Santos e encantados: religiosidade popular em Codó MA



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Santos e encantados: religiosidade popular em Codó MA Autora: Martina Ahlert Doutoranda Universidade de Brasília E-mail: mah_poa@yahoo.com.br Resumo: Tendo como ponto de partida a análise das diferentes formas de reza, giras, procissões e peregrinações em homenagem a São Francisco de Assis em uma cidade do interior maranhense, este trabalho pretende pensar experiências ligadas à religiosidade popular. O cenário é a cidade de Codó, no sertão maranhense, conhecida como capital da macumba pela presença de tendas de Umbanda, Terecô (religião originária da cidade) e Candomblé, além de histórias relacionadas a feiticeiros poderosos. Na cidade as procissões das religiões afro-brasileiras e dos católicos tomam as ruas e as casas são ocupadas, quase que diariamente, por rezas, novenários, visitas aos mortos e festejos. Este texto pretende pensar a partir dos eventos que envolvem homenagens a São Francisco de Assis, que acontecem na cidade no mês de outubro e novembro. Como santo mais celebrado na cidade, seus festejos envolvem a permanência e, ao mesmo tempo, seu deslocamento a outro estado. Estas manifestações relacionam, tanto os devotos, como os políticos e empresários da cidade. Cabe, ainda, uma reflexão sobre a relação entre os santos e os encantados (entidades incorporadas nas religiões afro-brasileiras na cidade) neste momento do ano. 1

Franciscos e encantados 1 (apresentação) Uma cidade batizada católica - com rezadores populares, ladainhas em latim, bairros com nomes de santo, festas diárias aos santos nas casas é ao mesmo tempo a cidade com fama de ser a capital da macumba no Brasil, com suas mais de 290 tendas 2 de religiões afro-brasileiras, visitantes em busca de consultas com pais-de-santo e tambores tocados durante toda a noite. Codó, cidade de 120 mil habitantes, no sertão maranhense, chama atenção pela quantidade de eventos relacionados aos santos e aos encantados (estejam eles juntos ou separados). Dentre os santos mais festejados da cidade, figura São Francisco de Assis, do qual são devotos diferentes figuras públicas, entre eles o maior empresário homônimo do santo e o mais conhecido entre seus pais-desanto, Mestre Bita do Barão de Guaré. Em setembro de 2010 conheci a cidade e me tornei moradora da mesma com a intenção de realizar no local a pesquisa de campo que serve como base da escrita da minha tese de doutorado. Dentro da antropologia, área na qual desenvolvo esta pesquisa, Codó aparece relacionada aos estudos sobre religiões afro-brasileiras, especialmente sobre o Terecô ou Tambor da Mata. O Terecô é uma religião de transe onde são incorporados, especialmente (não exclusivamente) encantados que teriam habitado as matas da cidade. A família destes encantados é conhecida como o povo de Légua, referência à figura que a comanda, o vaqueiro Légua Boji Buá da Trindade. As tendas de religião afro-brasileira na cidade podem ser de Terecô, Umbanda e Candomblé. Nelas, além dos encantados da família de Légua, podem ser recebidos caboclos diversos, nobres e fidalgos do Tambor de Mina maranhense, orixás, pomba-gira e exus. Neste texto pretendo pensar toda esta forma de celebrar santos e encantados a partir dos eventos em torno de São Francisco de Assis. Oficialmente o dia do santo é comemorado em 04 de outubro, mas, na cidade, seus festejos têm uma duração mais longa. Analiso, especialmente, dois eventos: em um primeiro momento, a ida e o retorno 1 No Maranhão o termo encantado é encontrado nos terreiros de Mina, tanto nos fundados por africanos, quanto nos mais novos e sincréticos, e nos salões de curadores e pajés. Refere-se a uma categoria de seres espirituais recebidos em transe mediúnico, que não podem ser observados diretamente ou que se acredita poderem ser vistos, ouvidos e sentidos em sonho, ou por pessoas dotadas de vidência, mediunidade ou de percepção extra-sensorial, como alguns preferem denominar. Os encantados, apesar de totalmente invisíveis para a maioria das pessoas, tornam-se visíveis quando os médiuns em quem incorporam manifestam alterações de consciência e assumem outra identidade. Apresentam-se à comunidade religiosa como alguém que teve vida terrena há muitos anos e que desapareceu misteriosamente ou tornou-se invisível, encantou-se (M. Ferretti, 2000b, p. 15). 2 Sinônimo de terreiro ou salão, tenda é a palavra mais utilizada na cidade para se referir ao espaço dedicado às giras e rituais onde há toque de tambor. 2

