1 OS TRANSTORNOS ALIMENTARES À LUZ DOS LIMITES PSÍQUICOS Autora: Issa Damous Doutora em Psicologia Clínica PUC-Rio; Psicóloga Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC-RJ); issa@infolink.com.br Evento: V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, Fortaleza/CE-Brasil, 2012 texto de base para comunicação oral em mesa-redonda. De modo geral, a clínica psicanalítica contemporânea considera que na delimitação entre o eu e o outro são engendrados espaços fronteiriços fundamentais à organização da psique e ao seu funcionamento (cf. Cardoso e Garcia, 2010). Nessa perspectiva, a proposta deste trabalho é pensar os transtornos alimentares no contexto das patologias limítrofes, precisamente à luz da constituição dos limites psíquicos inserida na temática da diferenciação eu/não-eu. Este percurso ultrapassa uma visão psicanalítica clássica voltada para os referenciais edípicos e aponta para as dificuldades na experiência de diferenciação do objeto primário estruturante do psiquismo e os seus subsequentes prejuízos: sobretudo as angústias de abandono e de intrusão, o comprometimento da transicionalidade e as falhas na configuração narcísico-identitária. Clinicamente, têm-se de fato como pano de fundo os pacientes limítrofes que, embora não apresentem uma sintomatologia tipicamente característica de um transtorno alimentar, trazem como questão central a dificuldade de simbolizar e os desenlaces extra representativos, o que naturalmente é passível de incluir a relação com o alimento e com o corpo. Breve incursão na teoria psicanalítica: Freud, Winnicott e Green Perceber o outro de fato, assim como evoca-lo em pensamento, constituem tarefas psíquicas que podem ser realizadas mais ou menos facilmente dependendo do modo como se encontram organizados a atividade de pensar e o espaço psíquico pessoal. Cabe dizer que, em situações traumáticas, essas tarefas são bastante dificultadas, pois invariavelmente o limite entre o eu e o outro, o espaço fronteiriço, encontra-se prejudicado, com os limites psíquicos fragilmente estabelecidos e/ou ainda comprometidos, determinando, portanto, sérias psicopatologias. Nesse contexto, as seguintes hipóteses são sugeridas: 1) há um limite entre o eu e o outro, assim como há limites intrapsiquicamente; 2) esses limites não estão dados de uma vez por todas, ou seja, eles são constituídos; 3) no processo de constituição desses limites é possível situar um lugar e uma origem de patologias como os transtornos alimentares.
2 Em Freud (Freud, 1911; 1915; 1925) os limites interno/externo, subjetivo/objetivo resultam basicamente da articulação entre os dois princípios do funcionamento psíquico, princípio de prazer e de realidade, em conjunto com os juízos de atribuição e de existência, assim diferenciando entre o que pertence ao campo da realidade psíquica e o que pertence ao campo da realidade material. Logo, se num momento está em questão decidir entre engolir/cuspir, incorporar/ejetar, em função do que é vivenciado como prazer/desprazer, bom/mau, útil/prejudicial, fazendo valer nesse caso o juízo de atribuição, em outro momento faz-se necessário definir a existência de uma representação na realidade externa. Nesse sentido, um objeto percebido como bom merece ser introjetado no eu, mas precisa igualmente estar no mundo externo para que possa ser reencontrado. Aqui então o teste de realidade encontra-se a serviço do juízo de existência buscando a correspondência entre interno/externo. Contudo, para estabelecer o teste de realidade, é antes fundamental a perda do objeto que outrora proporcionou satisfação. No âmbito do pensamento freudiano pode-se dizer então que a constituição dos limites psíquicos perpassa as delimitações que estabelecem o que, por um lado pertence ao campo subjetivo, representacional, isto é, a realidade psíquica, e, por outro lado, o que condiz com uma realidade material, objetiva, a realidade externa. Em Winnicott (1975; 1983), a constituição dos limites psíquicos deve perpassar primordialmente uma indiferenciação eu/não-eu e um processo de diferenciação ao longo de uma jornada da dependência absoluta rumo à independência na qual os processos maturacionais são facilitados pelo aporte suficientemente bom do ambiente. Nesse percurso, o desenvolvimento emocional perpassa desde o puramente subjetivo até a objetividade, atravessando um processo de diferenciação eu/não-eu que se estabelece paulatinamente. A diferenciação e, portanto, a constituição dos limites psíquicos, se complexifica na medida em que ocorrem uma série de conquistas caracterizadas sobretudo pela dimensão do paradoxo, compreendendo-se este basicamente como duas verdades aceitas e não questionadas. Sem dúvida, constituem conquistas paradoxais fundamentais no texto winnicottiano a experiência de ilusão em que o objeto é encontrado/criado, a transicionalidade, em que não se coloca uma questão quanto à origem do objeto remontar à realidade psíquica ou à realidade externa, e a capacidade para estar só na presença de alguém.
