A Empresa Pública de Informática e Informação: modelo de gestão e papel



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Transcrição:

A Empresa Pública de Informática e Informação: modelo de gestão e papel Gustavo da Gama Torres 1 Diretor-presidente da Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte Áreas de interesse: Engenharia de software, Administração pública, Gestão da informática PALAVRAS-CHAVE Administração pública - Modernização do Estado - Informática e informação RESUMO O artigo destaca os princípios que devem nortear a gestão da informática pública no Brasil, num contexto onde o modelo inspirado na gestão privada predomina. Foram levantadas as limitações desse modelo e os papéis que uma instituição de informática e informação pública deveria desempenhar. 1. INTRODUÇÃO Para entender o modelo de gestão pública de informática que prevalece no país é necessário conhecer o contexto do seu aparecimento e o formato institucional que foi adotado para sua implantação e consolidação. Reporta-se aos anos 50, quando uma onda modernizante varreu todos os setores da vida brasileira. Nos anos JK, uma parcela do setor público que experimentara uma dinâmica inovadora de gestão baseada no trabalho de Celso Furtado, inspirado em Raúl Prebish, perseguia um propósito de mudança e desenvolvimento, resultando em algumas instituições adrede implantadas para implementá-lo. A ditadura militar que se seguiu ao golpe de Estado de 1964 redefiniu, sob um caráter conservador, os mecanismos institucionais que seriam a base da ocupação do setor público brasileiro nos anos seguintes. Não obstante, foi introduzido um sentido reformista 1 E-mail: gustavo@pbh.gov.br 9

Gustavo da Gama Torres em algumas áreas do serviço público, auscultando a aspiração de um segmento da elite nacional, desejosa de superar o anacronismo ensejado de uma estrutura da economia ainda acentuadamente agrária, e sem perder de vista o perigo do socialismo. Algumas áreas do serviço público e alguns programas foram mantidos separados dos setores considerados atrasados e estimulados a buscar processos de gerenciamento semelhantes aos do setor privado, como forma de incrementar sua eficiência. As primeiras Empresas Públicas de Informática (EPI) foram criadas em 1964. Estas iniciativas têm um elevado conteúdo explicativo para a situação atual do gerenciamento da informática no setor público. Naquela época, o termo corrente para designar o que hoje está contido no significado atribuído à informática era processamento de dados e não incorporava os recursos de comunicação presentes no cenário da chamada informática ou telemática. Ademais, políticas de informação eram estritamente relacionadas ao tema da segurança de Estado. Políticas construídas de baixo para cima, que são marcadamente dependentes da qualidade do debate público e das informações que nele circulam, eram impensáveis. Nos anos seguintes, o país experimentou taxas de crescimento expressivas, apoiadas na forte presença do investimento estatal 2. Ao final desse período, o domínio da tecnologia foi apontado como um fator determinante, dentre outros, para a superação do problema de geração de déficits persistentes, tornando o clima propício para a intensificação dos investimentos públicos em informática, ao lado de uma política protecionista à indústria nacional. Esta vitalidade, que aparentemente cumpria a nobre destinação de propiciar autonomia a uma população pela via do domínio da tecnologia, paradoxalmente transmudou-se em anacronismo e em fragilidade. A nova modernidade que se instala nos governos nos anos 90, incorporava um liberalismo econômico sem peia e senão. Como é do conhecimento geral, a superação da Lei da Informática, juntamente com a nova Lei de Patentes, foi episódio emblemático para representar o estabelecimento da nova hegemonia liberal sobre a economia e a gestão governamental. O presente artigo parte do pressuposto de que a submissão aos postulados liberais trouxe um efeito desagregador importante, que não se resume, como querem os defensores mais ardorosos dessa doutrina na economia, ao movimento de destruição da parte ruim das estruturas estatais. Além da desarticulação de importan- 2 FURTADO [1999] refere-se ao papel do Estado no processo de desenvolvimento, análogo ao papel desempenhado pelos capitalistas nacionais no crescimento e consolidação das economias desenvolvidas dos países centrais. 10

