INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E PATENTES NA AVIAÇÃO: O CASO DE SANTOS DUMONT Alexandre de Carvalho Castro (Cefet) o.aken@uol.com.br VIVIAN WILDHAGEN REIS (Cefet) viviwr.adm@gmail.com Paulo Jose Monteiro da Cunha (Cefet) paulocunha56@gmail.com Este artigo teve como objetivo investigar a perspectiva de Santos Dumont acerca de seus próprios inventos enquanto inovações tecnológicas. Nesse sentido usou como referencial teóricometodológico os aportes de Mikhail Bakhtin acerca da anállise de documentos e fontes textuais. Os resultados da investigação mostraram que Santos Dumont divergiu da tendência voltada para o registro de patentes e comercialização de produtos, pois suas inovações tecnológicas visavam o bem estar coletivo e derivavam de um profundo senso de responsabilidade social. Palavras-chaves: Inovação tecnológica; patentes; Santos Dumont
1. Introdução e objetivo A inovação tecnológica tem sido objeto de grande valorização no cenário acadêmico contemporâneo. Nesse sentido, há autores que propugnam o domínio de novas tecnologias a fim de apoiar a gestão estratégica voltada para o desenvolvimento e inovação nas áreas de produtos e de serviços. Aspecto que, consequentemente, leva a um crescente número de empresas que solicitam o registro de patentes para proteger invenções ou inovações (Gomes e Kruglianskas, 2009). O cenário, portanto, mostra que o incremento de regras de propriedade intelectual obedece a uma relação proporcional com a produtividade industrial. Novos produtos e serviços, que agregam desenvolvimento tecnológico, são vistos como fundamentais para o desenvolvimento de indústrias competitivas num mundo marcado pela globalização de mercados. Esse sistema complexo, contudo, foi sendo construído socialmente, principalmente ao longo do século XX, pois as imbricações da concepção de inovação com o registro de patentes e a idéia de propriedade intelectual foram sofrendo diversas transformações, até por conta das mudanças ocorridas no desenvolvimento econômico e no comércio internacional. No entanto, no contexto sócio-econômico que emergiu após a segunda guerra mundial, uma dada perspectiva acerca da tecnologia foi ganhando corpo até se tornar totalmente hegemônica. Um ponto emblemático a esse respeito pode ser visto na declaração do então diretor do Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (OSRD) da Presidência da República dos Estados Unidos da América. De fato, Vannevar Bush recebera um ofício do Presidente Roosevelt, com indagações acerca do futuro do desenvolvimento tecnológico, e em função disso publicou, em 1945, um relatório que se tornaria famoso, intitulado "Ciência, a fronteira sem fim" (Science The Endless Frontier: A Report to the President on a Program for Postwar Scientific Research ), no qual defendia a tese de que o mercado era quem determinava os usos últimos da ciência, tanto sociais quanto econômicos (Marques, 1999; Longo, 2009). Muito embora em anos seguintes tenham ocorrido expressivos aportes estatais nas pesquisas científicas, o fato é que o know how tecnológico cada vez mais passou a agregar a si o sentido de valor econômico sendo considerado como valiosa mercadoria, mormente nos países onde predominava o capitalismo e a ética de mercado. Assim, enquanto bem econômico, o conhecimento científico foi sempre se direcionando para projetos aplicados a fim de proporcionar lucros maiores e mais imediatos. Essa tendência, aliás, corroborou um uso particular para a expressão Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), usada para denotar as etapas anteriores que levam a uma dada Inovação Tecnológica, termo que por sua vez designava um novo produto ou serviço. Há de se enfatizar, porém, que a assim chamada Inovação Tecnológica nem sempre foi necessariamente voltada para o mercado. Em que pese o fato de que mais recentemente algumas políticas públicas priorizem a pesquisa científica face às necessidades sociais, é 2
