JOGOS COMPUTACIONAIS E A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: CONTRIBUIÇÕES DAS PESQUISAS E DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS Regina Célia Grando Universidade São Francisco regina.grando@saofrancisco.edu.br Resumo: No presente texto nos propomos a discutir os jogos computacionais enquanto recurso didático para as aulas de matemática. Entendemos que conferir espaços na escola para as adivinhações, para a produção de conhecimento, implica no desenvolvimento de atividades que mobilizam os estudantes para a aprendizagem. Desta forma, apresentamos uma metodologia de trabalho com jogos computacionais em sala de aula de matemática, destacando-se os momentos de intervenção pedagógica com jogos e suas principais características, buscando-se evidenciar o papel do professor como mediador do conhecimento matemático a partir do jogo. A análise é realizada a partir de pesquisas que foram realizadas e/ou orientadas e que tomaram o jogo computacional na perspectiva da resolução de problemas em contextos de aprendizagem matemática. Destacamos, também, a importância de pesquisas e práticas com jogos computacionais no ambiente escolar, apontando para os novos desafios que esse tipo de pesquisa nos impõe. Palavras-chave: Jogos computacionais; Resolução de problemas; Aprendizagem matemática. INTRODUÇÃO O propósito deste texto é discutir os jogos computacionais em uma perspectiva de resolução de problemas de matemática, como uma forma de mobilização dos estudantes à aprendizagem matemática. Temos que os jogos fazem parte da cultura lúdica de crianças e adolescentes. Entender como e o que as crianças e os adolescentes jogam significa compreender as características dessa cultura lúdica. Brougère (2002) apresenta seis características que definem essa cultura: trata-se de um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível; possibilita o conhecimento de um conjunto de referências que permitem interpretar como jogo uma atividade que, para algumas pessoas, não se caracteriza como jogo, como lúdico; é composto por certo número de esquemas que possibilitam iniciar a brincadeira, uma vez que se trata de produzir uma realidade imaginária; as regras dos jogos passam por um processo de (re)significação, seja ela individual ou feita por um grupo específico; nem sempre há jogos com regras claras, muitas delas são vagas e abertas, dando espaço à imitação ou ficção; e compreende conteúdos mais precisos que produzem jogos 1
particulares em função dos interesses das crianças, da moda e da atualidade. A cultura lúdica se apodera de elementos da cultura do meio-ambiente [sic.] da criança para aclimatá-la ao jogo. (BROUGÈRE, 2002, p. 25). Podemos, assim, dizer que o jogo e a brincadeira representam práticas sociais de crianças e adolescentes e, cada vez mais frequente, práticas que encontram nos jogos computacionais a sua maior expressão. A discussão sobre a produção de conhecimento matemático em práticas sociais possibilita uma reflexão sobre a inserção dos jogos, inclusive computacionais, em práticas sociais escolarizadas. O conhecimento matemático está implícito na ação do jogo, mas não ainda propriamente a Matemática como conhecimento sistematizado, cultural e cientificamente legitimado. O conceito matemático, assim como a noção matemática e a própria Matemática, não existe fora do indivíduo. É uma produção histórico-cultural que tem origem nas práticas sociais dos indivíduos. O conhecimento matemático pode ser considerado uma construção social se o entendermos como conhecimento produzido pelas pessoas de uma mesma sociedade e construção individual, ou se considerarmos que é (re)construído a partir de sentidos próprios que cada indivíduo atribui a ele. É papel da escola possibilitar à criança e ao adolescente o acesso e a compreensão do conhecimento matemático que foi produzido e sistematizado historicamente, assim como instrumentalizá-lo com condições para que se produza o novo conhecimento de forma crítica e sistemática. Pensar nessas duas dimensões que o processo ensinoaprendizagem da matemática necessita contemplar implica repensar as formas tradicionais de ensino relacionadas a uma cultura de aula de matemática que prioriza a resolução do problema matemático por uma simples aplicação de algoritmo ou fórmula. Entendemos mobilização, nesse texto, no sentido atribuído por Charlot (2000), que vai além da motivação ou interesse do aluno para a realização de uma tarefa, além de envolver as condições favoráveis para que o aluno deseje realizar a tarefa, ou seja, que ele seja envolvido na atividade pelo professor e pelos colegas, que ele tenha certo domínio do conhecimento básico necessário para que possa avançar na atividade proposta e, sobretudo, que ele tenha autonomia, desejo e espírito investigativo para a realização da atividade. Desta forma, ensinar matemática aos alunos significa criar ambientes de aprendizagem em que eles possam se sentir mobilizados a aprender matemática. 2
