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COMARCA DE SÃO LEOPOLDO 5ª VARA CÍVEL Av. João Corrêa, 1350 PROCESSO: 033/1.05.0036332-6 (antigo 03301337872) ESPÉCIE: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO AUTORES: MARIA REGINA FARIA DÉBORA FARIA MATHEUS FARIA RÉU: ALEXANDRE RUBIO ROSO JUIZ PROLATOR: Leandro Raul Klippel DATA: 1 de junho de 2006 SENTENÇA Nº: SENTENÇA Vistos. MARIA REGINA FARIA, DÉBORA FARIA e MATHEUS FARIA ajuizaram Ação de Indenização contra ALEXANDRE RUBIO ROSO, narrando que SÉRGIO FARIA, marido da primeira autora e pai dos demais requerentes, sendo obeso, pesando cerca de 198 quilos, habilitou-se junto ao Hospital Nossa Senhora da Conceição em Porto Alegre para submeter-se a tratamento cirúrgico a fim de diminuir a obesidade. Enquanto aguardava a chamada para entrevista no referido Hospital, conheceu o réu, que o induziu a se submeter imediatamente à cirurgia visando a redução do estômago. Sem qualquer exame específico, foi internado no Hospital Centenário em São Leopoldo, tendo o réu realizado tal cirurgia. Afirmaram que Sérgio faleceu em 23 de julho de 2002. Disseram que o demandado realizou a cirurgia sem as precauções e procedimentos preconizados. Mencionaram que o Hospital Centenário não é credenciado junto ao SUS para a realização de tal cirurgia. Asseveraram que o réu adulterou o código do procedimento, já 1

que o SUS não autorizaria cirurgia de redução de estômago. Alegaram que somente Sérgio trabalhava, sendo que a sua morte deixou a família ao desamparo. Requereram a condenação do demandado ao pagamento de indenização que compreenda as suas necessidades e pelo dano moral sofrido em decorrência da morte da vítima e dos sofrimentos suportados durante o mês em que Sérgio esteve internado. Juntaram documentos. Foi concedido o benefício da Assistência Judiciária Gratuita aos autores. Citado, o requerido ofereceu contestação (fl. 152), na qual disse que Sérgio Faria o consultou, dizendo que desejava fazer cirurgia de obesidade mórbida, informando que fizera avaliações e exames pré-operatórios na PUC. Mencionou que tecnicamente foram realizadas as cirurgias denominadas gastroenteroanastomose e enteroanastomose, cujos códigos da Tabela do SUS foram colocados corretamente na AIH do autor. Afirmou que o paciente foi operado em 24 de junho de 2002, tendo a cirurgia transcorrido sem alterações, assim como o pós-operatório imediato. No dia 04 de julho o paciente começou a apresentar alterações no quadro clínico, com hipertermia, drenagem de serosidade pela incisão e vômitos de tipo hematêmese. Em 10 de julho começou nutrição parenteral ao paciente, abatendo-se infecção na ferida operatória. No dia 19 de julho o paciente apresentou hemorragia digestiva em grande quantidade, sendo que no dia seguinte foi submetido à endoscopia digestiva alta, que constatou que a hemorragia era proveniente de um vaso anômalo no esôfago, fora do local onde havia sido realizada a cirurgia. Esse vaso anômalo trouxe piora ao paciente que apresentou insuficiência respiratória grave e insuficiência renal aguda, vindo a óbito em 22 de julho de 2002. Disse que inexiste nexo causal. Afirmou que a endoscopia constatou que a anastomose realizada pelo réu na cirurgia se mostrava pérvia, isto é, com boa passagem, demonstrando o acerto da cirurgia. Disse que não induziu o paciente à cirurgia e que 2

seguiu as precauções médicas. Impugnou os pedidos. Alertou acerca do interesse político subjacente no presente feito. Juntou documentos. Em réplica, o autor reiterou os termos da inicial. Determinada a realização de prova pericial, o perito juntou seu laudo (fl. 366) e respondeu aos quesitos formulados pelas partes (fl. 391). Foi apresentado laudo do assistente técnico do réu (fl. 401). Foram prestados novos esclarecimentos pelo perito (fl. 439). Designada audiência de instrução, foram ouvidos os depoimentos do réu (fl. 406) e das testemunhas arroladas pelas partes (fl. 500, 504, 519, 624, 640 e 669). Foi indeferida a realização de nova perícia. Declarada encerrada a instrução, somente o autor apresentou alegações finais na forma de memoriais. O Ministério Público exarou parecer no sentido da procedência da ação. Vieram os autos conclusos. É o relatório. Passo a decidir. Cuidam os presentes autos de ação ordinária, na qual os autores pretendem a condenação do requerido ao pagamento de indenização pelo dano material e moral que alegadamente teriam sofrido em decorrência do falecimento de Sérgio Faria, esposo e pai dos requerentes. Conforme se depreendo dos autos, o demandado executou cirurgia para correção de obesidade mórbida na vítima em 24 de junho de 2002, sendo que, depois de pouco menos de um mês de tal procedimento (em 23 de julho de 2002) ocorreu o óbito, sem que houvesse a alta do paciente. Assim, a presente demanda tem como fundamento a alegação da existência de erro médico nos procedimentos do réu que tenham causado o falecimento da vítima. Passemos a apreciar tal questão. Deve-se esclarecer que o requerido, além de médico, mantém intensa atuação 3