importante ressaltar que, nos primórdios das descobertas científicas, alguns pioneiros tinham uma opinião bem distinta do sentido dos avanços tecnológicos. Alberto Santos Dumont talvez seja um desses pioneiros que representa uma antítese muito significativa a toda essa tendência hodierna alusiva à inovação, contudo, nem sempre é colocado nessa posição por causa da recorrente celebração feita em torno dele ser o mítico pai da aviação. Entretanto, por considerar a necessidade de se ver com outros olhos mais críticos e analíticos a contribuição dada pelo inventor do avião, este artigo tem como objetivo investigar a idiossincrática perspectiva de Santos Dumont acerca de seus próprios inventos enquanto inovações tecnológicas. Realmente, o problema que serviu como eixo indutor para a pesquisa pode ser formulado com contornos bem claros: Em que sentido as invenções de Santos Dumont constituem um contraponto à atual visão de inovação tecnológica? 2. Base teórica e metodologia Do ponto de vista metodológico este artigo optou pelo procedimento da análise documental, uma vez que as obras escritas pelo próprio Santos Dumont se constituem importantes fontes primárias. Efetivamente, tais registros proporcionam detalhes fundamentais dos processos tecnológicos nos quais ocorreram desenvolvimentos tidos como importantes. Mas, além disso, foram também incorporadas análises teóricas da literatura acadêmica disponíveis sobre o tema, cotejadas como fontes secundárias e corolárias. A teoria que deu suporte à análise das fontes é a proposta por Mikhail Bakhtin, em sua obra sobre Filosofia da Linguagem. De acordo com esse autor, os temas de uma pesquisa ganham densidade quando interpretados mediante as relações semióticas mantidas em seu contexto histórico específico. De acordo com Bakhtin (2004), assim como para observar o processo de combustão convém colocar o corpo no meio atmosférico, de igual modo, para se identificar o sentido dos conceitos é preciso situar os sujeitos no meio social. A visão bakhtiniana permite deixar claro que o que se entendia por invenção na aurora do século XX não é o mesmo que se entende hoje, embora a palavra, em si, seja a mesma. O que Bakhtin (2004) mostra é que o sentido dos conceitos pode constantemente variar a partir da dinâmica de cada interação social. Ou seja, é necessário perceber que a temática da aviação, por exemplo, não significa a mesma coisa, nem sincronicamente (na França e nos Estados Unidos, na época dos pioneiros), nem diacronicamente (nos séculos XX e XXI), pois em cada contexto há diversidade entre os atores sociais e as formas como se apropriam desses sentidos dialógicos. Qualquer enunciação monológica é uma abstração que deve ser evitada, pois leva ao risco de se considerar um contexto histórico específico como sendo absoluto (Castro, Portugal e Jacó-Vilela, 2011). Assim, o grande risco quando se fala de inovação é considerar o termo e, consequentemente, os temas a ele vinculados como sendo estáticos, permanentes, imutáveis. Pois dessa forma perde-se um dado analítico fundamental, uma vez que as mudanças de 3
sentido das palavras são capazes de registrar as fases transitórias mais íntimas e mais efêmeras das mudanças sociais. Destarte, na perspectiva bakhtiniana, a análise proposta neste artigo só é possível mediante a inclusão das fontes consultadas no contexto histórico a que pertencem. A análise dos registros feitos por Santos Dumont, portanto, constituem indicadores sensíveis de transformações sociais. Quando ele, por exemplo, intitula uma de suas obras como O que eu vi, o que nós veremos, mostra tendências incipientes que apenas despontam e ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem-formados. Por isso, nesta pesquisa não se atribuiu um sentido unívoco ao conceito de Inovação Tecnológica como se uma única apropriação de sentido bastasse a si mesma. Ao contrário, procurou-se necessariamente analisar os textos e documentos dentro de seu horizonte sócio-cultural. 