A Empresa Pública de Informática e Informação: modelo de gestão e papel tes iniciativas de desenvolvimento tecnológico, a fragilização dos setores de informática e informação governamentais afetou negativamente a transparência e a eficiência de inúmeras áreas do serviço público. São colocados alguns argumentos sobre a necessidade de reorientação das políticas públicas de informática e informação, o que inclui o reposionamento das instituições públicas de informática, a modificação do modelo institucional que vem prevalecendo, e de definição de um modelo de gestão, com uma melhor caracterização desse papel institucional. 1. PARA REPOSICIONAR AS INSTITUIÇÕES DE INFORMÁTICA A idéia do reposicionamento pressupõe a existência de uma posição atual. Na verdade, as instituições de informática do setor público cumpriam dois papéis, muitas vezes contraditórios. De um lado serviam às políticas de reformas, visando um sentido de modernização. De outro, sob um enfoque administrativista, implementavam políticas de legitimação das estruturas de poder do Estado autoritário, propiciando um rosto novo aos velhos mecanismos de dominação. A exemplo de inúmeras instituições ligadas ao Estado, havia uma orientação de procurar situar as organizações de informática na vanguarda do conhecimento tecnológico e utilizar o poder de compra do governo como instrumento de política de desenvolvimento. Um dos fatores mais freqüentemente relacionados ao crescimento e à manutenção da atividade econômica, em níveis elevados, é o desenvolvimento tecnológico. Sua importância pode ser medida pelo aparato institucional dos países desenvolvidos e de muitos países de economia parcialmente desenvolvida, destinado ao fomento e à articulação da produção e difusão da tecnologia. O Brasil, ao longo de muitos anos e à custa de muito esforço, logrou formar um sistema de inovações [ALBUQUERQUE 1999], ainda que incompleto, superior ao de muitos países no seu estágio de desenvolvimento. A desnacionalização de nossa economia, provocada por uma privatização referenciada na geração de caixa para fazer frente ao custo da dívida mobiliária do governo, tem como efeito colateral a desarticulação de uma parte do Sistema de Nacional de Inovações [ALBUQUERQUE 1999], que vinha sendo financiado pelos sistemas estatais produtivos. Os setores estatais de informática que permaneceram, ao perderem sua capacidade de investimento, também reduziram sua presença frente ao Sistema Nacional de Inovações. Este perdeu duplamente: uma fonte de financiamento e o retraimento de um campo privilegiado de difusão de tecnologia. 11

Gustavo da Gama Torres Em todo o mundo, para fazer frente ao recrudescimento da competição internacional, que aos poucos substitui os mecanismos de cooperação multilateral, os governos intensificaram a proteção aos seus sistemas nacionais de inovação. Paradoxalmente, o Brasil tem exposto todas as componentes de sua estrutura produtiva à competição, em uma espécie de tudo ou nada, onde quem não é competitivo deve desaparecer, ao invés de quem não é competitivo deve procurar ser. O fracionamento e a alienação dos sistemas estatais produtivos e seus efeitos sobre a economia em geral, sobre o emprego em particular e sobre o sistema de inovações, provocam a retomada da questão do desenvolvimento sob novas bases. Embora o equacionamento do problema do desenvolvimento econômico esteja fortemente relacionado à situação política e social interna a cada país e de como a vontade política se organiza em torno desse objetivo, a crise econômica tem levado ao seu enfrentamento nas diversas localidades. O estímulo ao desenvolvimento e à rearticulação da produção, sob bases de cooperação local e regional, tem sido visto como sendo mais evoluído, mais próximo das vontades cidadãs, do que as formas tradicionais dirigidas pelos governos centrais, menos capazes de produzir respostas, em face da fragilização da federação frente à globalização. Supera as concepções correntes, pelas quais não seria possível uma estratégia local de desenvolvimento. Colocando de outra maneira, quando se pensa em desenvolvimento econômico, tende-se a pensar em estratégias baseadas na grande empresa, a exemplo do que ocorre atualmente quanto à disputa pela instalação de montadoras de automóveis, cujo assentamento estaria fora de alcance para definidores locais de política. Devem ser pensadas estratégias de baixo para cima, de caráter mais difundido pela comunidade, sustentadas por fatores, além dos econômicos, sociais, culturais e territoriais. Este tipo de desenvolvimento econômico de característica local, é baseado na utilização de recursos endógenos e pequenas empresas, dependendo essencialmente de agentes locais concentrando esforços nesse sentido. Além da coordenação dos atores socioeconômicos locais, é indispensável incorporar inovações tecnológicas e organizativas no tecido produtivo. Depende, fundamentalmente, da contínua capacidade de introduzir inovações no nível microeconômico da atividade produtiva local. Ao setor público caberia o papel de construir uma institucionalidade político-administrativa de respaldo ao desenvolvimento. Respostas atuais ao problema do desenvolvimento têm sido apoiadas no crescimento da economia baseada nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), evidenciando um papel mais destacado da informática e sugerindo maior cuidado em relação a políticas nesta área. Assim, as instituições públicas de informática podem jogar um papel importante. Para isso é necessária a orientação tecnológica para padrões abertos, cooperação intensiva com instituições públicas congêneres e centros de pesquisa, bem como integração regional através de polí- 12