política, sendo que na legislatura anterior (qual seja, durante a época dos fatos) era vereador nesta cidade de São Leopoldo. Já pleito de 2004 concorreu ao cargo de viceprefeito, em coligação com o Partido dos Trabalhadores, tendo vencido as eleições, exercendo atualmente tal função. Necessário também referir que o réu foi o denunciante do rumoroso caso das fitas, no qual diversos vereadores do Município de São Leopoldo foram flagrados recebendo propina, sendo filmados por câmera escondida, tendo tal acusação resultado na cassação de diversos edis, a instauração de processos criminais contra estes, inclusive com a prisão preventiva de alguns. Inicialmente devem ser refutadas com vigor duas assertivas do demandado formuladas ao longo do feito. A primeira delas diz respeito à ilação de que o provável motivo do presente processo é político, bem como a existência de ressentimentos políticos contidos no processo (contestação, fl. 154 penúltimo parágrafo). Ocorre que em momento algum há qualquer referência de que os autores tivessem qualquer interesse pela política local. Ademais, por óbvio, estamos tratando da morte de um pai de família, sendo que qualquer interesse político se desvaneceria em face das gravíssimas conseqüências de tal situação, chegando tal assertiva ser ofensiva e injuriosa contra os autores e contra a memória da vítima. Quem, em sã consciência, daria conotação política a um processo judicial tendo perdido o esposo e pai? O fato de o réu ter intensa atividade político-partidária e estar envolvido em diversos casos graves do ponto de vista político (ou policial, como queiram), como é o caso de corrupção na Câmara de Vereadores de São Leopoldo, não conduz a conclusão de que toda a acusação contra ele dirigida tem caráter político. Destarte, tal ilação deve ser refutada com vigor. A segunda afirmativa do requerido que merece ser repelida é a formulada em sede de depoimento pessoal de que o procedimento realizado no demandado - qual seja, 4

cirurgia em pacientes com obesidade mórbida, com o fim de redução de estômago, ou técnicas similares - é procedimento simples. Ao contrário, tais cirurgias devem ser consideradas como de alta complexidade e de alto risco para os pacientes que a ela se submetem, conforme esclarecido pelos documentos dos autos e como considerado pelo Sistema Único de Saúde. Caso não seja assim considerada, restaria escancarada a imperícia do requerente na realização de tais procedimentos, haja vista a grande quantidade de óbitos de pacientes deste, conforme noticiado nos autos (em especial denúncia criminal de fl. 525 e seguintes). Cabe também tecer algumas considerações acerca da polêmica instaurada nos autos acerca da permissão de realização de cirurgias para correção de obesidade mórbida no Hospital Centenário de São Leopoldo pelo Sistema Único de Saúde. Disse o demandado que tal entidade hospitalar é credenciada para efetuar o procedimento realizado na vítima. E no caso concreto assim foi procedido, tendo o SUS arcado com os custos da cirurgia. Contudo, considero que requerido utilizava-se de subterfúgios para que houvesse autorização para a realização desta espécie de cirurgia e, conseqüentemente, recebesse seus honorários do Poder Público. Inicialmente reitere-se que tais cirurgias devem ser consideradas como de alta complexidade e de alto risco para os pacientes que a ela se submetem. Por estas razões, justifica-se que Poder Público normatize de forma restritiva e pormenorizada a possibilidade de realização destes procedimentos por meio do Sistema Único de Saúde. Desta forma, o tratamento cirúrgico da obesidade mórbida foi regulado no âmbito do Sistema Único de Saúde pela Portaria 628/GM do Ministério da Saúde. Segundo esta, somente hospitais credenciados poderiam realizar cirurgias bariátricas, sendo incontroverso que o Hospital Centenário de São Leopoldo não possui tal credenciamento, 5