3. Resultados da pesquisa Estudos sobre Santos Dumont já contam com amplo aporte bibliográfico, tanto de fontes secundárias (BARROS 1986; BARROS, 2003; HOFFMAN, 2004; DIAS, 2006; BARROS, 2006; VISONI E CANALLE, 2009), quanto de fontes primárias, constituídas basicamente dos seus dois livros autobiográficos: As obras Dans L Air No Ar, de 1904; e O Que Eu Vi O Que Nós Veremos, publicado originalmente em 1918. Segundo essa bibliografia, verifica-se que já no século XVIII, mas principalmente em fins do século XIX e início do século XX, muitos cientistas e inventores se sentiram mobilizados pelo desafio da conquista do ar. Os aparelhos, engenhocas e inventos eram dispares e diversos, mas dentre o conjunto geral de todas essas iniciativas, destacaram-se dois eixos principais: a aerostação e a aviação (VISONI E CANALLE, 2009). Isso porque frente à dificuldade de alçar voo, alguns se especializavam no âmbito da aerostação, construindo artefatos mais leves que o ar. Outros, contudo, optavam pela aviação, por serem adeptos de aparelhos mais pesados que o ar. De qualquer forma, o fato é que, nesse cenário de homens e máquinas, Santos Dumont concebeu, projetou, desenvolveu, construiu, testou e avaliou uma série de modelos, tanto na perspectiva da aerostação quanto da aviação, configurando-se como importante figura no campo da inovação tecnológica. Em suas memórias, o aviador brasileiro considerou que suas experiências a partir de 1898, com balões no céu de Paris, teriam ensejado a fundação do Aeroclube da França, nesse mesmo ano. De igual modo, quando atravessou a cidade de Paris, com o balão n. o 3, teria iniciado a discussão se seria ou não possível ir de um ponto a outro e voltar ao local de partida, em um balão. Nesse sentido, também ponderou que tal debate é que suscitou a instituição do primeiro prêmio para balões dirigíveis (SANTOS DUMONT, 1918). Realmente, um episódio importante em sua carreira remonta ao fato de que em 1900, um milionário francês chamado Henri Deutsch de la Meurthe compareceu em uma das assembléias do Aeroclube da França, se prontificando a financiar um grande prêmio para aquele que solucionasse o desafio da dirigibilidade aérea. O vencedor deveria partir do parque de Saint-Cloud (que era onde se localizava o Aeroclube, ou de qualquer outro lugar igualmente distante) e, em meia hora, alcançar a Torre Eiffel, rodeando-a e retornando ao 4
ponto de origem. A condição era a de descrever uma circunferência tal que nela se estivesse incluso o eixo da torre (SANTOS DUMONT, 1904) Assim, em outubro de 1901, com o balão motorizado n. 6, Dumont acabou por realizar a prova, conquistando o tão visado prêmio. Tal feito fez de Dumont um piloto internacionalmente reconhecido como inventor da primeira máquina voadora eficiente. Fato que, pelo menos aparentemente, fortalecia a tendência de se construir aeróstatos mais leves que o ar. A perspectiva inovadora de Dumont, entretanto, representava também uma nova forma de concepção distinta das escolas tradicionais da aviação e da aerostação, pois em sua própria opinião, com a construção de seus balões, vinha fazendo aviação e não aerostação, posto que era um equívoco acreditar que por ser cheio de gás, o seu aparelho aéreo era mais leve que o ar. O que ele afirmava naquela ocasião era que seus dirigíveis, cheios de sacos de areia, não levantariam voo movidos exclusivamente pelo hidrogênio, sendo, portanto, indispensável a força que o propulsor fornecia, muito embora, para peças do mecanismo que não exigiam a resistência do aço, utilizasse o alumínio, que era uma substância mais leve. Tais perspectivas inovadoras iriam ser fundamentais para o desenvolvimento, mais tarde, de um avião híbrido o 14 Bis (VISONI E CANALLE, 2009). Entrementes, os desafios se renovavam. Para concorrer a novos prêmios, Santos Dumont, confiante na convergência da aviação e da aerostação, optou pela construção de um dirigível mais pesado do que o ar, através da redução da quantidade de hidrogênio, criando o menor dirigível do mundo, o n. o 14. Com ele, realizou um pequeno voo em junho de 1905, sobrevoando o parque de Saint-Cloud. A máquina voadora, porém, demonstrou inicialmente pouca estabilidade. Após essas experiências, Santos Dumont amargou uma tentativa frustrada de levantar voo em um helicóptero e, em julho de 1906, acabou por construir um avião ligado a um balão de hidrogênio, considerado como uma máquina híbrida. Em função de ter usado o balão n.14, a máquina, que tinha estrutura celular em caixas (DIAS, 2006), recebeu o nome de 14-Bis. Destarte, visando