Inúmeras são as formas e instrumentos disponíveis para que esse ambiente de aprendizagem seja constituído, uma delas é a utilização dos jogos computacionais na aprendizagem matemática de crianças e adolescentes, nos diferentes níveis de escolarização, inclusive no nível superior. Há que se destacar que os jogos representam, na concepção defendida nesse texto, conteúdos de ensino. Desta forma, a matemática é explorada a partir do jogo, pois esse evidencia os conteúdos possíveis de serem trabalhados e não o inverso: pensar em um conteúdo e buscar um jogo ou criá-lo para trabalhar esse conteúdo. Durante muito tempo, e ainda bastante presente no ideário de alguns professores que ensinam matemática, acreditou-se que a inserção dos jogos nas aulas de matemática se justificasse pelo fato de os alunos estarem envolvidos em uma atividade e, ao mesmo tempo, felizes por a estarem realizando. Entretanto, é importante destacar que apenas jogar um jogo tem pouca contribuição para a aprendizagem em matemática. É todo o processo de intervenção realizado pelo professor, de discussão acerca da matemática realizada pelo grupo de alunos, de registro e sistematização de conceitos que possibilitam um trabalho efetivo com a matemática a partir do jogo, e não no jogo. INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA COM JOGOS NO ENSINO DA MATEMÁTICA Em pesquisas desenvolvidas anteriormente, bem como na prática de jogos em sala de aula, foi possível definir alguns momentos de intervenção pedagógica com jogos para a aprendizagem matemática. Não entendemos esses momentos de forma linear, muito menos como etapas de utilização de jogos em sala de aula de matemática, mas como momentos que possibilitam ir além da simples ação e experimentação das noções matemáticas presentes no jogo, algo que propicie reflexões, sistematizações e conceituações matemáticas a partir do jogo. 1 Momento: familiarização dos alunos com o material do jogo Nesse primeiro momento, os alunos entram em contato com o material do jogo. É comum o estabelecimento de analogias com os jogos já conhecidos pelos alunos. 2 Momento: reconhecimento das regras 3
O reconhecimento das regras do jogo pelos alunos pode ser realizado de várias formas: podem ser explicadas pelo professor ou lidas pelos alunos ou, ainda, identificadas através da realização de várias simulações de partidas, nas quais o professor pode jogar com um dos alunos que aprendeu previamente o jogo, enquanto os demais estudantes tentam perceber as regularidades nas jogadas e identificar as regras. 3 Momento: o jogo pelo jogo : jogar para garantir regras Este é o momento do jogo espontâneo, quando se possibilita ao aluno jogar para garantir a compreensão das regras. Neste momento, são exploradas algumas noções matemáticas contidas no jogo. 4 Momento: intervenção pedagógica verbal Os alunos passam a jogar, mas agora contando com as intervenções realizadas verbalmente pelo professor durante o movimento do jogo. Este momento é caracterizado pelos questionamentos e observações realizadas pelo professor a fim de provocar os alunos a analisarem suas jogadas (previsão de jogo, análise de possíveis jogadas a serem realizadas, constatação de jogadas erradas realizadas anteriormente etc.). 5 Momento: registro do jogo Pode acontecer dependendo da natureza do jogo e dos objetivos que se têm com o registro. O registro dos pontos, ou mesmo dos procedimentos e cálculos utilizados, pode ser considerado uma forma de sistematização e formalização, através de uma linguagem própria que, no nosso caso, seria a linguagem matemática. Para o professor, o registro é um instrumento valioso, pois permite a ele conhecer melhor os seus alunos. É importante que o professor procure estabelecer estratégias de intervenção que gerem a necessidade do registro escrito do jogo, a fim de que não seja apenas uma exigência sem sentido para a situação de jogo. O registro é um importante instrumento de que pode dispor o aluno para a análise de jogadas erradas (jogadas que poderiam ser melhores) e construção de estratégias. 6 Momento: intervenção escrita Trata-se da problematização matemática de situações de jogo. Os alunos resolvem situações-problema de jogo elaboradas pelo professor, ou mesmo propostas por outros 4