conforme se verifica pelo ofício de fl. 643. O autor, nas suas manifestações ao longo do feito, sustentou a tese de que a referida portaria regulou somente uma técnica de procedimento cirúrgico para tratamento da obesidade mórbida, qual seja, a gastroplastia. Segundo suas alegações, como teria realizado as cirurgias de obesidade mórbida em seus pacientes com a utilização de outras técnicas (quais sejam, a gastroenteroanastomose e a entero-enteroanastomose), argumentou que não havia vedação para realizar tais procedimentos cirúrgicos no Hospital Centenário pelo Sistema Único de Saúde, recebendo remuneração do Poder Público, pelo fato de tais procedimentos serem permitidos pelo SUS, tendo códigos próprios. Embora aparentemente correta esta última assertiva, o requerente, em verdade, utilizava-se de um artifício para receber autorização para realizar as indigitadas cirurgias, e receber a respectiva remuneração. Segundo o site www.gastronet.com.br, Gastroplastia é o termo usado para designar a modificação que se faz no estômago no tratamento cirúrgico da obesidade mórbida, sendo que o próprio nome sugere plástica do estômago. Portanto, tal termo está vinculado estritamente ao caso em comento, referindo-se a cirurgias bariátricas. Desta forma, considero que a Portaria 628/GM regulou todas as formas de cirurgias que tem como finalidade corrigir a obesidade mórbida no paciente, independentemente da técnica utilizada. Por via de conseqüência, somente os estabelecimentos hospitalares credenciados de acordo com tal Portaria para a realização de cirurgia de obesidade mórbida poderão efetuá-la, independentemente da técnica utilizada. Ocorre que o requerente classificava as cirurgias que fazia em seus pacientes obesos como gastroenteroanastomose e entero-enteroanastomose. Ambos são procedimentos autorizados pelo SUS, conforme Portaria 727/99 do Ministério da Saúde, 6

conforme mencionado nos documentos juntado com a contestação, fl. 177/8, com códigos próprios no Sistema Único de Saúde, estando o Hospital Centenário habilitado para realizá-los. A gastroenteroanastomose é técnica cirúrgica utilizada para diversas patologias, como por exemplo, o caso de úlcera com obstrução pilórica, situações de emergência em caso de acidentes com agressão ao estômago, câncer gástrico, conforme informado por Juarez Cardoso Galiego (fl. 586). Esta a razão pela qual há possibilidade de ser realizado tal procedimento pelo SUS no nosocômio local, uma vez que este está vinculado basicamente a situações de emergência, para as quais o Hospital Centenário está credenciado. Refira-se por fim, que a Portaria 727/99 do Ministério da Saúde em momento algum faz qualquer alusão à possibilidade de que a gastroenteroanastomose seja utilizada para cirurgias de obesidade mórbida. Ao contrário, somente refere situações de emergência e urgência, as quais são opostas à situação dos autos, uma vez que a cirurgia de obesidade mórbida é, na imensa maioria dos casos, eminentemente eletiva - no sentido de que passam por agendamento prévio -, não se caracterizando por ser procedimento de emergência ou urgência. Conforme o site acima referido, a Gastroenteroanastomose é a emenda (anastomose) do estômago com o intestino delgado. Serve para desviar os alimentos e as secreções quando o estômago não é retirado ou após a gastrectomia. Embora tudo leve a crer que este procedimento estava contido nas cirurgias realizadas pelo autor, a operação de obesidade mórbida com ele não se confunde. De acordo com o site do Memorial São José Hospital e Clínicas, Em geral, a cirurgia bariátrica mais frequentemente realizada tem como objetivo alcançar dois fundamentos básicos: Diminuir a ingesta de alimentos (restritivo) com a confecção de uma nova bolsa gástrica que comporta inicialmente de 30 a 45 ml de líquidos; e promover 7