a adaptação do aeroplano ao balão, Dumont realizou novas alterações na costura do envelope e apresentou efetivamente a máquina exótica em Bagatelle, no dia 19 de julho de 1906. Neste dia, realizou algumas corridas e sua máquina, se não voou, pelo menos deu alguns saltos no terreno. A decolagem era facilitada em função da assimetria do balão que erguia a parte dianteira do aeroplano e reduzia o peso. No dia seguinte, Dumont fez inscrição nos prêmios do Aeroclube da França e no Archdeacon. Porém o capitão Ferdinand Ferber, que pertencia ao Aeroclube, o desanimou, pois tendo assistido às demonstrações de Dumont com o 14-Bis, não ficara satisfeito com o que vira, e criticou o uso de uma máquina híbrida, em parte aeróstato, em parte avião. Efetivamente, os debates no Aeroclube em Paris pareciam mostrar que os rumos da aeronáutica apontavam para o aeroplano (BARROS, 2006). Assim, em função da possibilidade de surgirem questionamentos, Dumont resolveu não competir com o modelo híbrido. No entanto, continuou testando-o nos três dias subsequentes com o intuito de praticar a direção. Durante os testes, notou que o balão favorecia a decolagem, porém tornava o voo mais difícil, devido ao arrasto gerado ser muito grande. Optou, então, por retirar o balão. 5
Em 23 de outubro de 1906, Dumont se apresentou com uma nova versão do modelo de origem do 14-Bis. Visando aumentar a sustentação e diminuir a porosidade do tecido, as asas foram envernizadas e a roda traseira foi eliminada, por dificultar a decolagem. Na primeira tentativa, o biplano levantou vôo, permaneceu por 6 segundos no ar, alcançou 3 metros de altura e voou 60 metros, distância superior ao necessário para vencer o prêmio. Desde então, esse aparelho de Santos Dumont tornou-se conhecido como o primeiro avião a vencer um prêmio aeronáutico. Depois disso, instalou um aileron octogonal (uma aleta para controlar a inclinação lateral), e em 12 de novembro de 1906, fez quatro novas tentativas. Assim, às 16h45, percorreu 220 metros (ou 250, de acordo com SANTOS DUMONT, 1918) em 21 segundos, a uma velocidade de aproximadamente 37,4 km/h (BARROS, 2006). Com tal desempenho, obteve também o Prêmio do Aeroclube. Para Santos Dumont, todavia, era evidente que o 14 bis não era suficientemente viável. Por conta disso, ao longo de fins de 1906 e meados de 1907, projetou, construiu e avaliou cinco máquinas diferentes, até testar a primeira versão de seu invento de número 19, em novembro de 1907: o Demoiselle. Esse aparelho, seu último invento aeronáutico, embora modificado e aperfeiçoado em versões seguintes, é inclusive considerado como o primeiro ultraleve da história. O quadro abaixo procura sistematizar os principais desenvolvimentos feitos por Santos Dumont levando em consideração os dados obtidos na pesquisa junto às fontes: Artefato Descrição Inovações DIRIGÍVEL Nº14 BIPLANO Nº 14 BIS OISEAU DE PROIE I BIPLANO Nº 14 BIS OISEAU DE PROIE II Balão com 41 metros de comprimento, 3,4 metros de diâmetro e 186m 3 de volume. Motor Clément de 14HP com uma hélice à frente do cesto diretamente montada no eixo do motor. Biplano, inicialmente adaptado ao balão Nº14, tipo CANARD (leme e propulsor a frente das asas principais), seu corpo era formado por bambu e telas de linho. Nova versão do 14 Bis. Balão muito delgado com pouca estabilidade. Alterado, com reforço das costuras, tornando-se assimétrico. Um motor mais potente, de 16CV foi colocado. Utilização, para montagem das asas, da técnica das células de HARGRAVE (tipo de montagem que consistia em armações em caixas vazadas de bambu enteladas. Para adquirir mais estabilidade, foram inseridas duas superfícies poligonais na vertical das asas, os AILERONS. As telas de linho foram envernizadas para diminuir a passagem de ar pelo tecido e obter mais sustentação. MONOPLANO Monoplano pequeno, Diferentes versões do 6