A Empresa Pública de Informática e Informação: modelo de gestão e papel ticas públicas de fomento ao desenvolvimento, enfim, a reintegração ao Sistema Nacional de Inovações, desta feita, a partir da inserção local. Para completar o reposicionamento da instituição pública de informática, é indispensável que seu objeto de estudo - os governos com suas estruturas, finalidades e recursos seja tomado como um todo articulado. Implica na necessidade de desenvolver programas que projetem resultados integradores e que ultrapassem os resultados dos programas setoriais tomados separadamente ou limitados pelos períodos dos mandatos. A exemplo de inúmeras funções públicas que procuram calçar suas atividades a partir da leitura dos interesses dos protagonistas das diversas esferas públicas e de uma ética sustentada na busca do interesse público, os agentes da informática pública deveriam refundar seus objetivos consubstanciando uma nova função de governo. Tratar-se-ia de uma função de modernização, informática e informação, incorporando a temática de valores sociais, em especial a noção de direitos e cidadania: a Informática Pública. De um certo modo, seriam os conceitos inscritos inicialmente nas concepções de Simon Nora e outros, da chamada sociedade da informação, em oposição à concepção norte-americana da nova economia. 2. UMA NOVA INSTITUIÇÃO PARA UMA NOVA FUNÇÃO Vários estudiosos da administração pública no Brasil discorreram sobre a estratégia de tentar separar alguns setores, dentre eles o de informática, dos problemas de clientelismo e formalismo presentes no serviço público, através da criação de empresas estatais. Destaca-se a reforma administrativa de 1967. Orientadas ao lucro, os parâmetros de desempenho dessas empresas tenderiam a referenciar-se no mercado, mormente a captação, remuneração e regime de trabalho de seus quadros, como forma de aproximá-los da produtividade supostamente superior do setor privado. As primeiras empresas públicas de informática lançaram suas bases a partir dos setores de mecanografia e processamento de dados que vinham sendo organizados há algum tempo dentro da máquina governamental. A expansão dessas empresas deu-se, principalmente, no início dos anos 70. Com a crise de financiamento da economia brasileira nos anos 80, foram levadas, a exemplo de uma série de empresas estatais das mais diversas atividades, a buscar um status especial dentro do setor público. A lucratividade empresarial deixou de funcionar como critério de gestão. Créditos especiais, monopólios e isenções fiscais, articulados com razões políticas e sociais ditando as decisões de investimento, fizeram os custos e a lucratividade apurados, fictícios do ponto de vista do mercado. Neste cenário, os salários e critérios de remuneração diferenciados do serviço público tradicional constituíram-se, em algumas áreas, em privilégios, em face de 13

