Memórias do Sertão: as Imagens de Rosa no Cinema

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Transcrição:

Memórias do Sertão: as Imagens de Rosa no Cinema Profª. Drª. Elzira Divina Perpétua i (UFOP) Resumo: Ao estudar a interface composta por filmes realizados no Brasil a partir da obra de Guimarães Rosa e os respectivos textos de onde nasceram, partimos da hipótese de que um filme realizado a partir da adaptação de um texto literário se configura como memória desse texto. Os conceitos de intermidialidade, adaptação e tradução intersemiótica em conjunção com os estudos sobre a memória oferecem um amplo leque de possibilidades para o desenvolvimento dessa proposta. Palavras-chave: Guimarães Rosa, cinema, intermidialidade, adaptação, tradução intersemiótica 1 Introdução É difícil e perigoso falar sobre Guimarães Rosa, sobre a obra magnífica de Rosa, no seu alcance ainda apenas pressentido, em espaço tão acanhado. (ARRIGUCCI JR., 1999, p.123). A epígrafe que norteia este trabalho, e que de certa forma nos consola, pois retirada de ensaio de um dos mais importantes estudiosos da literatura no Brasil, fala não apenas do temor em discorrer sobre Rosa. As palavras de Arrigucci também circunscrevem o território, difícil e perigoso, que é o da adaptação da obra do escritor mineiro para as telas, como observa o cineasta e mestre em cinema Carlos Adriano: Se viver já o é, filmar Guimarães Rosa também é muito perigoso. (ADRIANO, 2001, p.61). Sabemos quão difícil pode ser para um leitor resistir aos termos da mera comparação e do julgamento ingênuo de que Rosa é incontestavelmente superior a qualquer uma das adaptações de suas obras para o cinema ou televisão. Tal afirmativa se assenta num texto onde reside a palavra, a letra, o signo verbal que, em sua incomensurável rede de significações, determina a quase intransponibilidade da linguagem escrita para outra mídia. Carlos Adriano assim resume a dificuldade: A travessia da obra literária de Guimarães Rosa para o universo imagético do cinema configura um processo criativo de risco, devido à irredutibilidade essencial de sua linguagem, encravada num solo de oralidade regionalista e de erudição universal. (ADRIANO, 2001, p.61). Também Walnice Nogueira Galvão se pronuncia sobre a relação arriscada entre a linguagem e os filmes, reconhecendo uma necessária infidelidade do cinema ao texto do escritor mineiro: As dificuldades são enormes, dado que a força principal de Guimarães Rosa é propriamente a linguagem, que exige, mais do que a fidelidade ao enredo, uma transposição através de criação paralela. Dos obstáculos para obter um tal resultado falam algumas das fracas adaptações existentes, que ficaram fiéis à letra e infiéis ao espírito. (GALVÃO, 2008, [s.p.]). A crítica ainda exemplifica, como coisa rara, fiel tanto à letra quanto ao espírito, o tratamento que Roberto Santos deu ao seu filme A hora e vez de Augusto Matraga. Ao que acrescentamos, como vários estudiosos já advertiram, que a escolha da locação da última cena o adro da igreja onde se desenrola a luta e mortes de Matraga e Joãosinho Bem-Bem é uma das grandes inovações do cinema sobre o texto, já que esse espaço reitera o caráter transcedente da hora e vez do protagonista, corroborando as palavras de Walnice Galvão de que a linguagem roseana exige uma criação paralela, não uma fidelidade ao enredo. Esse processo criativo de risco, contudo, não esmoreceu dezenas de cineastas que levaram às

telas as histórias imortalizadas pelo escritor mineiro. No levantamento da filmografia sobre Guimarães Rosa e sua obra, constam, até o momento, um total de 26 filmes (entre documentário e ficção), para exibição em cinema e TV, distribuídos comercialmente no Brasil desde 1964, sendo 13 curtas e 13 longas-metragens, aqui incluída a adaptação de Grande sertão: veredas para a TV. Apresentamos, abaixo, uma listagem dos títulos dos filmes e, a seguir, um breve comentário sobre as primeiras impressões desse levantamento. Curtas-metragens: A João Guimarães Rosa (1968), de Roberto Santos; A criação literária de João Guimarães Rosa (1969), de Paulo Thiago; Do sertão ao Beco da Lapa (1972), de Maurice Capovilla / Globo Shell Especial, TV Globo; Veredas de Minas (1975), de David Neves e Fernando Sabino; Eu carrego o sertão dentro de mim (1980), de Geraldo Sarno; João Rosa (1980), de Helvécio Ratton; Famigerado (1991), de Aluízio Salles Jr.; Rio de Janeiro, Minas (1993), de Marily da Cunha Bezerra; Urucuia: um nosso vão de riquezas (1998), de Angélica del Nery; Cordisburgo roseana: a cidade recriada (2001), de Vítor da Costa Borysow; Desenredo (2001), de Raquel de Almeida Prado; Diário do sertão (2003), de Laura Erber; Livro para Manuelzão (2003), de Angélica del Nery. Longas-metragens: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha; O grande sertão (1965), de Renato Santos Pereira e Geraldo Santos Pereira; A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos; Sagarana, o duelo (1973), de Paulo Thiago; Cabaret mineiro (1980), de Carlos Alberto Prates Correia; Noites do sertão (1984), de Carlos Alberto Prates Correia; Cinema falado (1986), de Caetano Veloso; A terceira margem do rio (1994), de Nelson Pereira dos Santos; Outras estórias (1999), de Pedro Bial; Aboio (2005), de Marília Rocha; Mutum (2007), de Sandra Kogut; A hora e a vez de Augusto Matraga (2011), de Vinícius Coimbra; Grande sertão: veredas (1985) minissérie TV Globo, de Walter Avancini. Dos treze curtas-metragens, com duração que varia entre 8 e 26 minutos, apenas três são ficções baseadas na obra de Rosa, sendo duas originárias de contos (Famigerado e Desenredo) e uma de trecho do romance Grande sertão: veredas (Rio de Janeiro, Minas). Os dez curtas indicados como documentários são bem variados em seus temas, mas o sertão aparece como topos recorrente na maior parte deles. Outros dois temas comuns são a biografia de Rosa e seus personagens factuais. Destes, chama atenção a presença constante de Manuel Nardy (o Manuelzão), que aparece nos documentários ora como personagem, ora como narrador e mesmo como testemunha da obra de Rosa. Narração de trechos da obra do escritor é outra constante verificada nos curtas-metragens. Dois dos curtas têm a mesma direção, de Angélica Del Nery (Urucuia: um nosso vão de riquezas e Livro para Manuelzão), assim como dois dos longas, a direção de Carlos Alberto Prates Correia (Cabaret mineiro e Noites do sertão). Um dos curtas e um dos longas foram feitos para exibição em televisão (respectivamente, Do sertão ao Beco da Lapa e Grande sertão: veredas), e um curta foi realizado como trabalho de curso universitário (Cordisburgo roseana: a cidade recriada). Alguns realizadores são conhecidos diretores de longas-metragens, como Paulo Thiago e Helvécio Ratton, que dirigiram tanto curtas quanto longas baseados na obra de Rosa. Alguns dos filmes não são adaptação direta do texto roseano: o curta Urucuia: um nosso vão de riquezas e os longas Cinema falado, Cabaret mineiro e Aboio. Também não é transposição da escrita roseana o consagrado Deus e o Diabo na Terra do Sol, embora Grande sertão: veredas seja considerado pela crítica cinematográfica como mote da obra de Glauber. Pelo menos três longas baseados na obra roseana foram realizados em vida do escritor, mas o primeiro curta foi rodado no ano seguinte à sua morte, ocorrida em 1967. Chama ainda atenção o aparecimento de um mesmo texto de Rosa em mais de uma adaptação fílmica. É o caso dos contos Famigerado, Os Irmãos Dagobé, A hora e vez de Augusto Matraga (que inspiraram dois filmes); Soroco, sua mãe, sua filha (que aparece em pelo menos três filmes), e do romance Grande sertão: veredas que, além de duas adaptações (um longa-