DEMOISELLE constituído com bambu entelado, com motor Darracq 25HP, com 7,7m de comprimento e 5m de envergadura, depois modificado para 6,3m de comprimento e 6,4 de envergadura. Fonte: Adaptado de Santos Dumont (1918) e de Barros (1986; 2003) Tabela 1 Inovações tecnológicas de Santos Dumont modelo original, testaram vários tipos de motores refrigerados a água com cilindros opostos (se tornando mais leves), com potência variando de 20 a 40HP construídos por vários fabricantes entre os quais; Dutheil & Chalmers, Clément, Antoinette e Darrcq. 4. Discussão dos resultados Tanto pela descrição apresentada até agora, quanto pela tabela do tópico anterior, é evidente que Santos Dumont desenvolveu tecnologias inéditas para sua época. Entretanto, não obstante tenha produzido várias inovações tecnológicas, decidiu não só não registrar as patentes, como também tornou suas descobertas públicas e notórias, a fim de promover a difusão da aviação. Isso se deu, aliás, até com sua mais arrojada invenção, pois optou por publicar os planos do Demoiselle. A revista Popular Mechanics de dezembro de 1909, publicada nos Estados Unidos, com reportagem intitulada Santos Dumont cede patente do aeroplano para o mundo, inclusive trazia ilustrações acerca do aparelho (WINDSOR, 1909). A atitude de Santos Dumont contrasta, evidentemente, com a tendência atual onde o que se vê é o registro da patente, e a defesa da propriedade intelectual, sem que haja quaisquer preocupações com a socialização do conhecimento. Entrementes, como as plantas foram postas em total disponibilidade, o Demoiselle foi construído por algumas firmas, foi copiado por vários interessados, e tornou-se um modelo popular (BARROS, 2006). Assim, é praticamente impossível saber o número exato de Demoiselles construídos, mas há documentação suficiente para comprovar que o invento de Santos Dumont foi fabricado aos milhares, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos, entre 1909 e 1920 (DIAS, 2006). Ora, o ponto fulcral de total essa discussão é justamente a problemática proposta pelo artigo: Enfim, em que sentido as invenções de Santos Dumont constituem um contraponto à atual visão de inovação tecnológica? Inegavelmente há os que entendem essas idiossincrasias de Santos Dumont de forma negativa. Tais analistas consideram-no mais como um avoado do que um aviador. Dessa forma, traçam o seu perfil como de um tolo ingênuo: A carreira de Santos Dumont só poderia terminar em fracasso e decepção na sociedade de seu tempo. Na Europa, ele era um anacronismo social operando na fronteira da revolução tecnológica; no seu país natal, ele era quase uma curiosidade circense. (Silva, 2000, p.10-11) O centro da questão, realmente, é que Santos Dumont não estava nem um pouco interessado em explorar comercialmente suas invenções. O dinheiro dos prêmios que recebeu foi dado aos 7
seus mecânicos e aos pobres de Paris, e o dinheiro que poderia obter com a venda de seus aparelhos foi simplesmente desconsiderado frente ao objetivo principal de promover a aviação. Tais atitudes, contudo, devem ser caracterizadas como um anacronismo social, como curiosidade circense? Nesse sentido, há de se ressaltar a base teórica desta análise, respaldada em Bakhtin (2004), e a partir daí identificar o sentido das inovações tecnológicas de Santos Dumont situando-o, não no horizonte do século XXI, mas frente aos sujeitos de seu meio social, e mediante as relações mantidas no contexto histórico específico da França no início do século XX. O inventor brasileiro estava na aurora da aviação e sentia-se motivado, em suas inovações tecnológicas e inventos, a promover o bem da humanidade. O título de sua obra O que eu vi e o que nós veremos, na verdade indicava O que eu Santos Dumont queria ver, pois nela descreve suas visões de como a aviação transformaria as relações entre nações, promovendo a paz. Ao apresentar a transcrição de sua conferência realizada nos Estados Unidos, em 1915, foi categórico: Teremos facilidades para as comunicações rápidas. Chegaremos a um contato mais íntimo. Seremos mais fortes, nos nossos laços de compreensão e amizade. Tudo isso, senhores, será realizado pelo aeroplano (SANTOS DUMONT, 1918, p.50) Assim, o que se constata é que as invenções de Santos Dumont constituem um contraponto à atual visão de inovação tecnológica, porque onde uns vêem oportunismo de ganho comercial, o inventor brasileiro via a oportunidade de promover a aproximação entre os povos e nações. Seu