dos romeiros para Canindé a cidade onde fica a Basílica do Santo, no Ceará, a quase setecentos quilômetros de Codó. Em um segundo momento, apresento o festejo dedicado a São Francisco, que acontece no início de novembro em uma das tendas da cidade, a Tenda Espírita de Umbanda Santa Helena. As considerações que apresento neste artigo nascem de um período maior de tempo na cidade, cerca de um ano, dedicado à observação participante e a realização de algumas entrevistas. Este período mais longo de permanência permite ver as singularidades que diferenciam a comemoração do dia de São Francisco em relação a outros festejos de santo. Contudo, também permite enxergá-lo dentro de um fluxo (ou ciclo) contínuo de festejos aos santos e encantados. Este fluxo interrompe apenas no período de quaresma, quando os festejos e os tambores (pelo menos em sua grande maioria) são silenciados. A continuidade dos festejos alguns são realizados há décadas - é sustentada por gerações familiares, já que muitos são recebidos como uma espécie herança. Codó é uma cidade relicário (Ahlert, 2011) com suas rezas, ladainhas, novenas, visitas aos mortos, festejos, tambores composta não apenas dos santos, mas, também pelos encantados. Muitas das atividades que preenchem esse relicário são realizadas sem apoio da Igreja Católica ou do poder público (a lembrar que as tendas são consideradas de utilidade pública, mas, não possuem a documentação para serem registradas como tal). É interessante pensar estes festejos dentro desse contexto, na manutenção e transformação de ritos herdados por gerações familiares e cultivados com apreço, beleza e estratégias diversas diante da escassez dos recursos econômicos e dos aperreios da vida. Os eventos em torno de São Francisco de Assis A partir do final do mês de setembro é que todos os preparativos tomados durante o ano para o São Francisco ganham materialidade. Dia 04 de outubro não é simplesmente o dia do Santo 3, é São Francisco. Pude acompanhar estes momentos dedicados ao Santo em outubro e novembro de 2010, quando tinha recém chegado à cidade de Codó. Contudo, mesmo antes disso, quando é julho, agosto (como pude ver em 2011), os romeiros começam a especular os preços das passagens de ônibus para se deslocaram para a cidade de Canindé ou a buscar as formas de ir gratuitamente, nas carretas e caminhões conhecidos como pau-de-arara. É mais ou menos neste período de que a mãe-de-santo Luiza consulta seus encantados sobre a sua festa e inicia a confecção da roupa nova 3 Na cidade é muito comum ouvir, em dias de homenagem a algum santo, uma referência direta ao mesmo, não se diz hoje é dia de Senhora Santana, se diz: hoje é Senhora Santana. 3

usada pelas filhas-de-santo no tambor dedicado a São Francisco Tenda Espírita de Umbanda Santa Helena. Dentre as inúmeras atividades dedicadas a São Francisco na cidade de Codó, gostaria de contar sobre duas delas: a ida e retorno de Canindé, no Ceará, e o festejo da Tenda de Umbanda da mãe-de-santo Luiza. Conheci Dona Luizinha, como a chamo, quando ela esperava a saída de um dos ônibus de Mestra Bita do Barão, que iria para Canindé. Luizinha seguia com uma das suas irmãs enquanto as outras duas, que não tinham conseguido dinheiro para a passagem (na época cem reais), foram em um dos caminhões pau-de-arara organizado pelo empresário Francisco Oliveira. Estas quatro mulheres fazem a ligação entre os dois eventos que eu quero relacionar, juntamente com duas imagens de São Francisco, que foram compradas por Luizinha em Canindé, para ornar o altar de sua Tenda. Elas fazem o traçado entre o deslocamento e a romaria católica e a Tenda de Umbanda e Terecô Santa Helena, em Codó. A saída e o retorno de Canindé Como apontei acima, durante o ano há uma consulta na cidade sobre os preços das passagens e a oferta de carro para ir para Canindé. Por carro se entende ônibus, vans e caminhões pau-de-arara. Algumas ofertas são históricas, existem pessoas que colocam carros há mais de trinta anos. Entre estas possibilidades se destaca a oferecida pelo Chiquinho, Francisco Oliveira, empresário da cidade. Morador da cidade há 38 anos, Francisco (seu nome e nome dos seus filhos) foi migrante cearense e, como ele mesmo conta, teve história de trabalho árduo em Codó até alcançar o sucesso, graças ao suporte que sempre recebeu de São Francisco. Em devoção ao santo, faz 29 anos que Chiquinho disponibiliza algumas carretas de sua empresa para a ida a Canindé. Em época de São Francisco, as carretas do Chiquinho se transformam em grandes paus-de-arara, onde cabem cerca de 120 pessoas (adultos, crianças, velhos). Em 2010 saíram 15 carretas para a romaria, escoltadas pela polícia durante todo o percurso até a cidade de Canindé, num deslocamento que pode demorar até 20 horas. A saída das carretas, tanto quanto o seu retorno, são eventos importantes na cidade: a principal avenida em frente à fábrica (de nome FC Oliveira) é fechada, os apitos da indústria anunciam a partida dos caminhões, há um trio elétrico que comporta a família do empresário e autoridades da cidade e uma transmissão direta da fala de um frei de Canindé, abençoando a saída dos romeiros. Em 2010, o palanque do evento - que é o trio elétrico da empresa - levava estampado os rostos de Dilma, Roseana Sarney e do Lobão, já que a saída foi logo depois do primeiro turno das eleições federais. 4