alunos. A resolução dos problemas propicia uma análise mais específica sobre o jogo, sendo que os problemas abordam diferentes aspectos dele que podem não ter ocorrido durante as partidas. 7 Momento: jogar com competência Um último momento representa o retorno à situação concreta de jogo, considerando todos os aspectos anteriormente analisados (intervenções). É importante que o aluno retorne à ação do jogo para que execute muitas das estratégias definidas e analisadas durante a resolução dos problemas. Afinal, de que adianta ao indivíduo analisar o jogo sem aplicar suas conclusões (estratégias) para tentar vencer seus adversários? Optou-se por denominar este momento jogar com competência, considerando que o aluno, ao jogar e refletir sobre as suas e outras possíveis jogadas, adquire uma certa competência naquele jogo, ou seja, o jogo passa a ser considerado sob vários aspectos que inicialmente poderiam não ser considerados. Buscamos estabelecer um momento em que o processo de análise do jogo e intervenção realizados possa fazer sentido no contexto do próprio jogo. Portanto, considerando esses momentos de jogo, infere-se que no jogo e pelo jogo o aluno possa construir conceitos matemáticos, dependendo do tipo de intervenção a que será submetido. O professor, ao assumir uma proposta de trabalho com jogos, necessita assumila como uma opção apoiada em uma reflexão com pressupostos metodológicos, prevista em seu plano de ensino, vinculada a uma concepção coerente e com o projeto pedagógico da escola. Tal vinculação se faz necessária para o sucesso do trabalho, na medida em que o professor não desencadeia a ação sozinho, mas juntamente com todos os outros professores responsáveis pela formação escolar dos alunos. É a coerência numa postura metodológica assumida pela equipe de professores (trabalho interdisciplinar). Vários fatores de ordem metodológica devem ser explorados pelo professor e fazer parte de seu plano de ação. Esses fatores caracterizam-se por algumas condições necessárias para o surgimento dos jogos no contexto escolar. Priorizamos em nossos estudos um tipo de jogo favorável às abordagens até o momento discutidas: os jogos de estratégia. Esse tipo de jogo é importante para a formação do pensamento matemático e propicia condições para a generalização (estratégias do jogo). O conceito matemático pode ser identificado na estruturação do próprio jogo, na medida 5
em que não basta jogar simplesmente para construir as estratégias e determinar o conceito. Faz-se necessária uma reflexão, uma análise sobre o jogo. JOGOS COMPUTACIONAIS: DESAFIOS IMPOSTOS POR UMA NOVA CULTURA LÚDICA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Os jogos computacionais nos impõem novos desafios tanto para as pesquisas com jogos em educação matemática quanto para as práticas em sala de aula. Fala-se muito em uma nova linguagem de jogo, uma lógica de jogo que possibilite às crianças e adolescentes estabelecer relações e analogias entre os diferentes jogos. Esse é justamente o sentido atribuído por Brougère à cultura lúdica, discutido no início deste texto. As crianças e os adolescentes sabem como se joga e sabem aproveitar ao máximo o que o jogo computacional ou eletrônico tem a oferecer. Elas se organizam em comunidades, em grupos sociais em que uma linguagem de jogo é falada e compreendida pelos outros membros da comunidade, como se fossem óbvias as interações e movimentações no jogo. O nosso grande desafio como educadores é trazer para a escola e para a sala de aula tudo aquilo que esses jogos podem oferecer de melhor em termos de aprendizagem matemática. Tive a oportunidade de orientar três pesquisas de mestrado que focaram a aprendizagem matemática a partir de jogos computacionais (MENDES, 2006; PACHECO NETO, 2008; ANDRADE, 2009). As três pesquisas foram desenvolvidas tomando-se como referência a proposta metodológica aqui apresentada de momentos de intervenção pedagógica com os jogos. Mendes (2006) desenvolveu sua pesquisa de mestrado utilizando o jogo computacional Simcity 4. O interesse da pesquisadora esteve voltado para as estratégias que os sujeitos utilizaram no processo de resolução de problemas matemáticos gerados pela estrutura, ação e mediação pedagógica com o jogo computacional Simcity 4 1. A pesquisa foi realizada com duas duplas de alunos que estavam cursando a primeira série do Ensino Médio, em uma situação de análise de caso. No capítulo metodológico da pesquisa, a autora destaca a dificuldade em selecionar um jogo computacional para a pesquisa, visto 1 O jogo Simcity 4 é um simulador que permite planejar, criar, construir e gerenciar uma cidade partindo de um terreno, escolhido pelo jogador. 6
