Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher: uma resposta à violência de gênero.

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Transcrição:

Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher: uma resposta à violência de gênero. MARIA BEATRIZ NADER * No mesmo ano da criação da primeira Delegacia Especializada em Atendimento (DEAM) à mulher vítima de violência no Brasil, instalada na cidade de São Paulo, em 06 de agosto de 1985, no Espírito Santo, o CIM capixaba, encaminhou solicitação ao governador para que fosse criada também no Estado uma Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher. Pelo decreto nº. 2.170, de 24 de outubro de 1985, o governador desse Estado, criou a DEAM-ES, incluindo-a a estrutura organizacional da Polícia Civil, órgão ligado diretamente à Secretaria de Estado da Segurança Pública, vinculando sua direção ao gabinete do Superintendente da Polícia Judiciária. No período de 1985 a 1990, várias DEAMs foram criadas no interior do Estado. Até o ano de 2002 a DEAM/Vitória funcionava fisicamente em uma sala da Superintendência da Polícia Civil do Espírito Santo, não dispondo de espaço no mínimo razoável para seu funcionamento administrativo, além de inibir e dificultar o acesso das mulheres vítimas de agressão às dependências da DEAM. Ainda nesse ano, o Governo do Estado adquiriu uma casa próxima àquela Superintendência e aí instalou a DEAM - Vitória. Apesar de adquirir certa independência física, essa nova instalação não mantém espaço para arquivar toda sua documentação e esta, desde a criação da DEAM - ES até o dia 31 de dezembro de 2002, teve de ser deixada aos cuidados do Arquivo Morto da Superintendência de Polícia Civil. Atualmente os registros de ocorrência anteriores aos anos de 2003 se encontram nesse arquivo que está indisponível para pesquisa sob a alegação de estar em uma localização de difícil acesso. Em decorrência desse fato o recorte temporal escolhido para a pesquisa foi o da instalação da DEAM - Vitória no novo endereço até o ano de 2008, período que marca o início de sua rápida expansão apesar de todo o crescimento demográfico e econômico Vitória, pois a cidade hoje possui apenas uma Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher vítima de violência. * Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em História Social das Relações Políticas, da Universidade Federal do Espírito Santo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 1

Pioneira no Espírito Santo, a DEAM - Vitória, assim como outras delegacias do país, até hoje registra as denúncias de mulheres que sofrem violência, de gênero, doméstica ou não, em um documento emitido pela polícia, o Boletim de Ocorrência e é produzido a partir de dados relatados pela vítima ou por outra (o) denunciante sobre um acontecimento público ou privado que exija intervenção policial. Nele fica registrado o relato das circunstâncias do fato, dados da vítima e do agressor, assim como das testemunhas. Apesar de, em todo o país ser reconhecida a forte subnotificação da violência contra a mulher nas delegacias policiais, pois esse tipo de violência, especialmente a gerada entre os muros domésticos, não é, em sua maioria, denunciada, a DEAM - Vitória, em seus primeiros cinco anos registrou denúncias descritas como ameaças (906), Calúnia, difamação e injúria (229), estupro (35), maus tratos (162), sedução (07), agressão moral (39), agressão física (1.826), injúria, calúnia e expulsão do lar, rapto, roubo, constrangimento ilegal, abandono do lar (1.137). Contudo, naquela época, por força de uma tradição cultural e uma legislação que não criminalizava a violência física à mulher que não a levasse ao óbito, principalmente quando a agressão ocorresse por questões de gênero e dentro do ambiente doméstico, inúmeros foram os casos não registrados nas DEAMs de todo o Brasil. Até hoje, muitas mulheres por medo ou vergonha que sentem de conviver com homens que as maltratam e as humilham, ocultam as investidas agressivas e não os denunciam às autoridades. Por outro lado, milhares de outras mulheres tiveram a coragem de denunciar seus agressores nas DEAMs de todo o país. Somente no ano de 2003, mais de 1.400 mulheres procuraram a DEAM - Vitória e registraram denúncias sobre agressões sofridas. São mulheres de todos os segmentos sociais, níveis de escolaridade e idade. Dentre as ocorrências registradas após esse ano, encontram-se várias queixas feitas por mulheres contra seus maridos e companheiros, vizinhos e parentes, e também contra colegas de trabalho, sejam homens e mulheres. No período de 2003 a 2008, a DEAM Vitória contabilizou 8.377 denúncias de violência contra a mulher, número que se vê distribuído no quadro abaixo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 2

