GUERRA DO PARAGUAI: escravidão e cidadania na formação do exército



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Transcrição:

GUERRA DO PARAGUAI: escravidão e cidadania na formação do exército

Agradecimentos Este livro foi elaborado entre maio de 1988 e março de 1989. Sua realização teria sido impossível sem a colaboração do AFS Programas Interculturais para o Brasil, organização a cujos quadros profissionais pertenço. Durante todo esse período, tive livre acesso a seu computador para a edição do texto em fins de semana e horários posteriores ao expediente. Entretanto, meu agradecimento vai em especial para Elizabeth Ramos Albuquerque, Superintendente do AFS por ocasião do grosso do trabalho de pesquisa, que, além da força de amiga, permitiu-me alguns períodos de licença para que pudesse realizar pesquisas em instituições com horários de funcionamento coincidentes com aqueles do AFS. Outros amigos foram meus companheiros nesta empreitada Cunca Bocaiúva e Sandra Mayrink Veiga demonstraram, durante o trabalho, o mesmo carinho e apoio que têm marcado nossa amizade já ao longo destes muitos anos. Inúmeras foram as sugestões que surgiram de nossas conversas. A força de Helena Gasparian foi decisiva na reta final, especialmente para a publicação do livro. Liliane Gnocchi da Costa Reis é a companheira que, mais que eu, teve sempre a certeza de que o livro sairia. Com ela discuti as primeiras fotos pesquisadas, o primeiro texto. Cada idéia teve sua atenção e dedicação, assim como o texto em seu aspecto de estilo e clareza. Se não fosse por isso, meu amor seria mais que o suficiente para que eu lhe dedicasse este livro.

Chegou a hora de fazer alguma justiça, tão pouco quanto a de que somos capazes, à raça que tem feito gratuitamente no Brasil tudo quanto ele é, a raça que não paga somente o subsídio dos representantes da nação, mas paga, também, a alta lista civil da famí1ia imperial; paga ainda os juros da nossa dívida em Londres, e quando a honra da nacionalidade brasileira corre risco, paga com seu sangue larguíssimo tributo. Joaquim Nabuco Discurso de 30 de julho de 1885. Citado por Evaristo de Moraes, A Campanha Abolicionista, Editora Universidade de Brasília, 2 a. ed., 1986.

Índice Introdução I - Dimensões da guerra Os recursos empregados Forças empregadas e perdas humanas As perdas materiais II - Antecedentes: crítica às versões revisionistas sobre as razões do conflito A versão tradicional O revisionismo A versão da unidade da América hispânica A versão da intervenção imperialista III - O império às vésperas da guerra do Paraguai IV - A guerra do Paraguai e o Brasil: a formação de um exército nacional e o fim do Império A organização militar do Império antes da guerra do Paraguai A organização de um exército nacional O exército e os escravos O exército e as camadas populares livres Os voluntários da Pátria O exército e as camadas médias V - O exército imperial em campanha: nacional e escravista (I) O envio de tropas ao Paraguai O cotidiano da tropa em campanha VI - O exército imperial em campanha: nacional e escravista (II) Os critérios de bravura Promoções, condecorações e disciplina no exército imperial: a marca escravista VII Conclusão

Apêndice: Cronologia das operações de guerra Bibliografia

Introdução Num país em que a fome e a miséria da imensa maioria da população estão juntas com o analfabetismo, o resgate da memória histórica parece um objetivo distante, pouco prático e quase inatingível. A história foi, durante muito tempo, o ofício de eruditos refinados cujo trabalho recuperou e muitas vezes até criou uma memória oficial: a memória de fachada, de nossas instituições, tão civilizadas e tão distantes do cotidiano do povo, dos grandes vultos de discursos pomposos, dos grandes feitos. Enfim, uma memória que, aclarando a vida das elites, envergonhada destas tristes paragens pouco européias, encobria a realidade do povo miserável. Aqui e ali, era possível, devido ao trabalho de poucos ou às frestas nas cortinas de veludo dos salões, vislumbrar o cotidiano popular, a vida e o lazer dos esquecidos. Quando se começou a tentar conhecer e compreender nossa história mais a fundo, as atenções voltaram-se para as estruturas econômicas, os grandes movimentos políticos. Pouco a pouco, entretanto, a historiografia moderna descobre novos temas do mundo do trabalho e do cotidiano e coloca sob novo prisma episódios só conhecidos por via de sua carapaça oficial. Muito ainda resta por ser feito. Há áreas, temas, acontecimentos e episódios inteiros que permanecem obscuros. A história militar é um desses temas. Não é de estranhar que os historiadores modernos dêem mais atenção ao papel dos militares na história política do Brasil do que à história militar propriamente dita e à relação desta com a vida de nosso povo. A história militar é patrimônio da memória oficial ou então tema técnico da corporação militar, igualmente pródiga em oficialismos e elogios. Tanto os conflitos internos como as guerras externas são pouco conhecidos, e quase nada se sabe sobre como esses acontecimentos foram vivenciados e protagonizados por soldados e pela massa da população. A guerra do Paraguai é um dos muitos fatos esquecidos de nossa história: ou é tratada pela historiografia oficial, e, como tal, perde interesse, ou não é tema daqueles que se dedicam à revisão de nossa formação histórica. Paradoxalmente, quando é lembrada e abordada, causa imediatamente polêmica: o Brasil é apresentado como agente civilizatório na região ou como agente do imperialismo inglês; nossas tropas são as mais bravas ou as mais covardes; o Paraguai era governado por um tirano ou por um estadista esclarecido e antiimperialista; libertamos o Paraguai ou exterminamos sua população. O quadro ainda fica mais complicado quando sabemos que até recentemente o Itamarati impediu o exame de documentos sobre o conflito, em seu poder (o que, para bem da verdade, é extensivo a documentos referentes a outros episódios de nossa história 1 ). Recentemente, diversos autores têm se dedicado a demolir os mitos oficiais da guerra do Paraguai. Não raro, sem prejuízo do enorme mérito de seu trabalho, têm criado outros tantos mitos sobre o conflito: o Paraguai é retratado como uma nação independente do imperialismo, com enorme progresso material e social. O Paraguai sofria influência do imperialismo, ainda que diferentemente de seus vizinhos da região meridional da América do Sul. Devido às peculiaridades de sua formação histórica colonial, baseada nas missões jesuíticas, não se encontrava no centro 1 A atual Constituição determinou a abertura dos arquivos públicos. A abertura dos arquivos entretanto, não revelou muitas novidades como era esperado