um desvio intestinal que proporcione a diminuição da absorção de nutrientes (disabsorção). A combinação destes dois princípios leva a uma perda excesso de peso em um período médio de dois anos, sendo a maior perda nos primeiros seis meses. Esta cirurgia é denominada de gastroplastia vertical com anel de contenção e gastroenteroanastomose em y de Roux, ou simplesmente Cirurgia de Capella, que foi o seu idealizador, Rafael Capella. Segundo relatado pelo requerente, este realizava as aludidas cirurgias pela técnica desenvolvida pelo Dr. Capella, conforme se depreende de diversas passagens nos autos (fl. 137, 371, 402, 611). Por tal técnica, de acordo com o site Terra Vida e Saúde, grampea-se uma parte do estômago e forma-se um pequeno estômago" (gastroplastia). Em seguida, é colocado um anel de silicone em volta da gastroplastia e é feito um desvio (Bypass) do intestino de cerca de 1 metro (o órgão tem 4 a 7 metros). Por fim, a gastroplastia é ligada ao intestino desviado para que a comida possa passar novamente (gastroenteroanastomose). Portanto, a cirurgia de obesidade mórbida envolve uma série de procedimentos, sendo que a gastroenteroanastomose é somente um dos realizados. Destarte, se chega à conclusão de que o autor não poderia utilizar-se dos códigos da gastroenteroanastomose para requerer autorização para a realização de cirurgias pelo SUS com o fim de solução da obesidade mórbida de seus pacientes. Tal sistemática era, em verdade, uma burla às normas que regem a espécie, com o fim de contornar a limitação determinada pela Portaria 628/GM, que vedava a realização de tais cirurgias no Hospital Centenário. Veja-se que nos prontuários, requisições e outros documentos o autor não 8

mencionava a realização de cirurgia de obesidade mórbida, certamente sabendo que não seria permitida a sua realização, pois o Hospital Centenário não é credenciado para realização destes procedimentos, de conformidade com a Portaria 628/GM. Desta forma, pode o cirurgião proceder uma gastroenteroanastomose no Hospital Centenário desde que esta tenha causa externa, como lesão por arma de fogo ou arma branca, tumor, obstruição intestinal, situação esta que, evidentemente, não era o caso da vítima Sérgio. Esclareça-se ainda que a redução de estômago por obesidade mórbida tem, no SUS, código diverso dos procedimentos gastroenteroanastomose e enteroanastomose. Igualmente a auditoria realizada pela Secretaria Estadual de Saúde no Hospital Centenário, cuja juntada foi autorizada pelas partes na audiência de fl. 504, concluiu pela incorreção no procedimento do requerente. Conforme conclusão 2, Foram efetivamente realizadas cirurgias bariátricas pelo SUS no Hospital Centenário, usando outros códigos relacionados a cirurgias gástricas para a cobrança da AIH, sendo que tal nosocômio não estava habilitado a realizar tais cirurgias, conforme conclusão 1 e já amplamente debatido nesta sentença. Por todos estes argumentos, forçoso concluir que o requerente usava artifícios para que pudesse realizar, pelo SUS, cirurgias para solução de problemas de obesidade mórbida em seus pacientes, embora o Hospital Centenário não fosse credenciado para tanto. Utilizava-se o requerido de artifício que visava burlar a sistemática do Sistema Único de Saúde para que houvesse o pagamento das cirurgias realizadas. Contudo, não há evidências de que o requerido não tinha qualificação técnica para a realização da cirurgia em comento. Ocorre que a prova dos autos é no sentido de que o requerente tinha qualificação para efetuar cirurgias de obesidade mórbida. Neste 9

sentido, o currículo do réu, não impugnado pelos autores. A Cirurgia Bariátrica é uma técnica cirúrgica para tratamento da obesidade mórbida, não sendo estabelecida como especialidade médica. Os médicos habilitados para realizarem esta espécie de cirurgia são os médicos especialistas em cirurgia geral ou cirurgia do aparelho digestivo, qualificação esta que o requerente possui. Também não há qualquer evidência de que o Hospital Centenário não tinha condições técnicas de realização deste procedimento, sendo que o depoimento das testemunhas ouvidas indicam a possibilidade de realizar tal técnica no nosocômio local, a despeito de não estar cadastrado junto ao SUS. Feitas estas considerações preliminares, passemos a apreciar a questão fulcral da demanda, qual seja, a existência de erro médico no proceder do demandado quando da realização da cirurgia na vítima Sérgio Faria. Esclareça-se inicialmente que o réu responde por sua conduta não só durante ato cirúrgico em si, mas também pela indicação correta da necessidade da intervenção cirúrgica, os procedimentos prévios a esta e sua conduta durante todo o período em que a vítima esteve internada, qual seja, o pós-operatório. A responsabilidade do réu abrange também período anterior e posterior ao ato cirúrgico em si considerado, inclusive durante a recuperação (frustrada, lamentavelmente) do paciente após a cirurgia. O médico assume um dever de cuidado do paciente até sua pronta recuperação. Tal obrigação do requerido não é negada em sede de contestação, sendo que a testemunha Antônio Luís do Canto Vinadé bem esclarece tal questão, mencionando que o requerido foi o responsável médico pelo paciente Sérgio desde a cirurgia até o óbito. Outro esclarecimento necessário é que, embora incida ao caso concreto as regras do Código de Defesa do Consumidor, necessária a apuração de culpa do requerido, porque, conforme esclarecido pelo parágrafo 4º do art. 14 daquele diploma legal, A 10

responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. Desta forma, para a responsabilização do réu necessária a constatação de que este agiu de forma negligente, imprudente ou imperita, infringindo regras atinentes ao ofício. A responsabilidade dos profissionais liberais médicos representa na grande maioria das vezes, obrigação de meio. Destarte, o médico não se compromete a curar o paciente, mas simplesmente em envidar todos os esforços (de natureza técnica e científica) nesse sentido. Não obtida a cura, disso não decorre automaticamente a responsabilização civil do médico, cabendo à vítima demonstrar que o dano teria decorrido de falha atribuível ao profissional. No caso concreto, a responsabilidade do réu em indenizar é baseada na culpa, a qual deve ser buscada na perquirição da observância por parte dos requeridos das regras técnicas da profissão. Hoje se tem como certo que assume o médico um dever de cuidado, não qualquer cuidado, mas, sim, o cuidado necessário, de acordo com os conhecimentos técnicos disponíveis, para obter a cura ou melhora do enfermo. Assim, no caso de insucesso do tratamento, deve o médico demonstrar que o diagnóstico era acertado, que o tratamento era aquele que as circunstâncias impunham, que foi realizado no momento adequado, respeitando os procedimentos prévios consagrados pela literatura médica e que foi feita com a técnica habitual. Também, como a obrigação do médico não é de obter um resultado mediato, e como não assegura a cura, nem a recuperação da integridade física do paciente, tal profissional pode eximir-se de toda a responsabilidade demonstrando que o evento danoso se produziu apesar de ter cumprido ele com o seu dever. 11

Deve ser reputado erro médico o emprego de técnicas inaceitáveis pela dogmática da classe médica, ou ante a constatação de falta de diligência ou de prudência do médico. Deve o médico proporcionar ao paciente todos os cuidados exigíveis para o caso, mediante a utilização de todos os recursos da técnica médica para alcançar a cura do paciente, obediente aos preceitos fundamentais da ciência. A conduta profissional suscetível de engendrar o dever de reparação é aquela vinculada a erro no diagnóstico ou no tratamento clínico ou cirúrgico, negligência na sua atuação para obtenção da cura do paciente, de forma que se ponha em evidência a falta culposa no desempenho do múnus. Portanto, necessária a apuração de culpa na conduta do réu, ou seja, no caso concreto, no ato cirúrgico realizado na vítima Sérgio Faria e nos dias que se seguiram a este procedimento para a responsabilização do demandado. Entretanto, o conceito de culpa para a esfera civil é muito mais tênue, bastando a existência da culpa levíssima para haver a responsabilização civil. Hoje se tem como certo que assume o médico um dever de cuidado, mas não qualquer cuidado, mas, sim, o cuidado necessário, de acordo com os conhecimentos técnicos disponíveis, para obter a cura ou melhora do enfermo. Assim, no caso de insucesso do tratamento, deve o médico demonstrar que o diagnóstico era acertado, que o tratamento era aquele que as circunstâncias impunham, que a cirurgia era necessária e foi feita com a técnica habitual. Além disso, cumpre ao médico demonstrar que obrou com celeridade própria ao caso, sem perdas de tempo, sem demoras inúteis. Utilizando as técnicas conhecidas e padrões para o caso. Este é o ensinamento de JORGE MOSSET ITURRASPE, (in Responsabilidade Civil del Médico, Ed. Astrea, Buenos Aires, 1985, pág. 35). 12

O nexo causal para o direito civil é buscado pela Teoria da Causalidade Adequada. Segundo tal teoria, um fato é considerado causa de outro fato quando seja uma conseqüência logicamente possível e previsível de outro fato anterior. Frente ao caso concreto, deverá se apreciar se a conduta do demandado (ou a sua omissão em ministrar os devidos cuidados e procedimentos adequados ao paciente) poderia gerar como conseqüência o evento morte da vítima. Utiliza-se a chamada prognose retrospectiva, ou seja, perquire-se quais os fatos que poderiam ser causadores do evento. Parte-se de uma formulação negativa, se procurando identificar o que é causa inadequada para o fato danoso. Tal teoria obriga o demandado comprovar que a causa não foi adequada, ou foi irrelevante à ocorrência do evento. Também necessário referir que, na questão da condenação civil por erro médico sempre surge a dificuldade de se aportar uma prova clara da responsabilização deste profissional, pela obscuridade dos fatos ocorridos, nascidos de uma multiplicidade de causas, além do desconhecimento por parte das vítimas da etiologia do mal, da evolução do processo patológico, o acerto ou desacerto dos serviços profissionais, ou seja, a prova acabada da relação entre o dano e o fato médico afirmado de culposo, por não terem estas os conhecimentos técnicos necessários para a real compreensão dos fatos acontecidos e, conseqüentemente, para a produção da prova. Assim, a moderna jurisprudência, inclusive estrangeira, vem aplicando vários critérios de avaliação do ônus da prova a fim de possibilitar às vítimas realmente alguma chance de sucesso em demanda judicial desta espécie. Em primeiro lugar cabe referir que, como a obrigação do médico não é de obter um resultado mediato, como não assegura a cura, nem a recuperação da integridade 13