interesse era o de desenvolver inovações úteis à humanidade. O que a atitude de Santos Dumont coloca em jogo é a necessidade de se avaliar se ao longo do século XX houve, frente à dinâmica das inovações tecnológicas, avanço ou retrocesso em relação à responsabilidade social. Em outras palavras, o ponto em questão é estabelecer um juízo de valor se estamos efetivamente evoluindo tecnologicamente, ou apenas involuindo. Ademais, sua postura permite passar em revista temas atuais que discutem questões bem importantes, como a quebra de patentes da indústria farmacêutica, em prol do benefício da coletividade. Ou ainda questões relativas a sistemas open-source e às disputas entre Microsoft e Linux. 5. Conclusões O objetivo deste artigo foi investigar o particular posicionamento de Santos Dumont acerca de seus próprios inventos enquanto inovações tecnológicas. Assim, foi feita uma descrição de suas descobertas, listadas em uma tabela que procurou indicar as principais inovações agregadas aos seus modelos e aparelhos. O quadro geral da contribuição do inventor tem contornos impressionantes, uma vez que imaginou, desenhou, montou, adaptou e desenvolveu aeróstatos, aviões e até modelos híbridos, como o famoso 14 Bis. Tanto que foi tido, por vários países e instituições, como importante figura no campo da inovação tecnológica. A base para tal levantamento consistiu essencialmente em documentos primários elaborados pelo próprio inventor, assim como livros e artigos de estudiosos do tema. Então, como 8
resultado da pesquisa, constatou-se que, de forma contrária à tendência hegemônica no campo da inovação tecnológica, marcada por priorizar a comercialização de bens e serviços, Santos Dumont fez opção bem diversa. Suas inovações tecnológicas visavam o bem estar coletivo e derivavam de um profundo senso de responsabilidade social. 6. Referências BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 11a ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BARROS, Henrique Lins de. Alberto Santos-Dumont. Editora Index e Associação Promotora de Instrução: Rio de Janeiro, 1986. BARROS, Henrique Lins de. Santos Dumont e a Invenção do avião Rio de Janeiro - Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, 2006. BARROS, Henrique Lins de. Santos Dumont e a Invenção do Voo - Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003. CASTRO, Alexandre de Carvalho; PORTUGAL, Francisco Teixeira; JACO-VILELA, Ana Maria. Proposição bakhtiniana para análise da produção em psicologia. Psicol. estud. Maringá, v. 16, n. 1, Mar. 2011. DIAS, Adriano Batista. Santos Dumont,O Inovador - Vieira & Lent, Rio de Janeiro, 2006. DUMONT, Santos. Dans L Air No Ar. Coleção Santos-Dumont, de próprio punho Volume I, Bauru, Editora Taller Comunicação, 2009. [publicado originalmente em 1904] DUMONT, Santos. O Que Eu Vi O Que Nós Veremos. Coleção Santos-Dumont, de próprio punho Volume II, Bauru, Editora Taller Comunicação, 2009. [publicado originalmente em 1918] DUMONT, Santos. Os meus balões. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1973. GOMES, Claudia Maffini e KRUGLIANSKAS, Isak. Indicadores e características da gestão de fontes externas de informação tecnológica e do desempenho inovador de empresas brasileiras. Rev. adm. contemp. [online]., vol.13, n.2, pp. 172-188, 2009. HOFFMAN, Paul. Asas da Loucura: A Extraordinária Vida de Santos Dumont - Objetiva, Rio de Janeiro, 2004. LONGO, W. P. Impactos do desenvolvimento científico e tecnológico na Defesa Nacional. In: Marcio Rocha. (Org.). Política, Ciência & Tecnologia e Defesa Nacional. Rio de Janeiro: UNIFA, p. 27-63, 2009. MARQUES, Marília Bernardes. Gestão, planejamento e avaliação de políticas de ciência e tecnologia: hora de rever?ciência saúde coletiva [online], vol.4, n.2, pp. 383-392, 1999. SILVA, Cylon Gonçalves da. Ciência e Tecnologia como atividades estratégicas: as barreiras culturais. Parcerias Estratégicas, Vol. 5, N. 9, p.10-11, Outubro, 2000. VISONI, Rodrigo Moura and CANALLE, João Batista Garcia. Como Santos Dumont inventou o avião. Rev. Bras. Ensino Fís. [online], vol.31, n.3, pp. 3605.1-3605.6, 2009. 9
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