Algumas pessoas dormem na rua em frente à empresa para ficara nas filas que são organizadas de acordo com o número do caminhão onde a pessoa se desloca. O transporte é gratuito, os interessados apenas devem colocar seus nomes na lista de cada carro e recebem uma espécie de passagem (que entregam na saída, quando entram no pátio da empresa para subir no seu caminhão). Nos discursos proferidos pelo empresário se destaca a necessidade de união e de auxílio entre os romeiros, o deslocamento para longe de suas famílias, a importância do sacrifício e de imitar as atitudes de São Francisco. O maior pai-de-santo da cidade, Mestre Bita do Barão, também é devoto de São Francisco, e há muitos anos organiza ônibus e um local para suas filhas-de-santo, seus familiares e interessados se hospedarem em Canindé. Além disso, o próprio pai-de-santo freqüenta a cidade em outros momentos do ano e faz promessas ao Santo na sua Basílica em Roma. Os ônibus de Mestre Bita saem e retornam nos mesmos dias das carretas de Chiquinho. Em 2010 foram três ônibus um pertence ao próprio pai-de-santo e os outros dois foram cedidos por contatos importantes um deles um vereador, bastante popular, da cidade. O ponto de saída dos ônibus de Bita do Barão era a rua dos fundos de sua casa e sua Tenda de Umbanda, a maior tenda da cidade. Foi neste espaço que as cadeiras foram colocadas em parte da calçada e os romeiros ficaram esperando o momento do embarque. Nessa calçada, enquanto esperava para ver a partida dos ônibus, conheci três mulheres, Regina, Dica e Luizinha. As três usavam batas marrons, como se vestiam aqueles que pagavam as promessas ao Santo. Essa história continua na linha de Luizinha e Dica, que são irmãs e possuíam outras duas irmãs indo em um dos carros de Chiquinho. Antes do embarque elas me contavam que era muito emocionante a viagem e muito boa, e que se eu soubesse como era bom eu também gostaria de ir para Canindé. Cada uma das pessoas que viajou com Bita reservou seu lugar ou na sua Loja de produtos de Umbanda, ou em seu hotel, que fica em frente à mesma (o pai-de-santo também é importante empresário da cidade). Cada uma das pessoas ganhou um pequeno papel com um número do assento e do ônibus no qual estaria. A espera para a saída dos ônibus foi longa, troquei endereços com as mulheres que conheci e Luizinha me convidou para uma brincadeira (uma noite de tambor) que fazia na sua casa, em novembro, em homenagem ao próprio São Francisco. Nas conversas era possível saber que elas já tinham ido várias vezes para Canindé, Dica por dez anos e Luizinha por mais de vinte. Elas, assim como os outros romeiros que esperavam, tinham muito conhecimento sobre a viagem. Sabiam a hora, a demora, os locais que parariam para comer e quais os melhores lugares para se armar uma rede em Canindé. 5

Os ônibus deram a partida depois que o pai-de-santo Mestre Bita do Barão entrou em cada um deles e fez uma reza. Na sua fala lembrava que era uma viagem de união, de fraternidade e que, nessa viagem não se fuma, não se bebe, não é pra namorar. Esse ônibus é uma casa de oração (Extrato de diário de campo 28, 14/10/2010). Delegando ao São Francisco a direção dos ônibus, partiram após entoar um hino religioso cristão 4. O retorno de Canindé é muito semelhante à partida. Na frente da empresa FCOliveira as sirenes tocam, muitos familiares se concentram onde param os caminhões. As falas lembram da distância da família, as histórias que devem ser contadas nas casas sobre a viagem e muitas pessoas choram. Nas conversas com aqueles que esperam, eles ressaltam a falta que os familiares fizeram nas suas casas. Ao lembrar o sacrifício de todos, éramos todos tomados pelo clima de emoção. Voltam as malas, os colchões, as redes, as sacolas, as garrafas térmicas de água e suco, as batas marrons. Na Tenda de Umbanda Rainha de Iemanjá 5, do Mestre Bita do Barão, há menos choro e maior destaque as narrativas de boa viagem e os desejos de voltar no ano seguinte. Rapidamente chegam familiares para ajudar a carregar as bolsas e malas ou são chamados os moto-taxistas, o transporte mais utilizado na cidade. Antes de deixarem a Tenda, é rezada uma ladainha, seguida de diversos hinos cantados em Canindé. Pequenas bandeiras brancas estavam nas mãos dos romeiros, que usavam uma nova camiseta, da romaria de 2010. A mãe-de-santo Luiza trouxe, entre suas coisas, duas novas imagens de São Francisco de Assis. Eu ajudei a carregar os embrulhos do ônibus até dentro da Tenda, mas, os conheci apenas em novembro, quando ela fez sua brincadeira para o Santo. A brincadeira para São Francisco na Tenda Santa Helena Luizinha, há cinqüenta anos, faz um festejo em homenagem a São Francisco de Assis. Inicialmente fazia em outubro mesmo, mas adiou para novembro, em virtude do deslocamento para Canindé. Em 2010, seu festejo foi feito do dia 13 para o dia 14 de novembro. Antes da data as paredes de sua Tenda foram pintadas, o teto decorado com bandeirolas coloridas e novas roupas de brincar tinham sido costuradas, por sua irmã Dica. Dica não dança tambor, ou seja, não recebe encantado e se diz católica. Mas, desde que Luizinha não enxerga mais bem, ela é a costureira de santo das filhas-de-santo da 4 O hino é conhecido como Derrama Senhor. O pai-de-santo sempre costuma o cantar no início de seus trabalhos, quando reza orações como Pai Nosso e Ave Maria. 5 Os ônibus de Mestre Bita chegaram um pouco antes do que os caminhões do Chiquinho. Quando passaram na frente da FCOliveira, foram cumprimentados no microfone por aqueles que conduziam o cerimonial do retorno de Canindé na empresa. O empresário e o pai-de-santo são ligados por laços de compadrio. 6