física, nem a vida do enfermo, tal profissional pode eximir-se de toda a responsabilidade demonstrando que o evento danoso se produziu apesar de ter cumprido ele com o seu dever. Ao médico sempre será mais fácil demonstrar que fez tudo o que estava ao seu alcance que para o enfermo provar que não fez o médico o que devia. Tanto o médico quanto o paciente devem aportar a maior quantidade de provas de que disponham para facilitar o julgamento da causa. Este enfoque se enquadra na chamada Teoria das denominadas Cargas Probatórias Dinâmicas, segundo a qual, em determinadas circunstâncias se produz uma transferência da carga probatória para o profissional, por encontrar-se este em melhores condições de desincumbir-se da produção de tal prova. Não se trata de fazer recair o ônus probatório sobre o profissional, mas de repartir-se a produção da prova, de forma que seja atribuído tal ônus a parte que mais facilmente a pode produzi-la. Desta forma, os contendores em um processo judicial colaboram com a administração da justiça, de forma com que possa ser atingida a verdade real, e, por conseqüência, um julgamento mais justo. Este o ensinamento de LUIS O. ANDORNO, (La Responsabilidade Civil Médica, in AJURIS, 59/224). Também não se exige a produção de uma prova de um evento negativo - inexistência de culpa -, mas, sim, a comprovação de que foram envidados todos os esforços, e de que o evento danoso teria acontecido mesmo com toda a atuação diligente do requerido. No caso concreto, é importante referir que a conduta do requerido não pode ser considerada como absolutamente correta com relação ao pronto e claro esclarecimento de como efetivamente se passaram os fatos, para dizer o mínimo, resvalando o demandado na ética em vários aspectos. Em primeiro lugar, a já mencionada burla na indicação do procedimento médico realizado, com o fim de que o SUS pagasse a cirurgia realizada. Em segundo lugar, não há nos autos nota de baixa, não podendo se avaliar o 14

tipo exato de tratamento cirúrgico proposto, nem foi feita a descrição padrão do ato cirúrgico, conforme informado pelo perito a fl. 367 (é certo que há alegação defensiva de que tal documento fora subtraído e substituído por outro. Contudo tal circunstância não se encontra completamente esclarecida). Também o requerido não procedeu à anotação da evolução médica do paciente nos prontuários, conforme se pode aferir nos documentos juntados nos autos e mencionado pela perícia a fl. 368 e 392. Como também informado pelo perito a fl. 392 ao responder o quesito 24, não há nos autos ficha clínica do paciente e nota de baixa, não se sabendo se o réu não preencheu tais documentos, ou deliberadamente deixou de juntá-los aos autos. O requerido alegou em sede de contestação e de depoimento pessoal que a morte do paciente ocorreu porque este apresentou hemorragia digestiva localizada no esôfago, causada por uma anomalia vascular, qual seja, uma artéria anômala neste órgão (Síndrome de Delafoye). Tal circunstância restou comprovada nos autos pela juntada do laudo da endoscopia realizada na vítima no dia 20 de julho de 2002 (fl. 163), bem como pela oitiva da médica que realizou tal procedimento, Dra. Cíntia Presser da Silva (fl. 509). Esclareceu ainda o réu que tal hemorragia teria causado volemia (baixa quantidade de sangue no paciente) da qual teria decorrido isquemia (falta de oxigenação) em diversos órgãos, que teria causado falência destes. O déficit de sangue também poderia causar a septicemia (infecção generalizada em mais de um órgão), sendo que esta sucessão de causas levou a morte do paciente. Contudo, embora deva ser reconhecido que a aludida hemorragia efetivamente ocorreu, tal circunstância não foi, no mínimo, a causa única da morte da vítima, bem como há nos autos indícios suficientes para que se possa concluir que o requerido não obrou com diligência necessária para evitar que tal evento levasse a morte do paciente. 15