Gustavo da Gama Torres uma economia em contração. Estas distorções ofereceram alguns dos argumentos para uma campanha contra o serviço público em geral e as empresas públicas em particular, desviando o foco da questão principal: o problema de subfinanciamento da economia e a forma de alocação de recursos. A crise, o modelo de ajuste macroeconômico adotado para contorná-la e medidas de controle intragovernamentais resultantes, produziram uma espécie de modelo de finanças públicas de gerenciamento pelo caixa : desvinculação e centralização das receitas pela autoridade fazendária. A grande maioria das empresas públicas foi transformada em caixa de amortização do tesouro. Os novos métodos de administração financeira compreendiam: i) utilização das Empresas Estatais (EE) na obtenção de empréstimos e créditos de diversas naturezas; ii) acumulação de dívidas nas EE e procrastinações de pagamentos; iii) eliminação de subvenções sem eliminação de programas deficitários, de suporte a ações de governo, onerando as atividades produtivas; iv) não pagamento por serviços prestados. Sob este último aspecto, os critérios para liquidação das obrigações dos governos têm sido, ainda hoje, de pagamento da folha, em primeiro lugar, dos fornecedores privados, em segundo, e das empresas, de sua propriedade, por último. Poder-se-ia afirmar que esta situação definiu dois modelos ad hoc. O modelo da gestão financeira do Estado e o modelo da Informática Pública. Neste, os setores de governo usariam compulsoriamente a Empresa de Informática (EI), que, ao seu turno, procuraria enxergá-los como usuários voluntários. Ambos, presos nos limites estreitos impostos pela pressão do caixa do tesouro, estariam impedidos de compor um plano consistente de modernização. Embora seja comum haver reclamações quanto a qualidade dos serviços, a situação tornou-se de interesse do establishment da burocracia governamental. Em um ambiente deste, ninguém é obrigado a perseguir resultados e não é possível estabelecer indicadores de desempenho. A EI, apesar de ficar devendo em qualidade, mantém um certo status de excelência frente ao conjunto da máquina, que se justifica na impossibilidade de fazer melhor pela ausência de meios. A burocracia dispõe de um bode expiatório adequado para justificar seu baixo desempenho. Há pouca ou nenhuma iniciativa na requalificação do serviço público. Este modelo implicou não apenas no enfraquecimento da EI. Provocou, principalmente, o abandono do papel institucional para o qual ela e suas congêneres autárquicas (Autarquias e Fundações) foram criadas e que diz respeito à definição de políticas públicas de informática e informação. As ações ficaram condicionadas às políticas setoriais específicas, sem espaço para o estabelecimento de programas de articulação intersetoriais. O gestor da informática não se credenciou para exercer o papel de coordenação de políticas, e os usuários não buscaram a integração em sistemas governamentais horizontalizados. As conseqüências foram: i) incorporação da Tecnologia da Informação quase sempre pela sua componente instrumental, através dos sistemas informáticos, ao 14

A Empresa Pública de Informática e Informação: modelo de gestão e papel nível operacional das funções de governo; ii) manutenção da atrofia, nas entidades de informática e informação, do papel de coordenação de políticas; iii) substituição da cooperação por relações de troca mercantil ou de competição, e uma espécie de predisposição das EIs para serem ocupadas por setores privados. Essa predisposição se explica como decorrência da lógica de gestão privada que ainda preside a IP, cuja racionalidade máxima, voltada à redução de gastos, desaguaria nas privatizações, concessões de serviços ou terceirizações. Isto não implica, necessariamente, em custos mas baixos, além de produzir uma persistente instabilidade institucional das entidades. Com efeito, diversas entidades congêneres de informática pública, por serem simples ofertantes de serviços e não desenvolverem a gestão informacional governamental, são freqüentemente colocadas em xeque pelas políticas de ajuste macroeconômico, cujo apanágio é de promoção da redução do Estado, o que implica em desativação dos sistemas informáticos que sustentam seu funcionamento. Desse modo, o formato autárquico apoiado nos modelos de gestão privada, em especial o da EI, não foi capaz de responder ao desafio da gestão governamental da informática e da informação, principalmente quando exigido frente à necessidade de colocar a questão social como central. Por outro lado, para sistemas complexos, as administrações têm experimentado não uma, mas um conjunto de formas de organização, cada uma explorando as melhores possibilidades que sua natureza proporciona, unificadas na gestão, em torno de mecanismos complexos mas eficazes de coordenação. Trata-se da construção de sistemas governamentais com elevada coesão interna e eficiente articulação externa, compondo um sistema maior, de múltiplas organizações, inclusive as da sociedade civil, em torno de um tema maior. Os exemplos mais eloqüentes dessa afirmativa têm sido experimentados pelo setor da saúde. Por analogia, amadurece, há alguns poucos anos, a idéia de formar-se um Sistema Governamental de Informática e Informação (SGII). Diferentemente do sistema de saúde, que aos poucos encontra sua eficiência na descentralização, a partir de uma estrutura nacional, há a possibilidade de buscar a construção do SGII de baixo para cima, a partir do poder local e das vontades cidadãs que se forjam em torno de mecanismos de participação, a exemplo de conselhos populares em diversas áreas de gestão ou, até mesmo, das iniciativas de elaboração da peça orçamentária com as comunidades, conhecidas como orçamento participativo. Na seqüência, políticas de cooperação e coordenação regionais dariam ensejo à construção do sistema em seus níveis superiores. Para cumprir sua finalidade é razoável pensar que o sistema, localmente, especialmente nas grandes cidades, devesse estar organizado como uma rede de instituições [LEMOS1998], em torno de objetivos que podem ser inferidos dos papéis inscritos a seguir. 15