Tenda. As outras duas irmãs de Luiza, Maria Domingas e Francisca das Chagas carregam encantado e brincam na tenda de Luiza. O festejo de Luizinha para São Francisco é uma promessa de infância. Quando ela começou a ver encantado ou a ter mediunidade, ela era criança e não entendia o que se passava com ela. A mãe a tratava com dureza, porque pensava que a filha aprontava. Luizinha diz que a mãe não entendia porque ainda não tinha essas coisas de espiritismo lá. Nessa época Luizinha fez uma promessa ao São Francisco, para que ela pudesse entender o que acontecia com ela e para que a mãe não mais a tratasse mal. Prometeu que se isso acontecesse, quando mais velha, ela faria uma festa para o Santo. Nas cinco décadas em que o festejo é realizado, Luizinha conta não ter falhado nenhum ano, mesmo quando era a luz de lampião e só tinha café pra servir, ou seja, quando as condições financeiras quase não permitiriam sua realização. Em conversas com Luizinha e com outras pessoas da cidade que também realizam festejos históricos para seus santos, pude saber que as fontes de onde provém a renda para os festejos são as mais diversas. Além de uma organização temporal do dinheiro, ou seja, de uma economia que inicia meses antes, os festejos costumam contar com a ajuda de familiares (mesmo moradores de outras cidades) e de amigos. A festa na Tenda Espírita de Umbanda Santa Helena dura apenas uma noite. O tempo dos festejos sempre varia de acordo com a Tenda, existem alguns que duram nove noites. Na grande noite tudo começa com um banho perfumado tomado pelas filhas-desanto antes do início do ritual. Depois de paramentadas com suas roupas novas, elas se reúnem no salão e junto com outros expectadores rezam o terço seguido da ladainha de Nossa Senhora cantada em latim. Vizinhos e amigos de Luizinha estão presentes e juntamente com as filhas-de-santo, passam a entoar hinos dedicados a São Francisco, que estão em um cancioneiro que veio da romaria de Canindé. Neste dia as duas imagens de São Francisco que Luiza comprou em Canindé estavam no altar da Tenda. A Tenda Santa Helena é uma sala, de cerca de quatro metros por sete, acoplada a cozinha da casa de Luiza, nos fundos do pátio. Uma das paredes comporta o altar composto pela imagem dos santos católicos - nas pareces estão pintadas imagens de caboclos de pena (índios) e anjos. Os quatro cantos do salão têm pequenos altares e desenhos que representam pontos cantados aos encantados. Dos orixás encontramos apenas uma imagem de Iemanjá. Neste momento da reza, o tambor já foi retirado para fora do salão, está em frente a casa, perto do fogo, onde sua membrana é aquecida para que possa ser tocado mais tarde. Em 2010, ainda antes de o tambor começar a tocar, 10 mulheres entraram com roupas de festa, trazendo flores para Luizinha e cantando para São Francisco. Entre elas 7

estavam duas irmãs de Luizinha, Dica e dos Reis, além de Socorro, que é uma das filhas da mãe-de-santo. Estas dez mulheres não brincam, ou seja, não recebem encantados e por isso não se consideram umbandistas ou do terecô. Elas entram numa outra categoria muito acionada na cidade quando pensamos as pessoas que dão suporte aos festejos, elas ajudam, e nesse caso, ficaram toda a noite na Tenda. Elas fizeram uma homenagem a Luiza por causa dos cinqüenta anos de seu festejo. Serviram bolo, doces e refrigerante. Naquele ano, quando eram cerca de onze horas da noite, teve início o terecô 6. Ao lado do altar fica o abatazeiro (ou tamborzeiro) e o seu tambor, em torno dele se colocam os homens que o acompanham com as cabaças. Na gira, as entidades recebidas descem porque são chamadas por meio dos pontos/doutrinas cantadas para os mesmos. É muito comum que as Tendas (com seus pais e filhos-de-santo) visitem outras tendas durante seus festejos. A casa de Luiza naquela noite recebeu a visita da Tenda de Mestre Bita do Barão e suas filhas-de-santo (casa em que Luiza também dança) e de outras duas tendas menores, que ficam próximas a sua casa. No festejo de Luizinha para São Francisco, o tambor toca até amanhecer o dia (sendo revezado por outro que é aquecido continuamente). O festejo termina na rua, em frente a casa. A mãe-de-santo oferece um café da manhã aos vizinhos. A rua é fechada, dança-se terecô por um tempo, se organiza a fila daqueles que vem para o café da manhã e em seguida é encerrado o festejo para São Francisco. A partir daí começam a programar a festa do ano seguinte. *** A saída/retorno da romaria de Canindé, assim como o festejo da Tenda da mãe-desanto Luiza, são dois eventos relacionados aos festejos de São Francisco de Assis, que acontecem entre outras diversas atividades que tem o Santo como figura central na cidade de Codó. Estes dois eventos são experiências religiosas que se dão fora do espaço das igrejas da cidade. No primeiro caso, a romaria de Canindé, existe uma relação direta com a Igreja Católica, já que a romaria em Canindé é organizada pela Igreja. Contudo, em Codó, o movimento de ir para Canindé é iniciativa de diferentes pessoas, especialmente empresários locais. O festejo na casa da mãe-de-santo Luiza tem uma relação menos direta ainda com a Igreja Católica a qual ela não freqüenta Não é, contudo, totalmente 6 Além do nome da religião, utilizasse terecô como sinônimo de gira ou de toque do tambor. Lá tem um terecô quer dizer que vai ter uma gira tocada com tambor. Ouve-se ainda: o terecô estava muito bom, ou ainda terecô arrochado, quando se gosta do festejo. 8