metragem e uma minissérie para a TV), possui trechos citados em pelo menos mais um longa e nove curtas. Também é notável o fato de vários contos de Rosa aparecerem num só filme, como nos longas A terceira margem do rio (que reúne "A menina de lá", "Os irmãos Dagobé", "Fatalidade", "Sequência" e "A terceira margem do rio") e Outras estórias (que congrega Famigerado, Os irmãos Dagobé, Nada e a nossa condição, Substância e Soroco, sua mãe, sua filha ). Interessa também observar que esses contos saíram do mesmo livro de Guimarães Rosa: Primeiras estórias, livro com o maior número de textos adaptados para o cinema (dez dos 21 contos). À exceção dos livros póstumos de Rosa (Outras estórias e Ave Palavra), as demais obras do escritor são contempladas nas realizações cinematográficas, a saber: Sagarana (contos), Corpo de Baile (novelas que compõem a trilogia Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; e Noites do sertão), Primeiras estórias (contos), Tutaméia (contos) e Grande sertão: veredas (romance). Essas breves observações sobre os filmes realizados no Brasil a partir da obra do escritor mineiro suscitaram algumas questões para a pesquisa que desenvolvemos no momento, como parte do estágio pós-doutoral, realizado na ECO/UFRJ, sob a supervisão da professora Anita Leandro. 2 A Travessia do Texto à Tela O grande número de cineastas que se debruçaram sobre o texto roseano para tentar sua travessia rumo à narrativa cinematográfica nos levou a formular a hipótese de que haveria uma espécie de imagem da memória já cristalizada na palavra roseana que dispõe seus textos ao cinema. Tal predisposição transcenderia a ocorrência dos quadros imagéticos que se projetam no ato de leitura de toda narrativa literária (o imaginário do leitor), e que situa a literatura (e a música) no âmbito das artes temporais, isto é, a arte constituída por uma sucessão de elementos que se articulam entre si e formam sentido(s) à medida que a leitura transcorre. Vista sob esse ângulo tradicional de classificação das artes, a literatura se funda numa dinâmica oposta às artes ditas espaciais (pintura, escultura), consideradas estáticas, enquanto o cinema (assim como o teatro e a dança) utiliza elementos dos dois grupos. No caso do texto roseano, o processo de formação dos quadros imagéticos ocorreria não apenas como resultado da leitura dos cineastas, mas estaria presente no próprio texto do escritor mineiro. Este conteria uma imagem em potencial, uma imagem de memória, que o cinema redimensionaria. Como agenciador de espaço e tempo, o cinema seria, então, o lugar de projeção da memória do texto, no duplo sentido da palavra projeção o filme propriamente dito e seu dispositivo de projeção; e a reverberação da memória do texto no espaço cinematográfico. À imagem da memória confluem os elementos que tornam o texto de Rosa inconfundível, materializados em sua linguagem. Como é sabido, a linguagem de Rosa tem como base o registro sonoro o discurso oral presente na voz narrativa e na construção dos diálogos entre os personagens, mas também a sonoridade do mundo, o que, por si só, já aproxima a sua escrita da escrita cinematográfica (e em particular, do documentário), amplamente apoiada no som. Outro aspecto notadamente marcante no texto roseano é a ocorrência de listas descritivas de elementos do espaço narrado, como nomes de pássaros e plantas do sertão mineiro, além das extensas elucubrações dos personagens em seus questionamentos existenciais. Essa característica do texto de Rosa remete a uma atitude de documentarista bem conhecida do escritor, cujos cadernos de campo encontram-se parcialmente publicados (CARDOSO, 2008, p.195). Feitas com precisão científica mas embasadas em critérios poéticos, as descrições de Rosa como que antecipam a dimensão fotográfica e sonora da imagem do cinema, funcionando como uma espécie de locação prévia para o cineasta. Por esse prisma, poderíamos arriscar por concluir que o texto de Rosa é já audiovisual. Uma característica ainda presente em Rosa, no que tange ao espaço narrativo, reside na polissemia de sertão que sua escrita estabelece. Como já foi apontado por vários críticos, entre os quais Eduardo Coutinho (COUTINHO, 1994), o texto parte de uma delimitação do espaço