que cabe ao pesquisador a compreensão do jogo e análise matemática deste para o desenvolvimento do estudo. Entretanto, nem sempre o jogo computacional faz parte da cultura lúdica do pesquisador. A conclusão da pesquisa aponta que foi possível verificar as potencialidades do jogo computacional Simcity 4 para a apropriação/mobilização de conceitos matemáticos e para a produção de significados matemáticos. Pôde-se verificar que o jogo apresenta em sua estrutura alguns conceitos matemáticos definidos e utilizados como uma maneira de elaborar as estratégias de jogo diante de uma situação-problema. Além disso, o processo de mediação pedagógica pôde ser visto como um processo de comunicação que auxiliou os sujeitos na construção de significados e que teve como característica o diálogo entre a pesquisadora e os sujeitos. Andrade (2009) deu continuidade à pesquisa desenvolvida por Mendes (2006) e trabalhou com o jogo Simcity 3000 em uma sala de aula com alunos do primeiro ano do Ensino Médio. Os alunos estiveram envolvidos num projeto de construção da cidade ideal e a pesquisadora pôde analisar, em termos de uma perspectiva crítica em relação à matemática, o que para esses alunos constituía uma cidade ideal. Elementos, como preocupação ambiental e sustentabilidade da cidade, estiveram presentes, e a matemática pôde ser instrumento de análise para tomadas de decisões sobre o jogo. Constatou-se que o jogo computacional Simcity 3000 foi visto como uma manifestação cultural e uma forma de comunicação entre idealizador/jogador(es)/jogo e, portanto, pôde ser considerado como uma linguagem, uma forma de comunicação e de significação, possibilitando a interpretação e atribuição de um sentido matemático aos problemas vivenciados. Pacheco Neto (2008) também trabalhou com um jogo de simulação denominado Roller Coaster Tycoon 2, um simulador de parque de diversões, na formação em matemática de administradores (Ensino Superior). A proposta apresentada pelo pesquisador foi a de utilizar jogos comerciais nas disciplinas de jogos de empresa oferecidas no curso de Administração, uma vez que se mantém o aspecto lúdico. Nesse sentido, o pesquisador analisa matematicamente o jogo e mostra o quanto uma concepção de matemática em uma perspectiva crítica possibilita aos graduandos se apropriarem de uma matemática que faça sentido à sua futura ação profissional, bem diferente da visão tradicional da matemática veiculada na maioria das disciplinas de matemática financeira. Esse conjunto de pesquisas evidencia que é necessário ter cautela quanto ao tipo de 7
jogo, à proposta de intervenção e à análise efetiva sobre quais contribuições que tais jogos podem oferecer à aprendizagem matemática. Uma delas, sem dúvida, é a tomada de decisão rápida. A escola tem se pautado em garantir aos alunos momentos e ritmos próprios de aprendizagem. Entretanto, nem sempre esse tempo pode ser respeitado. Em alguns momentos, a tomada de decisões precisa ser rápida e, nesse caso, as estimativas e aproximações são mais importantes do que o cálculo exato. Essa é uma habilidade que a maioria dos jogos computacionais possibilita aos alunos e que não está presente na escola. Além dessas, muitas outras habilidades e diferentes formas de compreensão sobre um problema matemático podem ser exploradas na ação e análise de jogos computacionais. As pesquisas brasileiras sobre jogos computacionais e a Educação Matemática ainda estão em número reduzido (por exemplo, MARCO, 2004; MENDES, 2006; ANDRADE, 2009, PACHECO NETO, 2008); entretanto, já é possível sinalizar para as muitas contribuições que esse tipo de mídia pode oferecer à aprendizagem matemática e mudar aquela história do adolescente que vai mal à escola, mas desempenha brilhantemente sua ação no jogo. O desafio que se coloca às práticas pedagógicas e docentes é a incorporação desses novos recursos nas aulas de matemática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, K.F.Z. O jogo computacional Simcity no ambiente educacional de uma turma do Ensino Médio: saindo da zona de conforto almejando uma educação matemática crítica. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade São Francisco, Itatiba, São Paulo, 2009. BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T.M. (Org.). O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002, p. 19-32. CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. GRANDO, R.C. O jogo e a matemática no contexto da sala de aula. 2ª Ed. São Paulo: Paulus, 2008. 8
. O conhecimento matemático e o uso de jogos na sala de aula. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2000.. O jogo e suas possibilidades metodológicas no processo ensino-aprendizagem da matemática. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 1995. MARCO, F.F. Estudo dos processos de resolução de problema mediante a construção de jogos computacionais de matemática no ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2004. MENDES, R.M. As potencialidades pedagógicas do jogo computacional Simcity 4. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade São Francisco, Itatiba, São Paulo, 2006. PACHECO NETO, E. O jogo Roller Coaster Tycoon 2 na formação dos administradores. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade São Francisco, Itatiba, São Paulo, 2008. 9