afastada da mesma, já que as músicas cantadas são trazidas de Canindé e o terço e a ladainha rezados antes do tambor são rituais da Igreja Católica. Penso ser importante manter em mente todo este movimento que acontece na cidade tendo como foco a devoção a São Francisco. Nesta análise pretendo, sempre cuidando com a possibilidade de esvaziar a experiência religiosa, pensar para além de uma dicotomia entre sagrado e profano, buscando mostrar como a experiência religiosa, na prática dos sujeitos que acompanhei (e penso que também em suas representações) está relacionada com aspectos tidos como não religiosos, na medida em que é preciso toda uma organização temporal e financeira para que seja possível pagar promessas, levar votos e executar festejos. A baixa renda da grande maioria dos moradores da cidade 7 imprime questões importantes no momento em que se organiza a vida para a devoção. Luizinha, para a realização do seu festejo, guarda dinheiro da pensão da morte do marido, durante todo o ano. Mesmo as pessoas que se dirigem para Canindé em paus-de-arara gratuitos e dormem em redes na praça da cidade, precisam guardar dinheiro para comer fora de casa (como me explicaram, ainda que levem comida, nunca dura a viagem inteira). Este caráter de pobreza e humildade aparece quando pensamos nas afirmações sobre a popularidade do santo na cidade, ou como afirmo, no santo simples para um povo simples. A associação entre a razão prática e a vida religiosa faz um novo link, entre um tema que quero falar na parte final deste texto, que seja, a relação entre os santos e os encantados. Um Santo simples para um povo simples? Muitos santos são festejados em Codó. As explicações para São Francisco, ao lado de São Raimundo, ser o santo com maior número de devotos na cidade são diversas. No caso de São Raimundo, se acredita que é tão festejado porque é o santo dos vaqueiros, profissão de ocupação geracional dos homens do campo. Sobre São Francisco, existem diferentes leituras. Por um lado, se afirma que ele é o Santo de algumas pessoas da elite da cidade, isto faz com que se espraie todo um investimento nas procissões e romarias de São Francisco. Nesta perspectiva o relacionam com o maior empresário da cidade e mesmo com o pai de santo mais conhecido. Ambos apresentam suas histórias de vida como exemplo da eficácia do poder da fé no Santo. Francisco Oliveira conta sobre sua chegada à cidade de Codó e as 7 Codó é uma das maiores cidades do interior do Maranhão e apresenta índices de incidência de pobreza elevados, alcançando, em 2003, 59,37% (dados do IBGE). Em 2000 a renda per capita da cidade girava em torno de 76,65 reais. É visível uma grande concentração de renda nas famílias que são tradicionais na política, proprietárias de terras ou de empresas. 9

dificuldades financeiras (os diferentes trabalhos) que passou até construir o seu patrimônio na cidade. Já Mestre Bita do Barão, ao afirmar possuir 103 anos de idade, ressalta suas promessas para manutenção de sua saúde. Contudo, na maioria dos casos, as pessoas consideram que existe uma relação entre a humildade do santo e a pobreza da cidade: é um santo simples, para um povo simples me disse uma professora quando estávamos na procissão de São Francisco. A semelhança entre o estilo de vida do santo e as condições compartilhadas da vida dos sujeitos, pressupõe uma identificação entre ambas (como diriam músicos do sertão de Pernambuco, nesse mundo de fome e de guerra, o santo da terra tem calo na mão ) 8. Nos dois eventos que apresentei acima, quando pensamos nos discursos das autoridades e as falas dos sujeitos, vemos que existe um enfoque na simplicidade e pobreza do santo, assim como dos seus devotos se afirma a necessidade de imitar as atitudes do São Francisco 9. É nesta perspectiva que faz muito sentido a difícil economia de dinheiro para o deslocamento, o afastar-se de suas famílias, o passar pelas dificuldades de uma viagem longa e pouco confortável. Estas características que apontam para um inspirar-se na humildade do Santo são elementos presentes nas músicas mais cantadas nesta época do ano, entre elas a tradicional (e popular) Oração de São Francisco 10. As batas marrons (usadas na viagem, mas, por vezes, durante meses que antecedem o dia de São Francisco) funcionam como ícones que elaboram uma similaridade entre o objeto representado e o sujeito (Peirce, 1983) 11. As batas em conjunto com os discursos e o sacrifício (seja da viagem, seja da organização do festejo) toram-se índices (Peirce, 1983) 12, assim, não apenas representam uma similaridade entre o santo e o devoto, mas indicam que são parte de um mesmo elemento. Contudo, como afirma Dawsey (2006), a performance não produz um mero espelhamento do real, numa relação simples de similaridade. Neste sentido, todo codoense pagador de promessa se torna um pouco do próprio São Francisco, mas, não se torna outro, diferente dele mesmo. 8 Da música Foguete de Reis (A Guerra), do grupo Cordel do Fogo Encantado. 9 Penso especialmente no sacrifício e no despojamento dos bens materiais em nome de sua fé e sua pregação. 10 Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvida, que eu leve a fé. Onde houver erro, que eu leve a verdade. Onde houver desespero, que eu leve a esperança. Onde houver tristeza, que eu leve a alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz. Ó mestre, fazei que eu procure mais Consolar, que ser consolado. Compreender, que ser compreendido. Amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe. É perdoando que se é perdoado. E é morrendo que se vive para a vida eterna. 11 Índice e ícones são, para Peirce (1983), são tipos de signos: sobre o ícone afirma Se o signo for um ícone um escolástico poderia dizer que a species do Objeto que dele emana materializou-se no Ícone (Peirce, 1983, p. 47). 12 Se o signo for um índice, podemos considerá-lo como um fragmento extraído do Objeto, constituindo os dois, em sua Existência, um todo ou uma parte desse todo (Peirce, 1983, p. 47). 10