seja das atenções coloniais, seja, mais tarde, das atenções imperialistas. Daí a caracterizá-lo como uma nação independente do imperialismo, ou até como uma possibilidade de desenvolvimento autônomo na região, vai uma longa distância. Por outro lado, a estrutura econômica baseada nas missões, o poder de centralização administrativa exercido pela Igreja, o pouco desenvolvimento de uma classe dominante local crioula, proprietária de terras ou comerciante, iriam permitir que o Estado jogasse um papel decisivo na organização econômica paraguaia após a independência. Foi através deste Estado que uma parcela da classe dominante, travestida de alta burocracia estatal, exercia seu poder econômico sobre uma massa da população organizada comunitariamente. Essa parcela da classe dominante, de origem crioula, era, inclusive, dona de largas extensões de terra, além de usufruir, via honras e regalias ligadas às funções públicas, de boa parte do excedente econômico. O Estado paraguaio, portador de um nacionalismo precoce, é apresentado por alguns autores como tendo sido um legítimo defensor dos interesses de toda a nação contra o imperialismo. Leon Pomer 2 é o mais expressivo deles, mas também podemos citar Júlio José Chiavenatto 3. Esse Estado, contudo, herdeiro de uma estrutura centralizada da época colonial, era autoritário e garantia uma estrutura social desigual, ainda que bastante diversa da de seus vizinhos, em especial do Brasil escravista. É fato, entretanto, que o Paraguai, na primeira metade do século XIX, não era um país totalmente ajustado às regras de livre comércio que facilitavam a penetração da Inglaterra nas antigas áreas coloniais ibéricas. Isto mais por suas particularidades históricas do que por uma opção de resistência ao imperialismo que penetrava na região. Há, ainda, muita especulação e, principalmente, muita simplificação sobre o papel do imperialismo inglês, apresentado como a mão oculta por trás das ações da Tríplice Aliança. Se é evidente que a Inglaterra considerava as práticas monopolistas do Paraguai prejudiciais a seu comércio, é evidente também que seu interesse principal não estava concentrado nessa área secundária da região platina. Ver a guerra do Paraguai como uma necessidade do imperialismo inglês para garantir o livre comércio é, por um lado, superestimação grosseira do nacionalismo paraguaio e da cobiça inglesa e, por outro, uma subestimação dos interesses próprios da Argentina e do Brasil. Não é, no entanto, nossa intenção nos determos sobre as particularidades da formação histórica do Paraguai e, tampouco, sobre a região platina como um todo (ainda que, mais tarde, voltemos a abordar essa questão). O trabalho que se segue concentra sua atenção principalmente sobre o Brasil e a guerra e sobre as repercussões sociais e políticas do conflito no período de crise do Império e da economia escravista. Particularmente, se concentra sobre a formação do exército durante a guerra em sua relação com as camadas médias, setores populares livres e escravos. Buscaremos ver, com mais detalhes, como, no interior desse drama, formou-se no Brasil uma instituição que desempenharia um papel vital em nossa história: o Exército Nacional. 2 Leon Pomer, A Guerra do Paraguai: A Grande Tragédia RioPlatense, São Paulo, Global, 1980, e Paraguai:Nossa Guerra Contra Esse Soldado, São Paulo, Global, s.d. 3 J. J. Chiavenatto, Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., 1979.

No capítulo I, trataremos de algumas informações que revelam a magnitude da guerra do Paraguai fato nem sempre merecedor do necessário relevo em relação aos países envolvidos. Em seguida, no capítulo II, discutiremos as razões do conflito a partir da crítica a representantes da historiografia cada vez mais difundida que se opõem às versões tradicionais sobre os antecedentes da guerra. No capítulo seguinte, prosseguiremos com a análise do mesmo tema. Para tanto, procuraremos inserir as motivações brasileiras em sua política externa, notadamente em relação à região platina, na perspectiva mais ampla do desenvolvimento da sociedade escravista imperial. O processo de mobilização e recrutamento para a guerra, em seu aspecto social, no que diz respeito a sua relação com os escravos, setores livres populares e camadas médias, se constitui no tema central deste trabalho e é tratado no capítulo IV. Tentaremos delinear como o Exército Nacional, que se formava como uma necessidade do Estado Imperial, reproduziu e recriou no seu interior as contradições sociais do escravismo brasileiro. Nos capítulos V e. VI, analisando o envio das tropas ao Paraguai, seu cotidiano, suas formas de combater, os critérios de determinação dos atos de bravura, as políticas de promoções e de manutenção da disciplina e, finalmente, as relações entre oficiais e soldados, procuraremos avaliar como essas contradições não puderam ser abafadas na corporação militar, agravando as tensões internas delas decorrentes. Finalmente, há um apêndice descritivo e cronológico dós principais acontecimentos militares. Aqueles que desconhecem o andamento das operações de guerra podem achar necessário recorrer a esta descrição no sentido de melhor compreender as referências feitas a fases da guerra no decorrer do texto principal. O gigantismo do conflito impõe um tratamento mais aprofundado no estudo da guerra e de suas conseqüências para toda a região. A guerra do Paraguai requer o tratamento de drama e não de opereta, essencial se quisermos (todos nós do Cone Sul) ter uma consciência maior de nossa história.