QUADRO 1 Denúncias registradas na DEAM/Vitória. Segundo mês e ano. 2003 a 2008 Ano 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Mês Janeiro 147 124 163 128 109 131 Fevereiro 143 85 74 89 113 98 Março 116 167 123 113 113 91 Abril 112 125 119 104 88 119 Maio 93 153 118 90 112 97 Junho 121 119 117 108 86 112 Julho 105 115 74 120 129 131 Agosto 104 125 156 119 164 147 Setembro 131 131 114 91 122 136 Outubro 125 111 118 93 109 139 Novembro 203 128 105 94 111 144 Dezembro 71 128 104 68 90 147 Total 1.471 1.511 1.385 1.173 1.345 1.492 Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória. As informações obtidas foram extraídas dos Boletins de Ocorrência (BOs), mas deve-se levar em conta que o somatório da numeração registrada nos BOs é de 8.592, ou seja, uma diferença de 215 denúncias. Essa discrepância se dá pelo fato de o último registro no ano de 2003 ter o número 1.600, o último do ano de 2004 ter o número 1.525, o último do ano de 2005 ter o número 1.400, o último do ano de 2006 ter o número 1.218, o último do ano de 2007 ter o número 1.357 e o último do ano de 2008 ter o número 1.492. Essa grande diferença ocorre porque muitos BOs tem seu número repetido, assim como outros nem chegam a ter número de registro e pode ser melhor analisada observando-se o Quadro 2: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 3

QUADRO 2 - Número de denúncias e de Boletins de Ocorrência DEAM/Vitória. 2003 a 2008 ANO 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Número de BOs 1.471 1.511 1.385 1.173 1.345 1.492 Último número constante nos registros 1.600 1.525 1.400 1.218 1.357 1.492 Diferença anual 129 14 15 45 12 0 Fonte: Boletins de Ocorrência da DEAM/Vitória. Deve-se considerar, portanto, a qualidade do preenchimento dos BOs, pois em muitos há espaços onde não constam informações como idade, profissão, nível de escolaridade, estado civil e outros dados importantes, tanto do agressor quanto da vítima. Isso equivaleu à redução da quantidade de alguns desses dados, o que dificulta quando do cruzamento dos mesmos. Contudo, a dimensão total quantitativa das informações obtidas permitiu que fossem feitos vários cruzamentos de dados cuja finalidade é mapear a violência contra a mulher em Vitória, assim como identificar o perfil da vítima e do agressor. Ainda sobre os registros dos BOs, observa-se que, no ano de 2006, a partir do mes de setembro, houve uma queda acentuada nos números de denúncias registrados na DEAM/Vitória. Esses registros coincidem com a data que passou a vigorar a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Por força dessa lei, as denúncias que forem feitas sobre qualquer tipo de violência contra a mulher, somente poderão ser retiradas com autorização do juiz, tornando mais rigorosa a punição dos crimes de violência contra a mulher. Assim, muitas mulheres, deixaram de denunciar seus agressores naquele final de ano. Observa-se, ainda, que, iniciado o ano seguinte, os números de denúncias se mantiveram proporcionalmente aos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro do ano de 2005. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 4

QUADRO 3 Número de denúncias na DEAM/Vitória. 2003 a 2008 ANO Meses 2005 2006* 2007 Setembro 114 91** 122 Outubro 118 93 109 Novembro 105 94 111 dezembro 104 68 90 Fonte: Boletins de Ocorrência da DEAM/Vitória. * Ano da institucionalização da Lei 11.340. ** Mês da institucionalização da Lei 11.340. Para determinar a classificação científica das características do fato juntou-se todas as informações contidas nos BOs que pudessem revelar a natureza da ocorrência que levou a mulher a fazer a denúncia. Dentre os aproximadamente 80 tipos diferentes de referências encontradas somente no primeiro semestre de 2003, destacam-se a agressão com lesão corporal (249) e a ameaça (197). Esta última, se acrescida de agressão, constrangimento, injúria e perseguição, aumenta para 241. O quadro 4, mostra o percentual das modalidades de violência contra a mulher que mais foram registradas nos BOs da DEAM/Vitória no período pesquisado. QUADRO 4 Resumo dos principais tipos de violência contra a mulher, registrados na DEAM/Vitória, no período de 2003 a 2008. Tipo de violência * Abandono de lar ou material 3,27 Agressão física e verbal com danos, injúria, lesão corporal e perturbação da tranqüilidade. Ameaça, perseguição, invasão de domicílio, constrangimento, cárcere privado e pressão psicológica. Percentual 38,69 48,35 Calúnia, difamação e ofensa moral 9,69 Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória. *em ordem alfabética Falta distinção entre tipos de violência, ou seja, as modalidades de violência que são registrados nos BOs são confundidas e misturadas desordenadamente. Isso dificulta Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 5