A idéia do espelhamento mágico trazida por Dawsey a partir de Turner (Dawsey, 2006), nos permite agregar outros significados à experiência da devoção ao São Francisco. Permite que pensemos a idéia de aventura presente na viagem para Canindé, assim como a de beleza, presente no festejo de Luizinha. Com isso quero dizer que as narrativas da viagem não são apenas narrativas de sofrimento, são ainda narrativas das aventuras vividas no deslocamento e na cidade de Canindé: como fazem para não se perder entre os romeiros, como encontram comida barata e que não os deixa passar mal, como conhecem desde o zoológico até as diferentes capelas dedicadas ao Santo. Já os festejos que são oferecidos aos Santos e encantados dentro das tendas de religião afro-brasileira implicam num grande investimento na beleza e fogem à simplicidade das batas marrons, as vestes simples dos franciscanos. No festejo para São Francisco, na Tenda da mãe-de-santo Luiza, é para o Santo que se realiza uma nova decoração no espaço e a feitura de roupas novas para brincar (as saias rodadas e batas, que costumam consumir cerca de oito metros de tecido, além das rendas e fitas) 13. Estes sentidos agregados aos mesmos eventos permitem aumentar o escopo do nosso olhar. Os pagadores de promessa a São Francisco, para além de uma imagem do próprio santo, são aventureiros e transitam entre o marrom que os aproxima da simplicidade e o colorido das saias e da decoração das Tendas, que são homenagens ao Santo. Entre os dois eventos que busquei descrever acima circulam sujeitos e objetos. Nos dois momentos, fixei minha atenção na devoção e na aventura de Luiza e de suas irmãs. Junto com elas transitam objetos que perfazem a ligação entre estes espaços, como os cancioneiros de Canindé, as fotos nas estantes de suas casas (e, conseqüentemente da Tenda) e as próprias imagens do Santo, compradas em Canindé e agasalhadas no altar junto aos outros santos de Luiza. Quando a mãe-de-santo vir a falecer, os santos continuarão circulando, indo para os altares nas casas de seus familiares, recebidos como herança de seus parentes. A possibilidade de circulação entre pertencimentos tidos como católicos e os espaços das religiões afro-brasileiras da cidade nos chamam atenção para um processo peculiar da história da cidade, que permite pensarmos a relação entre os encantados e os santos. Santos e encantados todos os deuses no mesmo saco? 13 Em muitas falas de pais e filhos-de-santo é possível notar que as roupas novas feitas nos festejos tem um caráter de novidade dizem que encantado não se importa com a roupa e que o terecô que faziam anos atrás não exigia este tipo de coisa. 11