I Dimensões da guerra A primeira tarefa com que nos deparamos quando analisamos a guerra do Paraguai é a de estabelecer a magnitude do conflito: sua dimensão em seu contexto histórico, o esforço social requerido, suas conseqüências políticas, sociais e econômicas e seu significado em termos de desperdício de recursos materiais e humanos. A guerra do Paraguai foi o conflito em larga escala de maior duração no continente americano, superando inclusive a guerra de Secessão nos Estados Unidos 1. Teve a duração total de quase seis anos, estendendo-se de 11 de novembro de 1864 (tomada do vapor Marquês de Olinda pelos paraguaios) a 1 de março de 1870 (morte de López em Cerro Corá). Os recursos empregados Ao considerar a década de 60 do século XIX como uma década de sangue, o historiador inglês Eric Hobsbawm levanta três fatores que teriam contribuído nesse sentido: 1. a expansão do capitalismo, multiplicando tensões no mundo não europeu e nãocapitalista; 2. a paz interna que se seguiu ao aplacamento das revoluções de 1848 na Europa, que permitiu o recurso à guerra a governos estáveis para a consecução de determinados objetivos no plano externo; 3. a nova tecnologia, que permitiu a mobilização de recursos humanos em escala e rapidez até então desconhecidas e a utilização de recursos materiais qualitativamente mais modernos e eficazes 2. A guerra do Paraguai, pelo menos no que diz respeito à participação brasileira, como veremos a seguir (capítulo III), guarda uma íntima relação com esses três fatores. Em primeiro lugar, o conflito esteve inserido ainda que mais indiretamente do que se supõe no contexto geral de expansão do capitalismo da época, especificamente do capitalismo britânico na região platina. Em segundo lugar, analogamente aos países europeus, o conflito se seguiu a um período de consolidação e estabilidade do governo imperial no Brasil. Em terceiro lugar, o governo brasileiro lançou mão de uma série de recursos tecnológicos modernos e aqui nos afastamos do historiador inglês, que considera a guerra do Paraguai como um conflito pré-tecnológico em seu esforço de guerra. Finalmente, assim como o conflito que dividiu os Estados Unidos, a guerra do Paraguai pode ser definida como uma guerra total (uma das primeiras da história): um conflito que mobilizou recursos humanos e materiais em larga escala das sociedades nacionais nele envolvidas. 1 A guerra civil americana, seja por sua contemporaneidade com o conflito platino (1860-1864), seja por suas dimensões, será constantemente utilizada como parâmetro de comparação ao longo do texto. 2 EricJ. Hobsbawm, A Era do Capital 1848-1875, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3ª ed., 1982, pp. 96-97.

No que toca a este último aspecto, ele é absolutamente verdadeiro em relação ao grande perdedor, o Paraguai. O conjunto de sua população foi mobilizado pelo esforço de guerra e também sofreu diretamente as conseqüências do conflito, e não apenas uma parcela ou a totalidade de sua população adulta masculina. O conjunto dos recursos materiais nacionais foi mobilizado de forma centralizada pelo Estado e totalmente despendido no decorrer das operações. Como vencido, o Paraguai terminou a guerra exaurido. Em relação aos países da Tríplice Aliança Brasil, Argentina e Uruguai, a mobilização para a guerra guardou aspectos bem distintos. O Uruguai, recém-saído de um conflito civil, teve uma presença simbólica no teatro de operações, tanto numérica como materialmente. Mesmo esta presença, devido à instabilidade presente no país e à forte oposição interna ao envolvimento no conflito, foi decrescente ao longo do tempo. A Argentina, no início da guerra, contou com um forte contingente em operação, 25 mil soldados. Entretanto, a oposição das províncias ao envolvimento no conflito (como parte de uma oposição maior ao crescente domínio de Buenos Aires sobre o resto do país) levou também à redução constante dos efetivos militares em operação no teatro da guerra, em particular, após a expulsão dos paraguaios do território argentino e a possibilidade de uma nova invasão ter sido completamente afastada. No período da guerra, a Argentina enfrentou uma série de conflitos internos decorrentes da centralização do poder efetuada pela burguesia de Buenos Aires em detrimento do poder local da classe dominante e dos estancieiros das demais províncias, havendo mesmo confrontos armados. Em 1869, havia apenas 4 000 argentinos em armas no Paraguai. Do ponto de vista material, a Argentina não só não teve seus recursos despendidos, como também obteve enormes ganhos com o conflito, como grande fornecedora das tropas da Tríplice Aliança. O Brasil, ao se iniciar a guerra, já havia concluído um longo processo, marcado por uma série de conflitos internos regionais, que resultara na implantação de um poder centralizado 3. O fato de esse poder já estar consolidado permitiu uma formidável mobilização de recursos materiais (principalmente) e humanos. Mesmo tendo uma parte relativamente pequena e pouco povoada de seu território afetada diretamente pelas operações militares, todo o país foi mobilizado, ainda que em graus diferentes, para a campanha. O poder central, que já anteriormente tinha uma presença marcante na vida nacional, fortaleceu-se ainda mais como elemento capaz de captar, organizar e empregar recursos humanos e materiais necessários à condução da guerra. Forças empregadas e perdas humanas Durante todo o conflito, nunca mais que cem mil soldados estiveram em operação. Alguns autores estimam o exército paraguaio no início da guerra em cerca de 80 000 3 Em 1848, terminava em Pernambuco a última das grandes revoltas que agitaram o Império brasileiro na primeira metade do século XIX, a Revolução Praieira. O governo imperial conheceria então um período de estabilidade política com a alternância de conservadores e liberais nos diversos gabinetes que se sucederam.

