Um passado com futuro: metodologias de conservação em livro antigo Resumo São muitas as etapas de conservação e restauro que um livro antigo ultrapassa para assegurar o seu futuro! Neste artigo pretende-se fazer uma apresentação genérica dos fundos bibliográficos que a Biblioteca Nacional de Portugal tem à sua guarda, dos principais materiais que os caracterizam e das patologias que eles apresentam. Também se mencionam as etapas de uma intervenção de conservação e restauro num livro antigo ressalvando a necessidade de adaptar cada intervenção à especificidade e problemas que cada livro apresenta atendendo sempre aos princípios de reversibilidade, estabilidade e discernibilidade. Palavras-Chave Livro antigo, intervenção de conservação e restauro. Abstract Many steps are taken in the conservation and restoration of an old book to ensure its future! This article intends to make a general presentation of the library collection of the National Library of Portugal, of its main characteristics, the major conservation problems it faces and all the conservation and restoration approaches that Division of Preservation and Conservation. Also mentioned are the stages required for a C&R intervention in ancient books, highlighting the needs of adaptation of each intervention to the specificity of each book regarding principles of reversibility, stability and discerning. Keywords Ancient book, conservation and restoration intervention. 94
A história da criação dos acervos bibliográficos da Biblioteca Nacional de Portugal tem como data de referência 29 de Fevereiro do ano de 1796 durante o qual foi criada a «Real Biblioteca Pública da Corte» situada no Terreiro do Paço em Lisboa cujo núcleo original provinha da «Biblioteca da Real Mesa Censória» que tinha sido criada em 1768. Durante anos a colecção foi aumentada por doações privadas, ofertas e a partir de 1805 deram, também, entrada todas as obras impressas pelas tipografias portuguesas ao abrigo da primeira lei de Depósito Legal em 1805. Com a extinção das ordens religiosas e com a incorporação total ou parcial das bibliotecas dos conventos e mosteiros, a «Real Biblioteca Pública da Corte» transforma se na Biblioteca Nacional de Lisboa que em 1969 se transfere para as instalações do Campo Grande onde, actualmente, reside e com o nome de Biblioteca Nacional de Portugal 1. Desta forma, as colecções que constituem os acervos da Biblioteca Nacional de Portugal são constituídas por códices iluminados, desenhos, gravuras, mapas, livros impressos, incunábulos, periódicos, entre outros, reflectindo se numa enorme variedade de formatos e materiais na qual a Divisão de Preservação e Conservação tem de intervir quer através da implementação de Programas de Conservação Preventiva, quer através de acções directas de conservação e restauro. O conhecimento das colecções adquirido pelo chamado «trabalho de campo» proporcionado pelos sucessivos levantamentos do estado de conservação das colecções, pelos pedidos de obras para exposições e pelas intervenções de conservação e restauro permite nomear os principais materiais que constituem as colecções da Biblioteca Nacional de Portugal pergaminho, papel, couro, madeira, pigmentos e tintas de impressão e os seus principais factores de deterioração internos e externos. Relativamente aos factores internos de degradação dos documentos gráficos podemos dividi-los em dois grandes grupos: nos documentos gráficos anteriores ao século XIX, a principal degradação é causada pela acção das pragas e pela acção química provocada pelos pigmentos e constituintes das tintas utilizadas para a escrita e coloração dos textos. Para documentos a partir do século XIX até aos nossos dias, sobretudo de 1850 a 1950, o principal factor interno de degradação é a própria composição química do papel que por conter agentes acidificantes na sua composição muito sensíveis às condições meio ambiente e à poluição atmosférica promove um decaimento acelerado do estado de conservação das colecções. Comum aos dois grupos observam - se danos de origem mecânica que incluem manuseamento e armazenagem incorrectos; que incluem encadernações mal realizadas e inadequadas; danos provocados pela acção do Homem que podem ser listados desde mutilações, roubos, manchas de diversas origens e rasuras. O edifício e as condições meio ambiente também contribuem para a degradação dos documentos gráficos: excesso de luminosidade, flutuações severas de humidade relativa e de temperatura, qualidade do ar deficiente e outras situações com que a Divisão de Preservação e Conservação se depara. 1 http://www.bnportugal.pt 95
Fig.1 - Obra em mau estado de conservação provocado pela acção de insectos. Fig. 2 - Pormenor de lacunas provocadas pela acção de insectos. Fig. 3 - Livro ácido. Fig. 4 - Lacuna provocada pela oxidação da tinta ferrogálica. Fig. 5 - Livro vandalizado. Fig. 6 - Danos provocados por armazenamento e acondicionamentos incorrectos. 96
No âmbito da Conservação Preventiva e para contrariar a situação acima descrita, a Divisão de Preservação e Conservação tem vários programas implementados que são executados quer pelas três áreas que compõem a Divisão - Área de Conservação, Área de Encadernação Corrente e Área de Microfilmagem quer por funcionários da organização que receberam formação para poderem realizar o Controlo das Condições Ambiente e acondicionamentos específicos para as colecções que se encontram à sua guarda. Nas três áreas técnicas da Divisão são realizados trabalhos que se enquadram no conteúdo funcional de cada uma delas. A Área de Encadernação Corrente realiza, sobretudo, as chamadas «encadernações de biblioteca» que visam o reforço da estrutura mecânica de livros recentes para que a sua utilização por parte dos leitores não provoque a sua saída do circuito de leitura. A Área de