Como apontei no início do texto, Codó tem uma historiografia oficial (produzida na mesma) 14 que caracteriza a cidade como marcadamente católica. Contudo, na produção da antropologia e das ciências sociais, a cidade é conhecida como berço do Terecô e como possuindo um grande número de tendas desta religião, além da Umbanda e do Candomblé. O Terecô, também conhecido como Tambor da Mata ou Encantaria de Bárbara Soeira, é uma religião de transe que se distancia do Tambor de Mina da capital porque tem como encantado chefe Légua Boji Buá da Trindade, são incorporados encantados, sua língua ritual é o português e o toque do tambor é mais rápido do que o da Mina. A primeira pesquisa sobre o Terecô foi realizada por Costa Eduardo na década de 1940 (Eduardo, 1948), período em que iniciam as primeiras publicações, nas ciências sociais, sobre o Tambor de Mina na capital Maranhense (Nunes Pereira, 1947). As primeiras produções sobre o Tambor de Mina na cidade de São Luís destacavam a autenticidade da herança africana, a permanência do que seriam práticas religiosas vindas da África destacando a beleza das roupas, a culinária, o culto aos voduns africanos e nobres. Nunes Pereira, em pesquisa na Casa das Minas, caracteriza os negros como Minagege, ressalta traços gege e nagô, e mostra como a religião estava distanciada da feitiçaria, já que Na Casa das Minas não se cuida de feitiçaria, isto é, da prática de malefícios ou do preparo de filtros, amuletos, etc. (Pereira, 1947, p. 49). Além disso, o autor não vê semelhança entre os voduns e os santos católicos: Para a gente da Casa das Minas as suas divindades pertencem exclusivamente e essencialmente à teogonia africana, podendo vir da concepção religiosa deste ou daquele povo do Continente, mas nunca do seio da religião católica, do mundo dos pagés amazônicos ou dos círculos, e tendas dos médiuns espíritas (Pereira, 1947, p. 47). No mesmo período Costa Eduardo escreveu The negro in Northern Brazil (1948). Segundo M. Ferretti (2001a) 15 onde, além de falar da religião na capital, são trazidos elementos sobre o Terecô no interior de Codó. O autor descreve os rituais encontrados e destaca o que seria um bom nível de conservação das histórias do folclore negro, resultado, para o autor, do isolamento do povoado onde pesquisou, no interior da cidade. Mas, afirma que as crenças religiosas africanas estavam muito diluídas (Costa Eduardo, apud. M. Ferretti, 2001a, p. 68). Menciona a presença dos encantados que podem curar, assegurar boas colheitas, ajudar uma criança a nascer e encontrar objetos perdidos (ibid., p. 69). Mundicarmo Ferretti afirma que Costa Eduardo, falando de outras crenças 14 Considero essa produção local pequenos folders e jornais confeccionados pelo pode público em momentos de aniversário da cidade. Neles, e no livro sobre a história da cidade, que se chama Codó histórias do fundo do baú (Machado, 1999), se considera religião da cidade a Igreja Católica, enquanto as religiões afrobrasileiras aparecem como folclore e cultura dos negros. 15 Costa Eduardo passou seis meses em São Luis estudando a Casa das Minas, além de dois meses no povoado de Santo Antônio dos Pretos, interior de Codó e mais 15 dias na sede do município. 12

encontradas em Santo Antônio, além das difundidas pela Igreja Católica e das ligadas aos encantados, refere-se à magia e à feitiçaria (magia negra) (ibid. p.75) - mas, complementa que a magia negra 16 não era encontrada no povoado e, embora conhecessem a magia curativa, não havia especialistas entre seus moradores. Bastide comenta a obra de Costa Eduardo, especialmente no que concerne ao interior do estado do Maranhão. Afirma, neste sentido, a existência de uma zona de transição onde o catimbó e o Tambor de Mina abandonam-se às mais estranhas uniões (Bastide, 1971, p. 256). Para Bastide, nestas regiões os negros escravos, impedidos de realizar suas cerimônias religiosas, teriam encontrado diálogo com a pajelança indígena, mas, teriam conservado, ainda que vagamente, a tradição africana - Bastide diz haver uma lembrança confusa da existência de alguns voduns daomeanos (ibid., p. 258-259). O autor destaca a pobreza dos grupos negros rurais e a perda da exuberância dos trajes e dos ritos de iniciação, e, sobre as suas práticas religiosas, afirma que Tem-se a impressão de se estar numa encruzilhada de religiões, ou antes, num beco sem saída em que se encontram as mais diversas místicas. Essas seitas em sua origem formaram-se provavelmente não sob o signo da fé, mas sob o manto da fraternidade na miséria (ibid., p. 261). Estas obras permitem ver uma tendência de busca de uma 'autenticidade' africana nas religiões afro-brasileiras no Maranhão de forma a criar uma oposição entre o Tambor de Mina, depositário dos traços das tradições jeje e nagô, e as outras manifestações sincréticas no interior do estado. Assim como buscavam indicar uma sobrevivência das tradições e do conhecimento trazido da África em contato com elementos culturais locais. Existe, contudo uma re-elaboração destas perspectivas nas futuras pesquisas no interior do Maranhão, como aquelas realizadas por Mundicarmo e Sérgio Ferretti, a partir do final dos anos oitenta. 17. Mundicarmo Ferretti (2001) escreve sobre o terecô, mas permite ainda que se entenda a chegada da Umbanda na cidade de Codó. Segundo a autora, a Umbanda teria chegado na cidade de Codó em torno da década de 1940, trazida por uma mãe-de-santo que vem de Teresina e passa a residir na cidade, conhecida como Maria Piauí. Para Mundicarmo Ferreti (2001ª) e Sulivan Barros (2000), a Umbanda da cidade era menos perseguida do que a prática do terecô, o que levou muitos terecozeiros a aderirem à 16 Explica que se comentava ali que a magia negra era feita usando-se uma roupa ou um objeto pessoal da vítima, que podia provocar doenças e até levar a vítima à morte, que os feiticeiros eram capazes de botar um inseto no corpo ou um sapo na barriga de uma pessoa para arruinar sua saúde ( ) e que podiam se transformar em lobisomens ou em animais sem cabeça, que atacavam as pessoas à noite e que expeliam um cheiro de enxofre, mas que o povoado de Santo Antônio citava poucos casos de pessoas atingidas por esse tipo de magia (M. Ferretti, 2001a, p. 73). 17 Dados destas pesquisas passam a ser apresentados a partir dos anos noventa, assim como estes locais passam a receber pesquisas de alunos da pós-graduação (por exemplo, Barros (2000), Pacheco (2004), Araújo (2008), Brandim (no prelo)). 13