homens 4. Se esse dado for correto, apenas em sua primeira fase (invasão de Mato Grosso, Corrientes, Entre Rios e Rio Grande pelos paraguaios) o número total de soldados mobilizados estaria em torno de 150 000. No restante do conflito, em seu teatro de operações principal ao longo do rio Paraguai, o contingente total de forças empregado esteve sempre em torno de 60 000 soldados. A Tríplice Aliança, com o exército brasileiro como força majoritária (pelo menos 2/3 do efetivo total aliado), esteve sempre em superioridade numérica. O exército paraguaio, depois da batalha de Tuiuti, nunca foi superior a 20 000 soldados. As forças da Tríplice Aliança, por sua vez, estiveram sempre em torno de 30 000 homens, em sua maioria, brasileiros. A manutenção desses contingentes ao longo de quase seis anos de conflito significou para o Paraguai a mobilização de toda a sua população masculina com idade superior a 10/12 anos de idade e inferior a 60. Como não há estatísticas certas sobre a realidade demográfica do Paraguai à época do conflito, é difícil determinar o que isso representou em números relativos. As estimativas em torno da população do país, ao iniciar-se o conflito, variam de 700 000 a 1 200 000 pessoas, sendo algo em torno do primeiro número o mais provável. As perdas paraguaias (militares e civis) variam, de acordo com a estimativa sobre o número total de habitantes do país, entre 500 000 e 1 000 000 de mortos. Em qualquer hipótese, portanto, a guerra significou o sacrifício quase total por mortes em combate, assassinatos, epidemias e fome da população. O certo é que, ao final do conflito, 95 % da população masculina do país haviam desaparecido. A mobilização militar paraguaia envolveu praticamente o conjunto da população masculina, que pereceu nos inúmeros combates ou vítima das epidemias e péssimas condições de higiene, habitação e proteção contra o frio e a fome que marcavam o cotidiano dos exércitos na época, em especial do exército paraguaio. As perdas uruguaias foram praticamente irrelevantes em relação ao contingente populacional do país. O Uruguai, apesar de ter sido o estopim da guerra, de fato, pouco esteve envolvido nela. Os argentinos, de acordo com Leon Pomer 5, perderam 18 mil soldados no conflito, um número expressivo relativamente à população do país de aproximadamente 1 500 000. Em relação ao Brasil, também não há estatísticas precisas, seja sobre o número total da população (o primeiro censo só seria realizado em 1872), seja sobre as perdas militares. O general Paulo de Queiroz Duarte 6 cita a mobilização de 135 580 soldados ao longo do conflito para uma população masculina de 4 903 630, estimada em 1865. Há quem considere 200 000 o total mobilizado para 139 000 efetivamente enviados aos campos de batalha. 7 As perdas, considerando-se as mortes em combate, por epidemias e seguramente um percentual elevado de perdas entre os feridos, devido às péssimas condições sanitárias e de 4 J. J. Chiavenatto (Os Voluntários da Pátria e Outros Mitos, São Paulo, Global, 1983), estima o exército paraguaio no início do conflito em 50 000 soldados. O número de 80 000 significaria cerca de 60 000 mobilizados ao início do conflito e outros 20 000 de reserva. 5 Leon Pomer, A Guerra do Paraguai: A Grande Tragédia RioPlatense, op. cit. 6 Gen. Paulo de Queiroz Duarte, Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1981. 7 General Antônio de Souza Júnior, "A Guerra do Paraguai", in Sérgio Buarque de Holanda (org.), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, voi. 3, São Paulo, DIFEL, 1987.

atendimento dos hospitais, não foram nunca inferiores a 50 000 homens. Apenas em combate que nas guerras da época não era a principal causa de mortalidade entre a tropa, segundo o general Queiroz Duarte, foram 23644 soldados, só até a segunda fase da guerra. Baseado nesses dados, o mesmo autor contesta as estatísticas oficiais da Repartição dos Negócios da Guerra para 1870, de 23 917 mortos em toda a guerra. Alguns, como Dionísio Cerqueira (Reminiscências da Campanha do Paraguai), falam em 100 000 mortos, a maior cifra apontada. Pode-se considerar, aceitando as estimativas mais baixas em termos de população paraguaia, que o número de mortos total ficou em torno de 600 mil. Esta cifra é semelhante ao número de mortos (também em torno de 600 mil) da guerra civil americana, para continuarmos com nosso parâmetro de comparação. Entretanto, a população total dos Estados Unidos, incluindo-se a massa escrava, era de cerca de 22 milhões no Norte e 9 milhões no Sul. Estes números dão uma idéia da dimensão relativa da guerra do Paraguai. As perdas materiais A mobilização paraguaia para a guerra, como já dissemos, foi total. Na verdade, o Paraguai já vinha, mesmo anteriormente, canalizando recursos nacionais crescentes para a montagem de um aparelho militar desproporcionalmente grande e complexo em comparação com os recursos do país. Esse fato explica o sucesso das armas paraguaias na fase inicial do conflito. Com efeito, toda a cartada estratégica do Paraguai estava baseada nessa mobilização e preparação anteriores ao conflito. Assim como em relação ao seu manancial humano, as perdas materiais paraguaias foram completas. O país terminou a guerra arrasado, tendo suas terras cultiváveis abandonadas, seu rebanho desaparecido e as poucas manufaturas, fundições, estradas de ferro, telégrafos, etc. destruídos. Os recursos materiais acumulados (moeda, ouro e outras formas de riqueza) foram igualmente consumidos ou saqueados. Finalmente, o Paraguai foi ainda obrigado a pagar uma dívida de guerra ao Brasil até o ano de 1943. Suas perdas territoriais não foram menores: todas as terras em litígio com o Brasil na fronteira com Mato Grosso e parte do Chaco ocidental para a Argentina. Desnecessário dizer ainda que o desfecho da guerra trouxe a tutela militar e política brasileira, juntamente com a subordinação econômica, com conseqüências que se estendem até nossos dias. Para o Brasil, o outro grande contendor e vencedor da guerra, a vitória teve um gosto amargo. Além das inúmeras conseqüências políticas e sociais que veremos adiante, a condução da guerra esgotou as finanças públicas e acelerou o processo de endividamento com bancos ingleses, que já vinha acontecendo anteriormente. A formação de uma esquadra fluvial moderna, capaz de operar no rio Paraguai e na bacia do Prata, responsável última pelo desequilíbrio estratégico favorável ao Brasil na região, significou um investimento financeiro de monta para o país. A formação e manutenção de um exército numeroso, bem armado e abastecido, ao contrário dos efetivos militares até então empregados nos conflitos platinos, que podiam viver do terreno ocupado, exigiu também recursos ponderáveis do governo imperial.