Gustavo da Gama Torres 3. PAPÉIS DE UM SISTEMA GOVERNAMENTAL DE INFORMÁTICA E INFORMAÇÃO Identificam-se pelo menos quatro papéis-chave para o Sistema Governamental de Informática e Informação (SGII). O primeiro papel refere-se ao Estado como um provedor de direitos. Neste caso, do Direito à informação. Resulta da herança racionalista da humanidade, inscrita nas promessas do Iluminismo. O reconhecimento formal do direito à informação não seria garantia para o seu provimento, que fica condicionado ao desenvolvimento de sistemas informáticos, passíveis de controle social. É um problema pouco explorado em nosso país. O segundo papel refere-se à presença do Estado no sistema de inovações, como coordenador de políticas. Aqui cabe lembrar a crescente importância do poder local no desenvolvimento das políticas em geral, e da política de gestão da informação, em particular, e os novos mecanismos de identidade e solidariedade. Foi comentado por vários autores [AFFONSO 1995] o efeito desagregador da globalização sobre a coesão federativa. Uma de suas manifestações mais perversas é a guerra fiscal, destruindo as possibilidades de cooperação regional. Isso revela, de maneira contundente, que a competição não é uma atitude adequada para presidir as relações institucionais do setor público, qualquer que seja a esfera de poder. A Tecnologia da Informação -TI pode alterar, de maneira significativa, as possibilidades de gestão dos governos locais, além de contribuir para processos ativos de cooperação e repactuação da solidariedade. Através do compartilhamento de investimentos para desenvolvimento de sistemas de informação, é possível incorporar know-how rapidamente, reduzir custos e obter sistemas padronizados, intercambiáveis, de maior estabilidade. A iniciativa de consorciamento de várias agências governamentais sob esta perspectiva ilustra a afirmativa. O terceiro papel articula-se com o segundo e diz respeito aos processos de gestão governamental. Esses devem ser desenvolvidos sob critérios públicos e orientarem-se para a integração sistêmica das funções de governo. A TI abre novas possibilidades de integração sistêmica. As maiores evidências sobre as vantagens de procurar compreender os sistemas, estudar suas interações e procurar integrá-los, estão nos exemplos da atividade econômica, da agricultura integrada, bem como nos empreendimentos articulados em rede ou da produção just in time. As componentes de integração da TI estão baseadas nas redes de computadores, padrões abertos de comunicação e técnicas de groupware 3. O desafio implica na necessidade de racionalizar o gasto com tecnologia, substituindo o consumismo tecnológico [KLIKSBERG1992], que preside as decisões sobre a informatização, pela pesquisa aplicada sobre Informática Pública. Como decorrência desta, a 16

