Entre deuses de outros planetas: aspectos psicossociais e clínicos de movimentos religiosos e neoesotéricos contemporâneos

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Transcrição:

Português RESUMO ESTENDIDO Entre deuses de outros planetas: aspectos psicossociais e clínicos de movimentos religiosos e neoesotéricos contemporâneos Martins, Leonardo Breno 1 INTRODUÇÃO: Uma das características distintivas do momento histórico atual é a pluralidade de referências culturais em contato entre si, compartilhando os mesmos espaços geográficos, virtuais e simbólicos. Assim, a contemporaneidade é marcada por ideias, crenças, comportamentos e ícones que são antigos e novos, tradicionais e vanguardistas, religiosos e seculares, que não só ocupam espaços similares, mas muitas vezes se interpenetram e se influenciam mutuamente. Alguns contextos em que tais produtos culturais religiosos se multiplicam de forma particularmente rica estão no Brasil, um país historicamente marcado por influências culturais diversas desde a sua colonização, que começou no século XV. Além dos referenciais religiosos indígenas, europeus e africanos, e aqueles sincréticos deles derivados ao longo dos séculos seguintes, as últimas décadas testemunharam o surgimento e o fortalecimento de sistemas de crença-significado e arranjos grupais que adicionam também outras influências (alguns delas propriamente modernas) relacionadas à ciência, tecnologia, teorias de conspiração, política, ateísmo, religiões do Extremo Oriente, muitas formas de esoterismo, folclore etc. Exemplos particularmente curiosos e caracteristicamente contemporâneos são sistemas de crença-significado relacionados a alegados contatos pessoais com extraterrestres e objetos voadores não identificados (óvnis). O Brasil é rico em sistemas de crença, pessoas, grupos e contextos marcados por alegados contatos com extraterrestres em que dimensões religiosas decisivas se apresentam. A heterodoxia das 1 Doutor e mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP). Psicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais (Inter Psi), que opera no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em psicoterapia, saúde mental e psicologia social. Suas pesquisas se inserem nas áreas de saúde mental, psicologia social, psicologia anomalística e psicologia da religião. Contato: leobremartins@usp.br ISSN 0000-0000 1

experiências, crenças, significados e arranjos grupais envolvidos nesses casos lançam desafios em diversos domínios de interesse da psicologia, entre os quais a saúde mental dos envolvidos e outros aspectos clínicos. OBJETIVO: O objetivo do texto é apresentar e discutir alguns aspectos de experiências religiosas, grupos organizados e os sistemas de crença-significado em contextos brasileiros que são fundadas em supostos contatos com extraterrestres, com ênfase em aspectos clínicos. MÉTODOS: Esta é uma pesquisa etnográfica, com dados coletados entre 2012 e 2015 em quatro contextos brasileiros (urbanas e rurais), incluindo entrevistas semiestruturadas com adultos e crianças. A pesquisa completa se encontra em Martins (2015). RESULTADOS: Os grupos formais têm dezenas, centenas ou (alegadamente) milhares de membros cada um. Os membros são proselististas, reconhecem lideranças comuns, partilham laços emocionais, realizam reuniões e rituais de cura espiritual e entram em contato com os alienígenas e guias espirituais, recebem e realizam doutrinação. Externamente aos grupos formais, um número de pessoas difícil de se determinar, mas significativo, vive fortemente influenciado por crenças e experiências subjetivas de contatos com extraterrestres. Em muitos desses casos, dimensões religiosas podem também ser reconhecidas. É possível reconhecer elementos religiosos nos sistemas de crença-significado e códigos de conduta relacionados, incluindo ritualização, fé, cosmogonias, a dimensão de mistério, a deificação e demonização de extraterrestres, mitos de fundação, profecias escatológicas, o significado transcendente de existência, complexos rituais de cura e contato com extraterrestres, identificação dos extraterrestres com ícones tradicionais e místicos como Cristo, Orixás, os Mestres Ascensos de Helena Blavatsky, entidades folclore local (por exemplo, a Mãe do Ouro), entre outros pontos. Entre os aspectos que destacam a especificidade do cenário brasileiro de contextos ufológicos são a pluralidade ISSN 0000-0000 2