Diferentemente de conflitos em escala semelhante envolvendo nações centrais do sistema capitalista, o término da guerra e a própria mobilização nacional para ela não foi um trampolim para uma fase de expansão econômica do vencedor. Comparando-se a guerra do Paraguai com o outro grande conflito total contemporâneo no continente, vemos que o fim da Guerra de Secessão americana, ao implicar o estabelecimento da hegemonia clara do Norte capitalista, significou a possibilidade de sua expansão econômica.

II Antecedentes: crítica às versões revisionistas sobre as razões do conflito Entender as razões que levaram à guerra entre o Brasil, Argentina e Uruguai, por um lado, e o Paraguai, por outro, não é tarefa simples. Sobretudo, no caso brasileiro. Não é objetivo deste trabalho discutir o assunto a fundo. A abordagem que faremos sobre os antecedentes da guerra visa apenas permitir uma maior compreensão de nosso tema principal: a formação de um exército nacional profissional, como demanda da guerra, e suas relações com a sociedade, em particular, com os escravos e as camadas populares. Entretanto, é inevitável não nos furtarmos a algumas considerações a respeito da questão das origens do conflito. Estas considerações se prenderão basicamente a dois aspectos: a crítica às versões correntes sobre as razões da guerra, principalmente, a crítica da historiografia revisionista, e, no próximo capítulo, a inserção da intervenção brasileira na região platina em uma determinada análise mais ampla da natureza da sociedade imperial. Se os estudos tradicionais sobre a guerra pecam por um excessivo oficialismo e factualismo, por sua vez, as versões revisionistas da história do conflito tendem a simplificações e nem sempre estão embasadas em investigações mais profundas. Os acontecimentos são muitas vezes adaptados a esquemas interpretativos extremamente genéricos e outros tantos fatos são deixados de lado 1. A versão tradicional De acordo com a visão tradicional do conflito, este foi basicamente decorrente da agressividade de Solano López, que tinha pretensões expansionistas ou hegemônicas na região platina. As razões para essa pretensão não são muito explicadas, ficando por conta da vaidade pessoal e da megalomania do governante paraguaio. A alegação do governo paraguaio de que entrava em guerra contra o Brasil a pedido do governo uruguaio e contra a intervenção de tropas imperiais na República Oriental é vista quase que a título de pretexto para que López iniciasse sua aventura militarista 2. 1 Como exemplos da versão tradicional poderíamos citar toda a literatura militar, especialmente Tasso Fragoso, A História da Guerra Entre a Triplice Aliança e o Paraguai, as obras clássicas de História do Brasil (Pedro Calmon, História do Brasil). Na trilha da revisão crítica, temos Chiavenatto, o mais conhecido entre nós (Guerra do Paraguai, Genocídio Americano), que em grande parte reproduz a visão de Leon Pomer (A Guerra do Paraguai, A Grande Tragédia Rioplatense). 2 Em 1864, alegando defender os interesses de cidadãos brasileiros no Uruguai contra os abusos que estes vinham sofrendo por parte da população e das autoridades, um exército brasileiro, sediado no Rio Grande do Sul, invade o território oriental e presta apoio ao caudilho colorado Venancio Flores, então em revolta contra

Por sua vez, a intervenção brasileira na guerra civil uruguaia 3 é explicada de forma insuficiente. Ou se considera que realmente ela visava interromper os agravos sofridos por brasileiros no Uruguai, ou, no máximo, estabelece-se uma ligação entre ela e os interesses de estancieiros riograndenses da fronteira, em constante conflito com seus rivais da Banda Oriental. Aqueles estariam interessados em uma intervenção militar brasileira no sentido de pilhar as estâncias uruguaias, seja para auferir proveitos diretos com a operação, seja para debilitar a concorrência oriental no mercado brasileiro de charque. A versão tradicional enfatiza o ataque paraguaio ao Brasil e dá pouca importância ou cobertura à intervenção militar brasileira no Uruguai. Quando não apresentada como uma questão independente, esta é mostrada como um último recurso do governo imperial ao não ter atendidos seus pedidos de reparação às agressões sofridas por brasileiros no Uruguai. Uma nota do representante uruguaio ao conselheiro Saraiva, então em missão diplomática na região platina, a propósito dos incidentes fronteiriços e maus-tratos a brasileiros residentes no Uruguai, deixa clara a atitude imperialista brasileira de buscar um pretexto a qualquer custo para uma intervenção militar. S. Excia. O Conselheiro Saraiva evocou, para pintar a situação insuportável em que viviam os brasileiros domiciliados neste país, as reclamações feitas em seu favor por seu Governo desde 1852, para não fazer, diz S. Excia., referência a uma época anterior. (...) Em doze anos, quarenta mil habitantes da República, mira de perseguições diárias ininterruptas, teriam dado lugar com razão, observem-se os infinitos incidentes da vida social quer em relação de particular com particular, quer de governado a governante, a sessenta e três reclamações da parte do Governo Imperial! - em uma população de mais de quarenta mil almas, distante, confiante, mais exposta que as demais a atos indevidos de autoridades subalternas do Governo central, aconteceram sessenta e três casos dignos de reclamação (cinco por ano) as quais por estar pendente sua resolução teriam provado uma situação intolerável e tornado forçosa uma invasão e um levante. Julgue-se, seguindo esta lógica, o que teria acontecido no Império vizinho se, em suas condições de maior desenvolvimento administrativo, a população oriental ali residente e que é de algumas centenas e não milhares, desse motivo, em um período muito menor, a quarenta e oito reclamações do Governo a seu favor. 4 o governo blanco. Este, por sua vez, pede auxílio ao governo paraguaio, que já havia manifestado suas preocupações quanto a uma intervenção militar brasileira na crise uruguaia junto ao governo imperial. Em 11 de novembro de 1864, o Paraguai apreende o vapor brasileiro Marquês de Olinda, que se dirigia à província de Mato Grosso navegando pelo rio Paraguai, e declara guerra ao Brasil. Em seguida, pede permissão ao governo argentino para que as suas tropas pudessem cruzar o território argentino para ir em auxílio do governo uruguaio e invadir o Brasil. Ao ter seu pedido negado pelo governo Mitre pró- Venancio Flores e hostil ao Paraguai López invade a Argentina. Essa decisão baseava-se em uma suposta adesão à sua causa por parte de Urquiza, chefe político das províncias de Entre Rios e Corrientes (o que não aconteceu). 3 Na verdade, a intervenção brasileira se dá como um dos fatores e não de pequeno peso na instigação da guerra civil, apoiando e patrocinando a volta de Venancio Flores ao Uruguai, desafiando o governo estabelecido. 4 Citado por Lidia Besouchet,José Maria Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Ensaio Histórico-Biográfico, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 88