Microfilmagem tem a seu cargo a gestão e preservação de todas as matrizes dos microfilmes realizados até à data, a preparação e selecção de títulos para campanhas de microfilmagem a realizar interna ou externamente. A Área de Conservação implementa e gere os Programas de Conservação Preventiva (controlo de pragas, controlo das condições meio ambiente como principais), realiza intervenções de conservação e restauro nos documentos gráficos considerados como mais importantes nas colecções da Biblioteca Nacional de Portugal e para exposições, acompanha o circuito expositivo dos documentos gráficos em exposições internas e externas e realiza acções de formação e de consultoria técnica. É nesta área que são realizadas as intervenções de conservação e restauro em documentos gráficos, livro ou avulso. O processo de recuperação de um livro é sempre iniciado pelo levantamento fotográfico da obra e pelo preenchimento de uma ficha de diagnóstico onde são anotadas todas as características físicas do livro, as suas patologias, testes de micro química e todas as etapas que constituem o seu tratamento. Fig. 7 - Preenchimento da ficha de diagnóstico e da folha de colação. Fig. 8 - Teste de solubilidade das tintas. Fig. 9 - Medição do valor de ph. Para separar o corpo do livro antigo da sua encadernação é sempre necessário preencher a «folha de colação» 2 e anotar as características codicológicas da encadernação. Nesta etapa, muitas vezes, é possível verificar se a encadernação é ou não contemporânea do corpo do livro 2 Esquema gráfico da organização dos cadernos que permite saber a sequência da paginação do livro. 97
e optar pela sua manutenção no caso, mesmo após a intervenção de conservação e restauro, desta cumprir a sua função de protecção do corpo do livro. Em caso negativo, a opção é, muitas vezes, a de realizar uma nova encadernação com materiais e tipologia idênticas à das encadernações cujas datas correspondem à época em que o corpo do livro foi criado. Em relação ao tratamento total do corpo do livro em que se verifica a necessidade de realizar uma limpeza por via húmida é necessário, genericamente, seguir uma metodologia que inclui testes de micro química: teste de ph 3 e de solubilidade das tintas e pigmentos 4 onde são experimentados vários solventes orgânicos que vão ser utilizados durante as várias etapas; que inclui limpeza por via mecânica, que inclui limpeza por via húmida 5 ; que inclui estabilização físico química 6 ; que inclui reforço e preenchimento de lacunas do suporte realizado por via de reintegradora mecânica 7 ou pelo método manual de deposição de polpa 8 ou por desenho da lacuna 9 ; que inclui reintegração cromática do suporte e que inclui, por último, a junção do corpo do livro restaurado à encadernação nova ou à original já restaurada. A intervenção dá se como terminada quando se procede ao acondicionamento do livro e à sua entrega no depósito da Biblioteca Nacional de Portugal correspondente. Durante este processo ainda se procede à digitalização do livro e de todos os seus componentes para garantir o seu acesso aos leitores desta biblioteca sem prejudicar a estabilidade física e química do livro. Fig. 10 - Limpeza por via mecânica. Fig. 11 - Reintegração mecânica. 3 Determina a quantidade de acidez do papel. É um indicador da necessidade de realizar desacidificação ou alcalinização do suporte em papel. 4 Permite antecipar a forma de como a limpeza por via húmida se deva processar. 5 Utilizando solventes orgânicos são removidas uma série de impurezas contidas no suporte contribuindo para a sua estabilidade físico química. 6 Alcalinização/desacidificação e encolagem - Reposição de parte de componentes do papel utilizando materiais estáveis quimicamente. 7 Equipamento que permite a deposição da suspensão de polpa nas lacunas pela acção de sucção. 8 Aplicação de polpa de papel em suspensão líquida nas zonas de lacunas com o auxílio de sondas e pipetas. 9 Desenho da lacuna em suporte com características semelhantes às do suporte original e sua aplicação na área em falta com o auxílio de adesivos. 98
Fig. 12 - Reintegração manual com auxílio de sonda. Fig. 13 - Encadernação original após restauro. Em todas as intervenções de conservação e restauro realizadas num livro antigo é sempre feita uma pesquisa e um planeamento das etapas para que os imprevistos que surjam sejam facilmente resolvidos. As intervenções realizadas nos livros antigos pertencentes aos fundos bibliográficos da Biblioteca Nacional de Portugal para além de discerníveis são sempre reversíveis e efectuadas com materiais estáveis e controláveis para que a intervenção em si não se torne em mais um factor de degradação destes fundos. Agradecimentos À Escola das Artes da Universidade Católica do Porto na pessoa do Prof. Doutor Gonçalo Vasconcelos e Sousa e da Doutora Eduarda Moreira da Silva. À Direcção da Biblioteca Nacional de Portugal e à Área de Conservação da Divisão de Preservação e Conservação pelo apoio prestado. Nota Biográfica Formada em 1994 pela Escola Superior de Conservação e Restauro na área de especialização de documentos gráficos e em 1995 pela Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva em Peritagem de Arte/ Mobiliário começou a prestar serviços na Biblioteca Nacional de Portugal em 1995. Em 1997 fez uma especialização em reintegração mecânica e no tratamento de pergaminho na empresa «Barbachano y Beny» como bolseira do Gabinete de Relações Internacionais. Manteve a sua ligação com a Biblioteca Nacional de Portugal tornando-se Chefe de Divisão de Preservação e Conservação desde 2000 até à actualidade. Continua a efectuar diversas acções de formação e de especialização nas áreas de preservação, conservação e restauro de documentos gráficos. Endereço electrónico - TLANCA@BNPORTUGAL.PT PRESECONS@BNPORTUGAL.PT 99