concentraria seus esforços? 3. A questão dos objetivos de uma empresa, ao estimular a responsabilidade social entre os seus dirigentes e funcionários, é muito complexa. Você já viu que isso custa caro (afirmação do Sr. Guilherme Leal). Que benefícios a empresa pode e deve esperar, para justificar esse investimento de tempo e dinheiro? Por que? 4. O case se refere aos benefícios que a política de responsabilidade social trouxe à Natura principalmente em sua imagem corporativa (ou institucional). Como essa boa imagem institucional beneficiou a imagem dos produtos da Natura? Explique o fenômeno da convergência de imagem (vide Fig. I) e como isto agiu no caso da Natura. Você acha que esse mesmo raciocínio se aplica a qualquer tipo de empresa? Por que? 118

Figura I Isso ocorre porque as diferenças sociais reais entre os produtos de marcas concorrentes são cada vez menores. A decisão de compra apóia-se em fatores subjetivos, como confiança, inovação, moda etc., que podem ser mais bem transmitidas pela imagem institucional. 5. Na entrevista, foi citado o estudo conduzido pela ESPM, sobre as diferenças entre as 100 melhores empresas para se trabalhar e as demais. Esse estudo, de autoria do professor Alexandre Gracioso, está à página 64 dessa edição. Leia esse artigo e responda às seguintes perguntas: Quais as principais diferenças entre as 100 melhores empresas para se trabalhar e as demais empresas incluídas na lista das 500 maiores? Como você explica essas diferenças? 119

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