No capítulo seguinte, voltaremos a tratar das motivações do governo imperial em sua política platina a partir de 1850. Por hora, voltemos nossa atenção à historiografia, que, revendo as origens do conflito, efetuou uma crítica à versão oficial e à historiografia tradicional da guerra. O revisionismo A revisão das causas da guerra do Paraguai ganha força nas obras de autores platinos a partir, basicamente, do final da década de 50. Em comum, todos fazem uma inversão da história oficial e buscam revelar um Paraguai totalmente distinto daquele representado pela figura do tirano Solano López. Sublinham ainda interesses e motivos diretamente econômicos e expansionistas nas ações dos governos aliados. Essas versões apresentam análises que partilham pontos de vista semelhantes e ressaltam aspectos comuns do conflito. O Paraguai é apresentado como uma próspera república portadora de uma via original de desenvolvimento econômico e social. Desenvolvimento este que teria, por sua vez, como traço marcante, a resistência e independência em relação à penetração imperialista inglesa, que predominava no restante da região. No período imediatamente anterior e durante o conflito; à grandeza e ao heroísmo que caracterizaram a resistência paraguaia, são contrapostas a subserviência em relação à Inglaterra, a tibieza e a mesquinhez do comportamento das forças da Tríplice Aliança. Ainda que comungando basicamente o mesmo ponto de vista, para efeitos de análise, distinguiremos duas das mais conhecidas versões revisionistas, a de José Maria Rosa e a de Leon Pomer. A versão da unidade da América hispânica No prólogo da primeira edição de seu La Guerra del Paraguay y las Montoneras Argentinas, em 1964, José Maria Rosa assim resume os fatos de que trataria na coletânea de artigos que então publicava sob a forma de livro: O ocaso da nacionalidade poderia chamar-se, com reminiscências wagnerianas, esta tragédia de vinte anos que ESFACELOU a América espanhola e lhe tirou a possibilidade de integrar-se em uma nação; ao menos durante um longo século que ainda não transcorreu. Foi a última tentativa de uma grande causa, começada por Artigas nos momentos iniciais da Revolução, continuada por San Martin e Bolivar ao cristalizar-se a independência, restaurada pela habilidade e energia férrea de Rosas nos anos do Sistema Americano e que teria em Francisco Solano López sua continuidade posterior. Causa da Federação dos Povos Livres contra a oligarquia diretorial de uma massa nacionalista que busca sua unidade e sua razão de ser frente a minorias estrangeirizantes que ganhavam em manter a América débil e dividida; da própria determinação opondo-se à ingerência forânea; da pátria contra a antipátria, enfim, que

a historiografia colonial, da qual padecemos, deforma para que os povos hispânicos não despertem da letargia que lhes é imposta. Causa tão velha como a América. Narrála é escrever a história de nossa terra, e separar os grandes americanos das pequenas figuras das antologias escolares (grifos do autor). 5 A citação, apesar de longa, é válida porque nela estão expressos os principais elementos dessa versão da guerra. O Paraguai de Solano López é considerado como o herdeiro de uma causa da unidade hispano-americana que se manifestava numa solução de continuidade desde a época da independência. Os opositores dessa causa são principalmente determinadas oligarquias que lucravam e lucram com a influência e intervenção externas. 6 Mais tarde, os grandes vilões da história ganharão nomes definidos: a classe dominante portenha, a Inglaterra e o Brasil imperial. Finalmente, a própria história dos fatos narrados é apresentada como um prolongamento da mesma luta, e o objetivo de revisar a versão oficial presente nas antologias escolares é manifesto. O Paraguai não só é apresentado como o paladino da causa da unidade hispanoamericana em continuação às lutas de independência contra o domínio espanhol, como também o precursor de uma via distinta de desenvolvimento sócio-econômico. A República guarani é vista como um Estado nacionalista, antiimperialista, onde a classe dos proprietários de terra, crioulos, havia sido praticamente exterminada e a terra era explorada pelas comunidades guaranis. A existência de algumas manufaturas é considerada como sinal de uma política de desenvolvimento econômico nacionalista e contrária aos interesses do capitalismo inglês. O poder quase que absoluto exercido sobre o aparelho de Estado e sobre o conjunto da sociedade pelos governantes que se sucedem à independência é encarado como um paternalismo benevolente. Era um verdadeiro Estado socialista a paternalista República do Paraguai... 7 Esse socialismo precoce consistia num exemplo de organização econômica, social e política: Era um modelo na América a República paraguaia, onde a vida era sumamente fácil com a única condição de haver-se tido a fortuna de nascer ali e prestar 5 José Maria Rosa, La Guerra del Paraguay ylzas Montoneras Argentinas, Buenos Aires, Hyspamérica, 1986. Os artigos foram publicados na imprensa entre outubro de 1958 e outubro de 1959 6 Antes mesmo desse prólogo, o autor utiliza-se de uma citação de uma carta de Rosas, datada de fevereiro de 1869, em seu exílio em Southampton, a Solano López, na qual lhe confere simbolicamente a espada de San Martin doada por este a Rosas por seus serviços prestados ao país na luta pela independência. 7 José Maria Rosa, op. cit., p. 20