3 Particularmente no que diz respeito às duas primeiras experiências paradoxais destacadas, ilusão e transicionalidade, tem-se a experiência de ilusão sustentada pela adaptação suficientemente boa da figura materna na sua preocupação primária inaugurando o campo no qual o bebê vivencia a criatividade primária: uma realidade externa existe de modo correspondente à sua própria capacidade de criar, pois há uma sobreposição entre o que a mãe supre e o que a criança concebe. Na medida em que se inicia a desilusão, ou seja, uma adaptação incompleta às necessidades da criança experimentada num processo gradativo que acompanha a crescente capacidade infantil de lidar com o fracasso ou falhas maternas, o campo da experiência de ilusão é atravessado pela transicionalidade e ganha a forma de um espaço potencial. Por sua vez, este espaço caracteriza-se como uma terceira área de experimentação entre a realidade subjetiva e a realidade externa, isto é, uma zona intermediária. O caráter paradoxal marca essencialmente essa terceira área de experiência que desse modo sustentada e respeitada pelos cuidados ambientais suficientemente bons demarca inicialmente o lugar do brincar e, numa crescente complexificação e sofisticação, o lugar da experiência cultural, o lugar em que vive enfim o ser humano. Assim, o espaço potencial, configurado pela transicionalidade, constitui-se num limite que separa as realidades interna e externa ao mesmo tempo em que as une, determinando portanto uma continuidade infinita entre elas. Em termos psíquicos, o sucesso desses processos significam no mínimo o engendramento de um espaço psíquico pessoal unificado em termos narcísico-identitários e com o qual é bom entrar em contato. Em Green (1982, 1988, 1993), a ideia de limites psíquicos é enfatizada sob uma ótica territorial caracterizada por um duplo-limite, uma face interna e outra intersubjetiva, e sobre a qual incidem as dimensões espaço-temporais: a dimensão espacial devendo-se principalmente à configuração de um espaço psíquico pessoal, diferenciado e capaz de comportar as produções subjetivas como o pensar; a dimensão temporal, por sua vez, considerando-se principalmente o tempo suportável de espera para as respostas às exigências de satisfação e o ritmo suficientemente bom entre presença/ausência do objeto. Nesse sentido, a psique constitui-se ela própria como uma zona intermediária, transicional, entre o eu e o outro. Ganha relevo na elaboração greeniana a teoria do trabalho do negativo em seu aspecto fundante e estruturante do psíquico no contexto da relação mãe-bebê. Embora o vocábulo negativo seja fortemente polissêmico, a sua acepção que mais interessa à psicanálise diz respeito à constituição de uma ausência latente, ou seja, algo que mantém sua existência potencial mesmo
4 que não seja mais perceptível. Assim, de modo geral, o trabalho do negativo em psicanálise abrange o conjunto das operações psíquicas que exercem uma função de negativização tais como a excorporação, o recalcamento, a alucinação negativa, a clivagem e a negativa, operações costuradas pelo trabalho de ligação/desligamento empreendido pelas pulsões de vida e de morte. No que se refere especificamente à relação mãe-bebê, os mecanismos negativizadores são essenciais para realizar o apagamento do objeto primário e a sua internalização como estrutura psíquica, desenhando então o espaço psíquico pessoal. Nesse sentido, é imprescindível a suportabilidade da mãe em ser esquecida, ou seja, em aceitar estar presente/ausente no que diz respeito ao ponto de vista do bebê. Quanto à função do objeto na conjuntura das relações primárias, este deve, a princípio, estimular a pulsão para despertá-la e, ao mesmo tempo, contêla, além de deixar-se substituir adequadamente por outros objetos. Na medida em que isto ocorre de modo suficientemente bom, sua presença não é percebida pelo bebê, caracterizando-a então qualitativamente como uma presença potencial, o que favorece finalmente o apagamento do objeto primário e sua transformação em estrutura enquadrante da psique. Finalizando Os transtornos ao longo do processo de diferenciação eu/não-eu, bem como do estabelecimento dos limites psíquicos como um todo, podem ser de diferentes ordens e frequentemente encontram-se associados aos excessos do ambiente, os quais, por excesso de ausência ou de presença, produzem igualmente no eu a experiência de excesso. Consequentemente, além de uma dupla angústia, de intrusão e de separação, o duplo-limite se constitui apenas fragilmente ou muito prejudicado, na maioria das vezes, esburacado ou achatado e despontencializado quanto à transicionalidade, sem área palpável entre o eu e o outro que proporcione alívio à tensão que naturalmente já se espera no confronto da realidade psíquica com a realidade externa, ou, dito de outro modo, que favoreça a simbolização (cf. Anzieu, 1985). Como efeito, identifica-se uma tendência a transtornos na esfera do pensamento e a passagens ao ato, assim como um excesso de desprazer e desapontamentos atrelados à ênfase da meta desobjetalizante empreendida pela pulsão de morte, responsável por desinvestimentos maciços e clivagens na psique (cf. Damous, 2007). A delicadeza que atravessa a constituição dos limites psíquicos é portanto fundamental na compreensão das patologias limítrofes. E, no âmbito dessa discussão, certamente há subsídios
5 para uma concepção contemporânea acerca dos transtornos alimentares. Nesses casos, com espaço psíquico pessoal desfavorável à simbolização, o corpo passa ser o recurso mais primitivo como área de manobra frente à presença maciça do objeto. Referências bibliográficas: ANZIEU, D. (1985) O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. CARDOSO, M. R. e GARCIA, C. A. Entre o eu e o outro: espaços fronteiriços. Curitiba: Juruá, 2010. DAMOUS, I. Dor e esperança: duas faces da solidão a partir da experiência precoce com o objeto primário. Cadernos de Psicanálise SPCRJ (Solidão). Rio De Janeiro, v.23, n.26, p.163-179, 2007. FREUD, S. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, p.233-244, 1996. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIV, p.117-144,1996. (1925) A negativa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIX, p.263-269, 1996. GREEN, A. (1982) La Double limite. Nouvelle Revue de Psychanalyse (Le trouble de pensée). Paris: nº 25, p.267-283, 1982. (1988) Sobre a loucura pessoal. Trad. Carlos Alberto Pavanelli. Rio de Janeiro: Imago, 1988. (1993) O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed, 2010. WINNICOTT, D. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad. Irineo C. Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. O brincar e a realidade. Trad. José Octávio de A. Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975.