Umbanda, passando a chamar suas tendas de Tenda Espírita de Umbanda (antes, os terecozeiros não costumavam construir seus salões, mas, encontrar-se na mata para realizar seus rituais de forma escondida da polícia e das autoridades da cidade. A chegada do Candomblé é ainda mais recente e remonta ao início da década de 1980 (Araújo, 2008). O primeiro salão foi de um pai-de-santo conhecido como Eduardo, que teria vindo de São Paulo acompanhado de um codoense chamado Júlio, feito no Candomblé da Bahia. Hoje existem cerca de cinco tendas de candomblé da cidade. Mesmo as tendas de Candomblé costumam ter altares com santos católicos, muito semelhantes aos encontrados nas tendas de Umbanda e Terecô. Além disso, costumam tocar toques do Tambor da Mata nos seus trabalhos. Diversos elementos podem ser relacionados a esta interpenetração entre as religiões afro-brasileiras da cidade, como o fato de alguns dos pais-de-santo serem terecozeiros ou umbandistas antes de sua feitura no Candomblé e mesmo porque as tendas têm o costume de se visitar nos festejos já que os encantados são chamados de acordo com as doutrinas cantadas, não faria sentido ir brincar em uma tenda onde não se tocasse para os encantados carregados por umbandistas e terecozeiros. *** Diante dessa história peculiar sobre a relação entre diferentes pertencimentos religiosos na cidade, encontramos em Codó pais-de-santo que se definem como sendo terecozeiros, umbandistas e candomblecistas ao mesmo tempo. Este múltiplo pertencimento não aparece como problema para muitos dos meus interlocutores de pesquisa. Para muitos deles, inclusive, a relação com os santos católicos é vista como uma vantagem e como uma associação tranqüila. A relação acontece também num sentido diferente do que aquele que apresentei quando São Francisco se faz presente na Tenda de Umbanda e Terecô. Existem relatos de encantados que, no corpo dos seus cavalos, adentram a Igreja Católica para serem padrinhos de batizado, por exemplo. Tal como os santos e no caso de São Francisco, que apresentei neste texto os encantados também ganham festejos em sua homenagem, inclusive festas de aniversário, quando se comemora o dia de croa do encantado em seu médium. Santos e encantados compartilham uma participação na vida das pessoas que está para além de uma relação extraordinária. É ordinária e cotidiana. Ambos informam sobre questões práticas da vida das pessoas e marcam estas histórias de vida com suas intervenções e participações. Diferente dos santos, contudo, os encantados têm uma participação mais direta, já que, nas giras e nas consultas, ocupam-se do corpo de seus cavalos e conversam, aconselham aqueles que estão presentes. Contudo, tanto encantados como santos são personagens constantes da vida dos interlocutores de pesquisa que 14

conheci em Codó. Acompanham suas histórias como acompanharam seus antecessores e mostram sinais que acompanharão as novas gerações. Este acompanhamento e sua lealdade fazem com se seja necessário retribuí-los durante a vida, aí fazem sentido os sacrifícios e as aventuras na devoção aos santos e aos encantados. Como bem lembra Marcel Mauss (1974) troca-se não apenas entre homens, mas, também entre homens e deuses. A romaria, os ex-votos e o festejo são respostas dos devotos ao Santo, diante de alguma adversidade da vida. Referências bibliográficas: ARAÚJO, Paulo Jeferson Pilar. Umbandização, cadombleização: para onde vai o Terecô? In: X Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões. Anais do X Simpósio ABHR / UNESP - Assis - 12 a 15 de maio de 2008. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações. Segundo volume. São Paulo: Pioneira Editora, 1971. p. 243-266. BARROS, Antonio Evaldo de Almeida. Em trilhas encantadas: sociedade, cultura e religiosidade no Maranhão. In: X Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões. Anais do X Simpósio ABHR / UNESP - Assis - 12 a 15 de maio de 2008. BARROS, Sulivan Charles. Encantaria de Bárbara Soeira: a construção do imaginário do medo em Codó/MA. 163f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade de Brasília. Brasília, 2000. BRANDIM, Vivian de Aquino Silva. Obrigação de Dona Constância: perspectivas históricas da constituição da Umbanda em Codó no estado do Maranhão (no prelo). DANTAS, Beatriz Góis. Vovô Nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DAWSEY, John. O teatro em Aparecida: a santa e o lobisomem. Mana, 12 (1), 135-149, 2006. EDUARDO, Octávio da Costa. The negro in Northern Brazil, a study in acculturation. New York: J.J. Augustin Publisher, 1948. FERRETTI, Mundicarmo. Terecô: a linha de Codó. VIII Jornadas sobre alternativas religiosas na América Latina. São Paulo, 22 a 25 de setembro, 1998.. Desceu na guma: o caboclo no tambor de mina em um terreiro de São Luís - a Casa Fanti-Ashanti. 2 ed. rev. e atual. São Luís: EDUFMA, 2000.. Maranhão encantado: encantaria maranhense e outras histórias. São Luis: UEMA Editora, 2000b.. Encantaria de Barba Soeira: Codó, Capital da magia negra? São Paulo: Siciliano, 2001a. 15

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