a clareza do entendimento do que realmente ocorreu. Mesmo assim, não é impossível confirmar a agressão física como o tipo de violência que mais aparece nas denúncias. Como Vitória está dividida em regiões, tomou-se como parâmetro, para este mapeamento, as unidades onde mais ocorreu agressão física, e observou-se que as mulheres que mais sofreram esse tipo de violência foram aquelas que residiam na unidade que compõem a Região IV da cidade, onde ficam os bairros de Andorinhas, Penha, Bonfim, Itararé, Joana D Darc, Maruípe, Santa Cecília, Santa Marta, Santos Dumont, São Benedito, São Cristóvão e Tabuazeiro. Observando mais de perto essa unidade regional, tem-se no quadro abaixo o percentual de mulheres que sofreram agressão física por bairro. QUADRO 5 - Mulheres que sofreram agressão física por bairro, registrados na DEAM/Vitória. 2003-2008. Região IV Grande Maruípe % Andorinhas 54 Bairro da Penha 14,2 Bonfim 8,0 Itararé 14,1 Joana D Arc 12,1 Maruípe 8,8 Santa Cecília 1,3 Santa Marta 10,1 Santos Dumont 2,0 São Cristóvão 6,0 Tabuazeiro 12,1 Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória. Seguindo de perto, estão os registros de mulheres agredidas que residiam nos bairros das Regiões V e VI, cuja população é a que possui o maior poder aquisitivo da cidade. Do número de mulheres que residiam nesses bairros, no primeiro semestre de Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 6

2003, dos Boletins de Ocorrência que trazem os dados de escolaridade completos observou-se que 33,27% delas tinha curso superior completo, 0,27% tinha curso superior incompleto e somente uma era analfabeta. De seus agressores 1,9% tinha curso superior completo, 1% tinha curso superior incompleto, e nenhum era analfabeto. Os bairros Jardim Camburi e Jardim da Penha são os locais da Região VI onde havia o maior número de violência contra a mulher, e as mulheres que ali foram agredidas tinham entre 22 e 25 anos de idade, o que foge à média do resultado final da análise dos dados coletados. No total das vítimas registradas no período pesquisado, a média de idade das vítimas se concentra entre 26 a 30 anos. Em se tratando dos bairros Jardim Camburi e Jardim da Penha pode-se inferir que os mesmos, por serem bairros muito novos, com aproximadamente 40 anos, tem uma população mais jovem. Muitos moradores são alunos da Universidade Federal do Espírito Santo que, depois de formados se estabelecem no bairro. Além disso, os mesmos foram criados para atender a demanda de moradia para trabalhadores da então Companhia Vale do Rio Doce e da Companhia Siderúrgica do Tubarão, que nos anos de 1960, 1970 e 1980 iniciaram e ampliaram suas atividades de produção, contratando profissionais de outras localidades do Estado do Espírito Santo e do pais. Também residiam nesses bairros mulheres casadas que sofreram violência contra o seu patrimônio e denunciaram seus ex-maridos. Além dessas, outras mulheres também sofreram esse tipo de violência e eram moradoras dos bairros Bela Vista, Maruípe, São Pedro III, Jardim da Penha, Resistência e Santo Antônio. Todas foram classificadas como sendo de cor parda e a maioria de seus agressores, que moravam em São Pedro III e Santo Antônio, estava desempregada. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 7

QUADRO 6: Profissões das vítimas e agressores que mais aparecem nos registros de BOs da DEAM/Vitória. 2003 a 2008 PROFISSÕES Vítima Agressor Do lar Desempregado Doméstica Do lar Auxiliar de Serviços Gerais Pedreiro Estudante Comerciante Comerciária Vendedor Vendedora Aposentado Professora Pintor Funcionária Pública Ajudante de pedreiro Manicuri Motorista Aposentada Proprietário Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória. Em relação à profissão das vítimas, observou-se que nos Bairros Jardim Camburi e São Pedro, o maior número delas se classificou como sendo do lar, ou seja, em um dos bairros de maior poder aquisitivo e em um daqueles onde se situa a população mais pobre da cidade, as mulheres ainda tinham em comum a dependência econômica de seus maridos, companheiros e agressores. Além de comporem os grupos de mulheres com maior e menor nível de escolaridade, ou seja, em Jardim Camburi a maioria das mulheres que sofreram violência tinha curso superior e a maioria das mulheres que sofreram violência no Bairro de São Pedro eram analfabetas. Mas, não foram somente essas mulheres classificadas como sendo do lar. Nos BOs, no campo em que se registra a profissão da vítima a maioria das mulheres foi classificada como sendo do lar e doméstica (18,4%). Mas, o que mais chama atenção é que também a maioria delas era solteira e, dentre as que informaram escolaridade, a maior parte tinha curso superior completo. Tomando esses dados sob outro anglo, observou-se que 23,7% das mulheres que sofreram violência moravam ou namoravam seus algozes. Para completar essas informações foram coletados dados que mostram que as mulheres que mais sofreram violência estavam na faixa etária de 26 a 30 anos (19,9%), eram pardas (42,2%) (gráfico 5) e nasceram na Região Metropolitana de Vitória (37,1%). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 8