geográfico, o sertão mineiro, para atingir a dimensão propriamente temporal desse espaço, ora evocando um sentido subjetivo do termo ( o sertão é dentro da gente ), ora projetando a ideia de sertão ao infinito ( o sertão é sem lugar ). A imagem do sertão, leitmotiv da obra de Rosa, condensa passado, presente e futuro, como uma imagem-cristal deleuziana. Apesar de remeter o leitor ao mundo rural habitado por jagunços, coronéis e vaqueiros dos anos 30 do século passado, o texto transita entre diferentes temporalidades, obedecendo antes a um tempo da memória, não cronológico. Nesse caso o sertão de Rosa encontra no cinema o meio ideal de fazer confluir os variados sentidos do termo, uma vez que a amplificação possível tecnologicamente favorece o redimensionamento das ideias propostas na escrita. Desta forma, podemos antecipar que o cinema que consegue estabelecer uma proximidade maior com o texto literário de Rosa traz a possibilidade de projeção da memória desse texto na medida em que ele torna a palavra escrita efetivamente audível e visível, materializando-a em imagem e som. Assim é que o texto roseano encontra no cinema um veiculador potente de sua memória. Ao evocar em imagens e sons uma ideia plurissignificada no texto, o cinema reduplicaria a potência da palavra escrita, abrindo o texto, portanto, a possibilidades de novas leituras. As adaptações do texto literário se configuram, assim, como vias de mão-dupla, em que transitam não apenas a palavra escrita em sua materialidade imagética e sonora, mas também imagens e sons renovadores do texto. Ocorre, pois, uma quebra da hierarquia conduzida por uma suposta superioridade do texto escrito em relação ao filme, o que permite ancorar esse tipo de adaptação nas teorias contemporâneas da tradução, no sentido dado ao termo por Derrida de que a tradução prolonga a vida do texto. Embora trate da tradução interlingual, o pensamento de Derrida em Des Tours de Babel pode incidir sobre outras formas de tradução, incluindo o de tradução intersemiótica, ampliando alguns conceitos discutidos nos debates de L'oreille de l'autre e contestando a pretensão de univocidade do texto traduzido ao lembrar, com a metáfora da torre de Babel, a impossibilidade da transparência entre as línguas. Em sua leitura de aspectos propostos por Benjamin em "A tarefa do tradutor", Derrida amplia o conceito benjaminiano de sobrevivência da obra através da tradução ao considerá-la como uma "existência continuada". Derrida ainda inverte a convenção de que tanto a tradução quanto a cultura colonizada seriam tributárias da cultura original, propondo que o texto original, tendo sua existência continuada assegurada pela tradução, é que passa a ser tributário desta, já que a tradução permite a ampliação do original. Neste sentido, os filmes adaptados dos textos de Rosa compõem a existência continuada da obra do escritor mineiro, ainda que nesse prolongamento encontre um percurso inusitado para a escrita. 3 Campo Geral e Mutum Num dos últimos filmes realizados como adaptação do texto de Guimarães Rosa, Mutum (2007), de Sandra Kogut, baseado na novela Campo Geral, a inovação mais evidente parece se relacionar à alteração dos nomes dos personagens infantis: o lugar de Miguilim é ocupado por Tiago; o de seu irmão, Dito, por Felipe; Drelina é substituída por Juliana; Chica, por Brenda; e Tomezinho, por João Vítor. Afastando-se dos apelidos marcados por acréscimo de sufixos diminutivos, tão ao gosto mineiro (como em Miguilim, Tomezinho) ou por cortes de sílabas (Drelina, Chica, Dito), que compõe o universo familiar e afetivo dos personagens roseanos, a escolha da cineasta foi por manter os nomes próprios dos atores mirins como personagens, conforme explica em entrevista no site do filme. Provavelmente, pelo mesmo motivo, a cadelinha Pingo-de-Ouro no texto de Rosa torna-se Rebeca no filme, já que o animal pertence a uma extensão do universo afetivo de Miguilim, pode ser que Rebeca tenha feito parte da convivência dos atores. Trata-se de uma opção que causa desconforto em espectadores que conhecem a obra escrita e que buscam no filme o rastro do texto de Rosa. Embora as locações busquem analogia com o lugarejo da narrativa roseana, e que muitas passagens do texto sejam privilegiadas seja na fala dos personagens, no desenvolvimento da narrativa cinematográfica, na focalização subjetiva da