de referências culturais, o exotismo das experiências, a grande facilidade com que o sincretismo acontece e a grande influência do catolicismo e kardecismo (duas religiões em que o Brasil se destaca no cenário mundial) sobre os sistemas de crença-significado. A identidade dos experienciadores/crentes também é transformada, como quando eles começam a se reconhecer como mestres espirituais, profetas, reencarnações de alienígenas, em oposição a outras pessoas "normais" e alienadas que representam a terra dessacralizada típica nas religiões hegemônicas no ocidente. Aspectos clínicos diversos se delineiam nesse cenário. De início, experiências altamente inusitadas no contexto em que emergem tendem historicamente a ser consideradas como indicadoras de transtornos mentais. Mas as pesquisas do autor e de outros, valendo-se comumente de testes psicológicos e anamneses padronizadas, sugerem que experiências com óvnis e alienígenas não se associam tipicamente a transtornos mentais, constituindo, ao contrário, acréscimos subjetivos à vida de seus protagonistas (cf. revisão da literatura e achados prévios do autor em Martins & Zangari, 2012). Em síntese, a presente pesquisa reforçou o ponto e encontrou evidências adicionais a respeito, ao acompanhar a rotina de protagonistas dessas vivências. As experiências então tenderam fortemente a não desempenhar papel desorganizador na vida dos protagonistas, mas, ao contrário, a facilitar a elaboração subjetiva de eventos desagradáveis ou mesmo traumáticos em sua vida, além de ajudar a conferir sentido a angústias e incômodos psicológicos de outros tipos. Seus protagonistas, ao contrário de certos estereótipos fortes na macrocultura, se mostraram tipicamente bem organizados, ativos socialmente e bem inseridos no sistema familiar. Usualmente não se mostram angustiados em função dos contatos com alienígenas, mas, ao contrário, apreciam tais ocasiões e as consideram de grande significância. Compreendem as reações críticas e mesmo estigmatizantes das demais pessoas em seu ambiente cultural quanto aos episódios, o que as incentiva a uma atitude discreta quanto a eles. Os protagonistas são também questionadores acerca de sua própria condição psicológica, considerando ou mesmo temendo que as experiências resultem de processos psicológicos seus; ou seja, possuem senso crítico preservado e evidenciam ter internalizado referenciais culturais hegemônicos. As experiências em si tendem a ser breves e não invasivas, sendo que as exceções quanto à duração ocorrem tipicamente com a anuência dos protagonistas, como ISSN 0000-0000 3

é o caso dos contatos amistosos em estados alterados de consciência com alienígenas. As abduções (isto é, sequestros por óvnis) constituem um caso à parte nesse quesito, pois são descritas como invasivas, ainda que raras. Mesmo que heterodoxas na macrocultura, as experiências tendem a se adequar fortemente a referenciais culturais não hegemônicos, especificamente a ufologia e o esoterismo moderno, de modo a terem componentes culturais que as embasem e que as retirem do terreno da completa idiossincrasia. A investigação do histórico de saúde dos protagonistas revela que tipicamente não apresentam ou apresentaram transtornos mentais, de modo a ser comum que suas experiências com alienígenas sejam as exceções em uma biografia marcada pelo prosaico. Por fim, os protagonistas tendem a reportar amadurecimento pessoal e o desenvolvimento de preocupações humanitárias após as experiências, conferindo perante a si mesmos e à cultura uma conotação construtiva. Por seu turno, os sistemas de crença-significado que abraçam, embora tendam a organizar o vivido, contém elementos potencialmente desorganizadores, o que se manifesta em alguns casos. Entre os exemplos mais emblemáticos estão as terapias alternativas de cunho esotérico e o uso de regressões de memória hipnóticas em contexto clínico para recuperar pretensas memórias de abduções. O autor pôde verificar, entre os exemplos, situações nas quais tratamentos médicos convencionais foram abandonados em favor de terapias alternativas, após o que o quadro de saúde dos envolvidos piorou e não pôde ser revertido. Quanto às regressões de memória, elas são movidas pela crença compartilhada de que os alienígenas apagam lembranças das pessoas que sequestram, o que explicaria lapsos de memória comuns entre pessoas que se descrevem como abduzidas. Assim, muitos abduzidos no Brasil e em outros países, especialmente nos Estados Unidos, recorrem à hipnose para recuperar tais lembranças que foram bloqueadas contra sua vontade. Contudo, é sabido na literatura (e.g., Appelle, Lynn, Newman & Malaktaris, 2014) que a hipnose tende a produzir falsas memórias e a não auxiliar na recuperação de memórias fidedignas, o que tende a produzir impactos decisivos na identidade e visão de mundo da pessoa que passa a se identificar como abduzida. O caso mais comum é o desenvolvimento de ideias paranoides sobre ser monitorada em tempo integral por alienígenas. DISCUSSÃO: ISSN 0000-0000 4