em forma de trabalho manual, de labor intelectual ou de tarefas militares, sua parte de serviço à comunidade 8. Entretanto e diferentemente de outra versão revisionista, a de Leon Pomer, como veremos a seguir, a ênfase de José Maria Rosa está na questão da unidade da América hispânica, particularmente no que diz respeito à região platina. Para ele, o Paraguai de Solano López representava a continuidade de um projeto de uma nação forte e unida na região do rio da Prata de colonização espanhola que teve na era de Rosas na Argentina seu momento máximo. 9 O grande inimigo desse projeto era o Brasil imperial com sua política exterior que continuava o intervencionismo português na região platina. Essa política brasileira de intervencionismo na região contava com o apoio eventual dos comerciantes e das elites de Buenos Aires e também da Inglaterra. O apoio destes dois aliados tinha seu limite no estabelecimento claro e absoluto de uma hegemonia brasileira na região:... o Império chocava-se com dois obstáculos em sua política de expansão: a resistência nativa dos castelhanos, e os diplomatas e navios da Inglaterra que não queriam deixar arrebatar o monopólio, e não tolerariam na América do Sul poder mais forte que o seu. 10 Buenos Aires, por sua vez, livre de seus inimigos internos principalmente os federalistas tinha suas próprias pretensões hegemônicas, ainda que, segundo José Maria Rosa, sob a liderança de Mitre, totalmente subordinadas aos interesses comerciais ingleses. O mitrismo era a ponta-de-lança do colonialismo no Prata, a minoria estrangeirizante que se impunha pela ajuda forãnea e se mantinha pelo engano e o terror. 11 A versão de José Maria Rosa tem o excelente mérito de, em assunto de pleno domínio da historiografia tradicional e oficialista, dar voz aos vencidos. Neste sentido, muito da diplomacia do Império e do governo Mitre é exposto, principalmente, no que diz respeito ao apoio mitrista à insurreição de Venancio Flores contra o governo de Montevidéu e a posterior intervenção militar brasileira na crise uruguaia. Por outro lado, os interesses específicos do Império são bastante caracterizados e, inclusive, em uma certa medida, contrapostos parcialmente, como já vimos na citação anterior, aos interesses imediatos ingleses. A política de estabelecimento de uma 8 Idem, ibidem, p. 21 9 Após uma série de lutas internas, o caudilho federalista Juan Manuel Rosas assumiu o poder em Buenos Aires. Em 1852, após uma intervenção militar brasileira apoiada no caudilho Urquiza, que dominava as províncias de Entre Rios e Corrientes, Rosas foi deposto e exilado. Entretanto, durante seu governo e mesmo representando, ao menos teoricamente, os interesses federalistas em oposição ao unitarismo da classe dominante de Buenos Aires, a unidade argentina deu enormes passos no rumo de sua consolidação. 10 José Maria Rosa, op. cit., p. 25 11 Idem, ibidem, p. 22.

hegemonia brasileira na região platina é bastante discutida, e seu significado não é minimizado por eventuais confluências de interesses com o imperialismo inglês. 12 Se há essa matização em relação ao papel do Brasil nos acontecimentos platinos, tal não parece ser o caso da análise de Rosa em relação à atuação argentina: todo o significado do período Mitre e dos governos subseqüentes para a história da Argentina é praticamente reduzido a uma entrega do país ao imperialismo e aos interesses do capital comercial e bancário de Buenos Aires e estrangeiro. A crítica principal que se pode fazer a essa versão do conflito é a respeito de seu reducionismo que superdimensiona a influência inglesa na região e ignora as motivações específicas dos países diretamente envolvidos. Não se trata, evidentemente, de negar vinculações e subordinações dos grupos dirigentes e classes dominantes e aí incluímos o caso brasileiro 13 latino-americanos a interesses do capitalismo central. Entretanto, reduzir o papel desses grupos e classes e este nos parece o caso em José Maria Rosa no que diz respeito ao mitrismo e à classe dominante portenha ao de prepostos do imperialismo pouco contribui para a elucidação de relações mais complexas e sutis que estão na base da formação efetiva de nossas nacionalidades não idealizadas, mas como realidades concretas. A contribuição e o valor documental que a obra de José Maria Rosa trouxe à compreensão do tema da guerra do Paraguai até então reduzido à monótona sucessão de vitórias militares e causas e efeitos da historiografia oficial é inegável. Contudo, é impossível não considerarmos que há uma utilização bastante acentuada da interpretação dos fatos históricos para objetivos e projetos político-ideológicos da época presente. No caso de Rosa, sua interpretação insere-se no contexto de propostas de desenvolvimento nacionalista, autônomo e antiimperialista para os países latino-americanos, características do final dos anos 50 e início da década de 60. Não se trata, é claro, de negar que toda versão, por maior que seja sua pretensão científica e neutra, do passado é informada pelo e produzida no presente e, portanto, carregada de seus conflitos, dilemas e disputas. Isto seria ingênuo. Em dois pontos específicos José Maria Rosa é simetricamente oposto à historiografia oficial: na eleição do Paraguai de López como paladino de um projeto de unidade hispano-americana na região e na subordinação total da política portenha aos interesses estrangeiros. Nesse sentido, permanece no mesmo nível de debate e de análise pouco profundos. As premissas são simplificadas. Se houve algum projeto de unidade hispanoamericana, ocorreu no período imediato da independência e não correspondeu às realidades regionais que emergiam da crise do sistema colonial. Entretanto, tal projeto ou quimera representou importante papel nos movimentos de independência das regiões do antigo Vice- Reinado do Prata. Estendê-lo, como expressão de realidades e processos sociais da região, para além dos marcos da independência em especial, da argentina é desconhecer a complexidade e a especificidade dos diferentes processos de formação das nações na região. 12 O que acontece com bastante freqüência em Leon Pomer. 13 Como verificaremos, outros autores cometem o mesmo tipo de simplificação ao se debruçarem sobre o papel do Brasil imperial nos conflitos platinos.