paisagem a alteração dos nomes vem instituir uma recepção original, obrigando o espectador a olhar com mais atenção o ambiente e a situar a narrativa num outro tempo. O processo criativo de Sandra Kogut nos lega outra obra, paralela a Campo Geral. E não sem motivação das imagens recorrentes no próprio texto de Rosa, a focalização insiste na paisagem sertaneja, nas tomadas externas, em que os longos silêncios dos personagens são preenchidos pelos sons da natureza, fazendo jus ao título do filme Mutum, o lugar que, remetendo ao sentido etimológico mudo, traduz a perplexidade do protagonista frente ao mundo dos adultos e sua angústia à dor de existir o que vale para ambas as narrativas, já que o olho da câmera coincide, não poucas vezes, com o ponto de vista do menino. Nesse sentido, pode-se pensar nessa narrativa cinematográfica como uma tradução intersemiótica, um processo complexo, enquanto prática criativa e crítica, na proposta de Julio Plaza. Salvo algumas situações coincidentes entre literatura e cinema, o filme de Sandra Kogut, se considerado como um processo de memória do texto de Rosa, é feito de ações condensadas, como também de flashes e de lapsos, do fulgor produzido pelo aparecimento e desaparecimento alternados do texto roseano um exercício contínuo da projeção da memória na tela. O processo fílmico em relação ao texto escrito simula, pois, o funcionamento da memória em relação ao vivido. Não será outro o motivo pelo qual para o espaço da casa confluam diferentes temporalidades, marcadas por elementos predominantemente rurais, como fogão a lenha, jirau, currais, onde se imiscuem vasilhames de plástico de cores variadas. Esta fusão de mundos parece obedecer ao mesmo processo da escolha dos nomes das crianças Tiago, Felipe, Juliana, João, Brenda, retomados de outras épocas e lugares longínquos do sertão. Conclusão Foram apresentadas acima as primeiras reflexões da nossa pesquisa, intitulada Projeções da memória: a imagem do texto roseano. A hipótese é de que um filme realizado a partir da adaptação de um texto literário se configura como memória desse texto parte da constatação óbvia de que o cineasta é, antes de tudo, um leitor, e que a impressão das imagens evocadas pelo texto escrito no espírito deste leitor é, provavelmente, o nascedouro da adaptação fílmica. Assim, é possível que os conceitos de intermidialidade, adaptação e tradução intersemiótica em conjunção com os estudos sobre a memória ofereçam um amplo leque de possibilidades para se refletir sobre filmes realizados a partir de textos literários. Referências Bibliográficas 1] ADRIANO, Carlos. A angústia das inadaptações. Cult, n.43, fev.2001, p.42-63. 2] ARRIGUCCI JR., Davi. Guimarães Rosa e Góngora. In: Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 123-129. 3] CARDOSO, Marília Rothier. Entre meninos e vaqueiros (memórias mineiras para a invenção narrativa). Aletria, v.18, jul.-dez. 2008, p. 193-198. 4] COUTINHO, Eduardo F. Prefácio: Guimarães Rosa: um alquimista da palavra. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v.1, p.11-24. 5] CINEMA: VEREDAS Os filmes a partir de João Guimarães Rosa. Disponível em: www.imagemtempo.com.br/guimaraesrosa. Acesso em maio de 2012. 6] GALVÃO, Walnice Nogueira. Riqueza e polinização de uma obra. In: Cinema: Veredas os filmes a partir de João Guimarães Rosa. Disponível em:

www.imagemtempo.com.br/guimaraesrosa. Acesso em maio de 2012. 7] DERRIDA, Jacques. L'oreille de l'autre: otobiographies, transferts, traductions. Montréal: VLB Ed., 1982. 8] DERRIDA, Jacques. Des tours de Babel. In: GRAHAM, Joseph (Ed.). Difference in translation. Transl. Joseph Graham. London: Cornell University Press, 1985. p.149-164. 9] KOGUT, Sandra (dir.). Mutum. 35 mm, cor, 95 min., 2007. 10] PLAZA, Julio. A tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. 11] ROSA, João Guimarães. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. iautora Elzira Divina PERPÉTUA, Profa. Dra. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Departamento de Letras Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem E-mail: elzira@ichs.ufop.br