A Empresa Pública de Informática e Informação: modelo de gestão e papel difusão do conhecimento consubstancia um conjunto de atividades à divulgação tecnológica, formação e capacitação. O quarto papel refere-se à autonomia da função informacional com relação às demais funções, no que diz respeito à sua finalidade, entendida como serviço a ser prestado, definição de seus mecanismos de financiamento e sentido desenvolvimentista. Até então, a decisão sobre adoção de uma solução informatizada, como suporte à execução de uma função, era tomada com base na análise de custo e benefício para a referida função. No setor privado, particularmente naquelas instituições que dão dimensão estratégica ao uso da TI, as decisões ocorrem baseadas na aferição do grau de contribuição do projeto de desenvolvimento apoiado em TI, para melhorar o desempenho geral da organização, com foco em seu negócio. O negócio do Estado é de provisão de bens e serviços, quando há uma insuficiência do mercado. Isto é feito através da oferta de bens públicos, definidos através de mecanismos de escolhas públicas. Neste sentido, a informação e o aparato necessário para obtê-la devem ser ofertados como bens públicos: sistemas informáticos, compreendendo redes, computadores e softwares, e o acervo de informações. É da Teoria dos Bens Públicos que se obtêm os argumentos para definir o objeto da Informática Pública [MUSGRAVE et al.1980]. O que caracteriza o Bem Público é que ele é um bem para todos. Ele tem que ser um bem dirigido para a sociedade, indistintamente. E, portanto, tem que ter dois princípios inscritos nele: o da indivisibilidade desse bem e o da não rivalidade. Ou seja, todos o usam e seu uso não enseja competição. Implica em custo marginal zero. O modelo para a gestão pública da informação funda-se no princípio de que as informações utilizadas e produzidas no Estado, devidamente classificadas segundo princípios definidos em políticas públicas, são Bens Públicos. Sua obtenção, armazenamento e difusão visaria à elevação da capacidade do Estado em responder às exigências das diversas funções públicas, como viabilização da aplicação do princípio geral de prestação de contas, ampliação dos espaços de democracia na ação do Estado e provimento do direito à informação. Os procedimentos de decisão sobre os bens públicos a investir devem ser baseados nos mecanismos orçamentários e devem considerar todos os elementos constitutivos do sistema, em especial as redes. De modo análogo ao papel das rodovias ou ferrovias para o setor de transporte, as redes são os meios de transporte da informação, sendo essenciais para os aspectos de integração. O uso social diz respeito à geração de externalidades positivas com o consumo privado de um bem (a exemplo da vacinação). Considera-se que se mais pessoas têm acesso aos serviços de transporte da informação, toda a coletividade se bene- 3 Uma técnica voltada para comunicação, colaboração e coordenação. 17

Gustavo da Gama Torres ficiaria com isso. Com efeito, até há bem pouco tempo, toda a legislação sobre telefonia, em diversas partes do mundo, consagrava a tarifa residencial subsidiada pela tarifa comercial. 4. CONCLUSÃO A complexidade da gerência informacional do Estado e o problema da democracia, da transparência, da integração sistêmica, colocam um novo desafio: a construção de um Sistema Nacional de Informática e Informação. A decorrência lógica dessa proposição é que toda a administração, e não somente os iniciados, seja envolvida no problema da informática e da informação, de maneira análoga às funções de coordenação de qualquer governo (planejamento, governo etc). Uma sólida base local, a articulação com sistemas de inovação, a descentralização da execução, articulação em rede, coordenação em programas de modernização, educação permanente e postura de disseminação de informações compõem os aspectos-chave da nova institucionalidade. KEYWORDS Public administration - Modernization of the State - Computer service and information ABSTRACT The article highlights the foundations that owe to direct the administration of the public sector information systems in Brazil, in a context where the model inspired by the private administration prevails. They were lifted up the limitations of that model and the papers that a computer service institution and public information should carry out. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [AFFONSO, R.; SILVA, P. (orgs.)] O federalismo diante do desafio da globalização em A federação em perspectiva. FUNDAP, 1995 [ALBUQUERQUE, E. M.] Infra-estrutura de informações e sistema nacional de inovações: notas sobre a emergência de uma economia baseada no conhecimento e suas implicações para o Brasil. CDE-Prodabel, 1999a. 18

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