No caso do Paraguai, por exemplo, isso não ocorreu. A independência foi uma luta contra qualquer subordinação ao sistema colonial ou a qualquer sistema que implicasse a abertura e a penetração da região ao complexo platino. Estabelecer, como faz José Maria Rosa, que num primeiro momento a independência paraguaia havia sido assegurada também contra a hegemonia portenha e que mais tarde, no período Rosas, tal contradição desaparecera carece de bases documentais. As contradições do Paraguai com o sistema platino eram bem mais amplas do que as contradições internas da história argentina. O projeto de transformação da herança de centralização administrativa colonial em unidade nacional platina carecia de bases sociais e econômicas. Em larga medida, os processos de independência da região se dão contra essa centralização, vista como causa de opressão dos interesses sub-regionais emergentes. O projeto de unidade regional correspondeu, num primeiro momento, a uma necessidade de unificação das forças próindependência contra a reação metropolitana, no período da guerra de libertação do jugo colonial. Passada a conjuntura de risco, afloraram as particularidades, as vontades e interesses das forças sociais sub-regionais. A partir desse momento, um projeto de unidade hispano-americana na região platina passou a corresponder aos interesses da única força sub-regional com interesses no conjunto da região: a burguesia mercantil portenha. Ao identificar a guerra do Paraguai e, em grande parte, o próprio desenvolvimento do país a momentos da história argentina, como o período Rosas e as montoneras 14, José Maria Rosa pouco esclarece as razões de um conflito de tal magnitude. Tem o mérito de pôr a nu o encobrimento da historiografia oficial, que, em larga medida, reproduz o discurso dos próprios governos empenhados no conflito, mas não vai além de reduzir o drama a uma espécie de negociata da classe dominante portenha, de agentes imperialistas ingleses e, ainda que menos caricatamente, da política externa imperial brasileira. A versão da intervenção imperialista Na trilha da revisão da história da guerra, temos ainda a versão para as causas do conflito que foi sugerida por Leon Pomer. Segundo esta versão, o Paraguai, no concerto das nações sul-americanas, era caracterizado por um desenvolvimento próprio. No período imediatamente posterior à independência das nações hispano-americanas, o Paraguai teria seguido um caminho de desenvolvimento original, autônomo, auto-suficiente, nacionalista e, até mesmo, antiimperialista (especificamente contra a Inglaterra). Como exemplos da originalidade desse desenvolvimento histórico são citados a criação de fundições, o monopólio estatal do comércio externo, o surgimento de algumas manufaturas, a quase inexistência de importações, o fechamento do país ao contato com os vizinhos. Entretanto, utilizando-nos de dados do próprio Pomer, 15 vemos que a pauta de importações paraguaias não era muito diferente daquela de seus vizinhos, isto é, importação de manufaturados e exportação de produtos primários (em ordem decrescente de valor): tecidos de algodão e de lã, comestíveis, vinhos, vários, calçados, sedas e ferragens. O 14 Movimentos armados baseados em lideranças caudilhas regionais e que contavam com apoio popular contra o governo central de Buenos Aires 15 Leon Pomer, op. cito

mesmo sucedendo com as exportações: erva-mate, tabaco, couros secos, couros curtidos, vários, laranjas, cortiça e madeira. É verdade, como afirma Pomer, que à exceção do ano de 1852, o saldo da balança comercial foi sempre positivo, o que não altera a natureza da pauta de importações e exportações. 16 É bom lembrar ainda que, a partir da década de 60 até o final do século passado, pelo menos, a balança comercial brasileira também foi positiva, sem contudo significar que o país se afastava da esfera de influência do imperialismo. 17 Por outro lado, a existência de, uma fundição (de Ibicuí), de telégrafo e de estradas de ferro é insuficiente para caracterizar o Paraguai como um país que tivesse um tipo de desenvolvimento econômico que o colocasse fora do contexto geral da região de dependência do capital e do imperialismo inglês. É claro que nesse contexto e sem escapar dele o Paraguai ocupava uma posição periférica, se comparado a seus vizinhos. Isto mais por razões de natureza histórica vinculadas a sua formação durante o período colonial, quando igualmente ocupava uma posição periférica, do que por opções de desenvolvimento pós-independência. O Paraguai, ao contrário de outras regiões da América hispano-portuguesa, não teve grandes plantações tropicais nem consideráveis fazendas de gado. 18 Assim como no caso das missões na Amazônia, a presença colonial no Paraguai deu-se através dos jesuítas, que controlavam as populações indígenas organizadas em comunidadas de produção comunitária. O fato de essas comunidades não terem sido marcadas pela exploração quase absoluta, extensiva e predatória da mão-de-obra característica das regiões escravistas ou das encomiendas, não permite excluir essa forma de organização econômica do quadro geral de exploração colonial. 19 É verdade que as relações dessas regiões periféricas com aquelas de produção principal para exportação foram sempre marcadas por contradições e atritos. Muitas vezes, os colonos no século XVIII, as Coroas também não viam com bons olhos o monopólio da Igreja sobre determinadas regiões da colônia que, em parte, barrava seu acesso seja à exploração da mão-de-obra representa da pelas populações indígenas, seja a exploração direta de determinados produtos. Essas contradições, no caso do Paraguai, vão se transferir para o período pósindependência. No processo de independência da região do Vice-Reinado do Prata, a contradição entre o porto de Buenos Aires região central diretamente vinculada ao sistema colonial e o periférico Paraguai foi imediata. O Paraguai reivindicava a livre 16 Leon Pomer., op. cit., p. 56 17 Cf. Octávio Ianni. O Progresso Econômico e o Trabalhador Livre, in História Geral da Civilização Brasileira, op. cit., tomo 11, voi. 3, p. 300, citando Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, Brasiliense, 1958, p. 328. 18 Idem, ibidem, p. 35 19 Depois de descrever a ação dos jesuítas na colonização do Paraguai, através das missões que concentravam sob sua direção a população indígena numa forma comunitária de produção, Pomer considera a expulsão dos jesuítas do império espanhol e suas repercussões no Paraguai: Depois que os jesuítas foram expulsos, suas posses passam ao poder da Coroa, o que provoca um crescimento significativo nas propriedades estatais. O Estado manterá em seu poder essas terras, até que a Tríplice Aliança triunfante e o governo títere que se instalará comecem a dilapidá-las com sinistra generosidade (p. 34). Aqui temos uma espécie de estadolatria. Não importa a natureza do Estado, se colonial, absolutista e monárquico, ou autocrático pós-independência, seu controle sobre a produção é sempre superior ao controle privado, igualmente independente da natureza da exploração econômica e das relações sociais de produção