Ocorre que a vítima, durante os 29 (vinte e nove) dias que ficou internada, apresentou um quadro progressivamente regressivo, conforme se constata pelo prontuário médico do paciente. Respondendo ao quesito 11 do demandado, o perito esclareceu a fl. 392 que as alterações no quadro clínico do paciente tiveram início antes de 04 de julho de 2002. Além disso, o paciente que tem volemia baixa (decorrente da perda de sangue) apresenta taquicardia e hipotensão (pressão baixa), conforme o próprio réu esclareceu em seu depoimento pessoal de fl. 436v. Ocorre que, ao contrário do que se seria esperar se a causa da morte fosse a hemorragia interna mencionada, a vítima somente apresentou hipotensão nas últimas horas de vida, conforme prontuário médico e laudo pericial (fl. 370). Sérgio, ao longo de toda a sua internação, sempre manteve sinais vitais estáveis, havendo inclusive menção de pico de hipertensão no dia 02 de julho, conforme prontuário médico fl. 329. Assim, ou tal hemorragia não era significativa, ou somente ocorreu quando o quadro do paciente já estava de tal forma agravado que não conseguiu suplantar tal perda de sangue. Destarte, esta sucessão causal para a morte da vítima não encontra subsídio em todos os elementos de prova do presente feito, não devendo ser reconhecida como idônea. A testemunha Cíntia Presser da Silva ainda mencionou que, para o vômito se tornar borráceo é necessário que o sangue permanecesse certo tempo dentro do estômago para que fosse parcialmente digerido. Desta forma, como Sérgio havia sofrido redução de estômago, tal sintomatologia indicava sangramento mínimo, uma vez que o estômago não tinha volume suficiente para que o sangramento se tornasse borráceo. 16

Necessário ainda referir que a testemunha Carlos Antônio Veronese Arpini esclareceu ainda que, com o procedimento tomado pela endoscopista (Dr. Cíntia Presser da Silva), qual seja, injeção de álcool absoluto e adrenalina, o sangramento deve ter sido estancado, não mais prosseguindo, eliminando tal causa de debilidade do paciente. Ademais, mesmo que considerássemos a hemorragia no vaso anômalo como causa significante para o êxito letal, ainda assim, de rigor o reconhecimento de que o réu não teria agido com toda a diligência necessária para a cura do paciente. Conforme esclarecido pelo Dr. Antônio Luiz Vinadé, a ocorrência de vômito fecalóide é indicativo da existência de sangramento nas vias digestivas. Assim, constatada a existência de tal sintoma, seria recomendado fazer investigação médica imediata das causas do sangramento associado. Ocorre que no dia 30 de junho a vítima apresentava vômitos com indícios de sangue, os quais se repetiram no dia 1º de julho, conforme informação do perito e cópias do prontuário médico (fl. 328 e 329). Já no dia 16 de julho o paciente apresentou vômito fecalóide, episódio que se repetiu várias vezes nos dias seguintes, conforme se pode constatar pelo prontuário médico de fl. 334 e seguintes (ressalte-se que algumas vezes é mencionada a existência de hematêmese, vocábulo este que significa vômito com sangue, conforme esclarecido pelo perito, fl. 369, última linha), sendo que somente no dia 20 de julho foi realizada a endoscopia que constatou a existência da hemorragia na região do esôfago e que procedeu ao estancamento deste sangramento com a utilização de álcool absoluto e adrenalina. Ressalte-se que a testemunha Antônio Luiz Vinadé mencionou em seu depoimento de fl. 507v que a existência de vômito fecalóide é indicativo da existência de sangramento nas vias digestivas, bem como que, constatado esse tipo de vômito, o procedimento correto é fazer investigação médica de imediato (grifo nosso), acerca das causas deste 17

sangramento. No mesmo sentido o esclarecimento da Dra. Cíntia Presser da Silva, que, em seu depoimento de fl. 509 mencionou que a cirurgia realizada pode originar um sangramento da área da anastomose. Constatados sangramentos posteriores (7 a 10 dias depois da cirurgia), por vômitos borráceos, é recomendável fazer investigação imediata (grifo nosso). No caso concreto, o demandado somente interveio depois de passados vários dias do início dos sintomas que indicavam sangramento nas vias digestivas. Necessário referir que no Hospital Centenário há possibilidade de realizar endoscopia a qualquer momento, conforme informado pela testemunha Antônio Luiz do Canto Vinade a fl. 507v. Destarte, se tal hemorragia foi de tal forma significativa para o falecimento da vítima como assegurado pelo réu em suas manifestações defensivas nos autos, de rigor o reconhecimento de que o demandado foi negligente ao ignorar a sintomatologia apresentada pelo seu paciente de que este apresentava sangramento nas vias digestivas, não realizando a tempo a necessária investigação da origem deste, bem como procedendo a necessária intervenção para estancá-lo. Contudo, considero que tal sangramento não foi causa significante para a morte de Sérgio, ou ao menos não foi o único fator determinante do seu falecimento. Conforme já referido, a vítima durante os 29 dias que ficou internado apresentou um quadro progressivamente regressivo, conforme se constata pelo prontuário do paciente. Já no dia 1º de julho iniciou-se discreta anemia no paciente, bem como o leucograma começou a apresentar desvio à esquerda, sinalizando padrão infeccioso do paciente. Tal situação persistiu durante os dias seguintes, havendo piora progressiva deste quadro, com agravamento da anemia e da infecção. Veja-se que nesta data ainda 18