Os sistemas de crença-significado relacionados a alienígenas presentes nesses contextos se enquadram no que Magnani (1996) chama de neo-esoterismo, ou seja, os temas esotéricos clássicos envolvendo cristais, seres espirituais, rituais, curas, magia e assim por diante, mas sem a antiga necessidade de iniciação e sigilo, e incluindo elementos modernos, como ciência e tecnologia. Em resumo, as dimensões religiosas de sistemas de crença-significado brasileiros relacionados a extraterrestres e óvnis também podem ser reconhecidas a partir das sete características listadas por John Saliba (1995) para discutir as experiências e crenças ufológicas como exemplos extremos de fenômenos religiosos diretos e indiretos. São elas: mistério, transcendência, crença em entidades sobrenaturais, perfeição, salvação, espiritualidade e efeitos sobre a visão de mundo. John Whitmore (1995) defende a natureza essencialmente religiosa de contatos com extraterrestres em geral, porque eles cumprem funções tradicionalmente atribuídas a Deus como ter criado e guiado a humanidade, a capacidade de realizar milagres e dar profecias, entre eles um "grande retorno", além das próprias experiências terem diferentes conexões temáticas com episódios religiosos, como luzes fantásticas do céu, a transmissão de mensagens morais, os protagonistas como profetas escolhidos para espalhar mensagens derradeiras, a ascensão de abduzidos e contatados para o céu, entre muitos outros exemplos. Por seu turno, as experiências com alienígenas tenderam a se enquadrar satisfatoriamente nos nove critérios desenvolvidos por Menezes Júnior e Moreira-Almeida (2009), após ampla revisão da literatura, para distinguir experiências anômalas saudáveis e transtornos mentais de conteúdo religioso, a saber: ausência de sofrimento psicológico, ausência de prejuízos sociais e ocupacionais, duração curta da experiência, atitude crítica preservada sobre a realidade das experiências, compatibilidade com o grupo cultural ou religioso do protagonista, ausência de comorbidades, controle sobre a experiência, crescimento pessoal ao longo do tempo e o desenvolvimento de atitudes de ajuda aos outros. Finalmente, o auxílio prestado por essas experiências e respectivos sistemas de crença religiosos/neo-esotéricos para a elaboração de dificuldades cotidianas caracteriza o chamado coping (enfrentamento) religioso, de modo a inserir, também por essa via, o pouco conhecido tema dos contatos com alienígenas em universos temáticos maiores e ISSN 0000-0000 5

interessantes à psicologia. De modo específico dentro das possibilidades de coping, Mathijsen (2009) aponta o papel que crenças paranormais podem exercer como provedoras de crivos interpretativos de realidades caóticas entre pessoas com tendências esquizotípicas, permitindo-lhes um ganho em controle mental e organização interna. A pesquisa do autor encontrou evidência nesse sentido, de modo que experiências precoces sugestivas de esquizotipia foram significadas por sistemas de crença neoesotéricos e então formatadas de acordo e desprovidas de suas dimensões potencialmente desorganizadoras. Contudo, como visto no caso das terapias alternativas e da hipnose, os sistemas de crença podem ser prejudiciais ao indivíduo, demandando do pesquisador e do clínico atenção individualizada em detrimento de um julgamento exclusivamente macroscópico do cenário. CONCLUSÃO: Lembrando John Whitmore (1995), as experiências com alienígenas e crenças relacionadas são uma "mina de ouro" para acadêmicos no estudo de fenômenos religiosos contemporâneos, incluindo o surgimento e renovação de grupos, rituais e crenças. No contexto brasileiro, esse potencial ainda é subutilizado, com poucos estudos sobre o tema. Por sua vez, os psicólogos clínicos e pesquisadores precisam ampliar seus conhecimentos acerca dos domínios das experiências e crenças anômalas e religiosas, o que os permitirá contemplar mais adequadamente os interesses e o bem-estar das pessoas e combater a histórica patologização automática do que é heterodoxo. Um dos caminhos para o entendimento aprofundado de experiências e crenças anômalas em geral e relativas a alienígenas em particular é a séria consideração da perspectiva dos protagonistas e de seu referencial cultural. PALAVRAS-CHAVE: religião, saúde mental, psicossocial, experiências anômalas, contemporaneidade. ISSN 0000-0000 6