Por seu turno, os homens foram os agressores mais denunciados (79,9%) e dentre eles, 18,1% eram casados, 1,9% tinham curso superior, 3,14% estavam desempregados na época em que ocorreu o fato e 42,2% eram de cor parda. Chama atenção o fato de 2,4% dos agressores, no quadro profissão (quadro 6), terem sido classificados como do lar. Em se tratando de homens, que foram assim classificados, fica a interrogação se isso denota que eles cuidavam apenas dos afazeres de sua própria casa, ou simplesmente trabalhavam em casa de família que não seria a própria, desenvolvendo atividades de jardineiros, motoristas, cozinheiros, ou seja, como domésticos. Segundo Madeira e Singer (1970), as mulheres, quando tem profissão de domésticas, desempenham atividades femininas tradicionais, como a prestação de serviços pessoais aos membros de sua própria família ou aos de uma outra. Para os autores, doméstica, nos anos de 1970, era considerada pela sociedade como membro inferior na escala de produção do país e tinha uma situação social duplamente falsa: primeiro, porque desenvolvia um trabalho que não promovia a emancipação da mulher, segundo, porque se situava à margem da divisão social do trabalho. Agora, em se tratando de homem, quando o trabalho doméstico passou a expressar a noção do processo de alienação feminina e de sujeição da mulher ao homem, esse quadro é modificado. Para Bruschini (1999), as atividades desenvolvidas por homens e mulheres no mercado de trabalho tem a marca do gênero e, como após os anos de 1990, o conceito de trabalho foi alargado, os homens passaram a ocupar os espaços tidos como femininos. Contudo, nesses espaços, principalmente no que se refere às atividades domésticas, há uma relativa expansão da presença masculina. Outros dados que foram coletados e podem ser amplamente analisados se referem ao dia e ao horário da agressão que foi denunciada no período pesquisado. Durante o final de semana, a DEAM/Vitória permanece com suas portas fechadas ao atendimento às mulheres vitimas de violência. Isso implica em observar que 25% das denúncias de agressão que são feitas na segunda-feira mostram que as agressões geralmente ocorrem nos finais de semana, quando vitimas e agressores estão mais próximos uns dos outros. E, que o horário de maior concentração de agressões é no período da noite. Nos finais de semana há um maior índice de consumo de álcool e droga e as noites são intensamente utilizadas para diversão. Observa-se, ainda, que nas Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 9

segundas-feiras as denúncias feitas na DEAM/Vitória dizem respeito, também à noite de sexta-feira, considerada pelos capixabas como a noite em que mais deve ser aproveitada para diversão. Assim, dentre os resultados apresentados neste trabalho, a confecção de um mapa da violência contra a mulher em Vitória, com gráficos e tabelas que privilegie bairros, características das pessoas envolvidas no processo e um estudo sóciodemográfico da vítima e do agressor, ainda tem muito a ser feito. Os resultados do mapeamento e do estudo sócio-demográfico propostos como fim da pesquisa, que ora é em parte apresentada, fornecerão novos dados sobre a violência contra a mulher capixaba, contribuindo para que essa violência torne-se cada vez mais visível, criando novas ações que possam fomentar uma consciência crítica na comunidade capixaba. Referências ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1985. BOSELLI, Giane Cristini. Instituições, gênero e violência: um estudo da Delegacia da Mulher e do Juizado Criminal. (2003) 147 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Estadual Paulista, Campinas, 2003. CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. 1889-1930. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. São Paulo: USP/ FAPESP, 1998. LIMA, Lana Lage da Gama. Penitentes e solicitantes: gênero, etnia e poder no Brasil Colonial. In. Nader, Maria Beatriz & FRANCO, Sebastião Pimentel & SILVA, Gilvan Ventura da. (orgs.) História, mulher e poder. Vitória: PPGHIS, 2006. p. 100-219. MADEIRA, Felícia R.; SINGER, Paul I. Estrutura do emprego e trabalho feminino no Brasil: 1920-1970. Caderno CEBRAP, São Paulo, n. 13, 1975. MINAYO, Maria Cecília de Souza & SOUZA Edinilsa R. Violência para todos. Cadernos de Saúde Púbica. Rio de Janeiro 9 (1): 65-78, janeiro/março, 1993. Site http://www.scielo.br. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo, julho 2011 10

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