não havia indicativo de sangramento causado pelo vaso anômalo, já que os vômitos fecalóides se iniciaram somente 2 semanas depois, no dia 16 de julho. O paciente já estava internado a mais de 25 dias quando se iniciaram tais sintomas, sendo que a não concessão da alta hospitalar decorreu de outras causas de intercorrência, quais sejam a mencionada anemia e a infecção, as quais guardam estreita relação com a cirurgia realizada. Portanto, estabelece-se um nexo de causalidade entre esta piora do paciente e a fase pós-operatória, na qual o paciente ainda estava sob os cuidados e sob responsabilidade médica do requerido. Necessário ainda referir que ao longo de todo o período posterior à intervenção cirúrgica, a vítima Sérgio apresentou secreção borrácea no ferimento e no dreno instalado, conforme se depreende das anotações do prontuário do paciente. A testemunha Carlos Antônio Veronese Arpini, médico que realiza cirurgias semelhantes às objeto do presente feito, esclareceu que a secreção borrácea não costuma perdurar por mais de 10 dias, sendo que tal testemunha mencionou que, em um caso em que estava presente tal situação (qual seja, a persistência da secreção borrácea por mais de 10 dias), chegou a cogitar a possibilidade de reintervir cirurgicamente, demonstrando a gravidade desta situação. No caso da vítima Sérgio não há notícias de que o requerido tenha tomado qualquer providência ou realizado qualquer procedimento para estancar tal sintomalogia, a qual denota que a evolução da cirurgia não estava dentro do esperado. Ressalte-se que tal testemunha ainda mencionou que o sangue decorrente da hemorragia interna não pode sair pela cicatriz cirúrgica, indicando que esta jamais teve evolução normal. Tal secreção evoluiu ao longo do período de internação da vítima, passando a se tornar purulenta (menção no dia 18 de julho e seguintes), com claro indicativo que havia 19

infecção na ferida operatória. Assim, tal omissão denota negligência do réu em realizar a necessária intervenção com o fim de afastar tal situação. É de se ressaltar ainda que, quando Sérgio foi levado à UTI do Hospital Centenário, o médico responsável por tal setor referiu no prontuário do paciente que havia sangramento através dos drenos de Penrose (fl. 370 e 338), no abdômen, denotando problemas com a cirurgia. O fato da endoscopia ter constatado que a anastomose estava pérvia, qual seja, a passagem estava liberada, e sem sinais de sangramento (fl. 163 e depoimento da testemunha Cíntia Presser da Silva, fl. 509) não afasta tal conclusão, pois tal exame não refere o estado das estruturas e tecidos além do estômago, não examinadas pela endoscopia e que também foram objeto de incisão e posterior sutura durante o ato cirúrgico. Veja-se que o atestado de óbito, firmado pelo médico Antônio Luiz Vinadé, mencionou como causas da morte de Sérgio Faria falência múltipla de órgãos, insuficiência renal aguda, insuficiência respiratória, septicemia e obesidade mórbida (fl. 19). É necessário referir que tal profissional realizou acompanhamento clínico da vítima, conforme esclarecido em seu depoimento de fl. 507v, sendo que sabia da existência da mencionada hemorragia decorrente de vaso anômalo no esôfago. Destarte, soa estranho que não tenha feito qualquer referência a esta causa (que seria significante segundo a versão apresentada pelo réu em sua defesa) quando da elaboração do atestado de óbito e que tenha alterado a causa da morte da vítima quando do seu depoimento em juízo. O detalhamento das causas da morte descrito no atestado de óbito de fl. 19 tem fundamental importância para a apuração da responsabilidade do demandado uma vez que realizado no momento do falecimento da vítima, sem a influência de fatores estranhos a real significância dos fatos. É de se ressaltar que tal profissional fez constar a obesidade mórbida como condição significativa que contribuiu para a morte, mas ignorou completamente a mencionada hemorragia, denotando assim a pouca (ou nenhuma) 20