APRENDER A CUIDAR: Consonâncias e dissonâncias de um binómio desafiante.



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Transcrição:

APRENDER A CUIDAR: Consonâncias e dissonâncias de um binómio desafiante. Arminda Costa Nota Introdutória Quando nos colocamos na perspectiva do cuidar, o desafio que é lançado aos formadores não é o de esculpir cérebros bem moldados, mas o de contribuir para a plasticidade destes cérebros, para a sua permeabilidade, a fim de lhes permitir uma abertura constante às coisas da vida, à singularidade dos outros. (Hesbeen, 2000, p. 67) Num mundo em crise de consensos e valores, reflectir sobre aspectos e perspectivas, que no ensino de Enfermagem se apresentam como problemáticos, designadamente sobre aprender a cuidar, é a preocupação que preside à elaboração deste trabalho. O ensino de enfermagem atravessou e continua a atravessar um conjunto de situações e problemas sobre os quais importa reflectir. A esta problemática está subjacente o facto de, embora existindo a clarificação global do modelo de formação académica dos enfermeiros face ao processo de Bolonha (pelo menos na cabeça de alguns!!!), tal como acontece com outras profissões que integram as equipes de saúde, subsistem áreas nebulosas no delineamento do processo de formação e de interligação profissão/formação, o que tem dificultado e atrasado a sistematização dos conceitos em que assenta a prática profissional, bem como o protelamento de uma afirmação social que, tem estado mais circunscrita ao interior de profissão, com dificuldade em ultrassar os muros da mesma. Quando me convidaram para a redacção deste artigo, logo percebi que este era o debate de eleição, pela sua pertinência, pela sua actualidade e pela transversalidade que o mesmo tem nas problemáticas do desenvolvimento da educação em enfermagem. Edgar Morin refere que os homens fazem a história que os faz, e a história faz os homens que a fazem. Não iremos conseguir fazer justiça nem aos homens nem à história. Iremos dar o nosso humilde contributo para um debate que nos tem apaixonado ao longo dos últimos tempos. Conceitos chave Enfermagem, Formação, Globalização, Cuidar

Cuidar: as mudanças a que temos assistido... que significados? A Enfermagem, tal como as outras profissões, tem sofrido nos últimos anos, talvez nos últimos 50 anos de um modo mais acentuado, profundas mudanças na sua estrutura e no seu significado social. O desenvolvimento das ciências biomédicas, as profundas alterações demográficas, económicas e culturais, a diversificação do perfil de respostas suscitado por novas problemáticas de saúde, a procura de territórios específicos das profissões, a emergência de novas profissões, o debate social sobre as fronteiras das profissões, a evolução do conhecimento de e sobre a enfermagem e os enfermeiros...têm determinado novas concepções de enfermagem, grande parte delas girando em torno de um conceito essencial: O CUIDAR! Conceito este que, pela sua polissemia, não é específico nem exclusivo da profissão de Enfermagem. O cuidar é tão antigo como a humanidade, tem a sua génese, para os cristãos, na metáfora da criação do homem: Deus criou-os homem e mulher para que se cuidem...sejam eles quem forem: pais, mães, filhos, grandes, pequenos, novos velhos, sábios ou ignorantes... É neste trilho criativo que, naturalmente, o ser humano iniciou a sua função de suporte e protecção das espécies vivas e mais especificamente, da espécie humana. Foi neste trilho, nem sempre rectilíneo, que cuidar já foi instinto, já foi vocação e hoje é assumido como profissão. A enfermagem insere-se no leque das profissões do cuidar. De há umas décadas a esta parte, tal como referem numerosos autores, o cuidar invadiu insidiosamente a profissão de enfermagem: primeiro pela mão das mulheres - mães, depois pela mão das mulheres de virtude, mais tarde por profissionais, mão de obra qualificada e dignificada pelo estatuto profissional que progressivamente foi adquirindo, no qual o desenvolvimento do percurso académico tem um papel importante. Neste processo de desenvolvimento, passaram a incluir o património do vocabulário profissional, palavras como: holístico, global, globalizante, cuidado personalizado, humanizado, reflexão,..; Acredita-se que os novos termos, mais actualizados, responderão à tentativa de diferenciar os cuidados de enfermagem de outros prestados por outros profissionais e serão, por isso, potenciadores do domínio independente e autónomo da enfermagem, e clarificadores dos domínios interdependente e dependente. Acredita-se também que os novos termos, porque fruto de estudos e de desenvolvimentos académicos, transportam a capacidade de desvendar soluções mais pertinentes, duradoiras e coerentes para o desenvolvimento da disciplina e da profissão. O cuidar em enfermagem é uma construção central tanto ao estudo e desenvolvimento da enfermagem como ciência humana como ao aprofundamento das ciências da educação enquanto explicação dos factos educativos relacionados com a pedagogia em enfermagem. Vejamos esta constatação nos definitórios profissionais: - Enfermeiro: é um profissional habilitado com o curso de enfermagem legalmente reconhecido, a quem foi atribuído um título profissional que lhe reconhece competência científica, técnica e humana para a prestação de cuidados de enfermagem gerais ao indivíduo, família, grupos e comunidade, aos níveis da prevenção primária, secundária e terciária; - Cuidados: são as intervenções autónomas ou interdependentes a realizar pelo enfermeiro no âmbito das suas qualificações profissionais. Os cuidados têm como característica: terem por fundamento a interacção entre o enfermeiro e o utente, família, grupos e comunidade; estabelecerem relação de ajuda com o utente; utilizarem

metodologia científica; incluírem, de acordo com os graus de dependência do utente, formas de actuação (Ordem dos Enfermeiros, 1998). A investigação que temos realizado (centrada sobretudo no cuidado de enfermagem às pessoas idosas) e a de outros investigadores, designadamente Abreu (2001) Amendoeira (2006) e Fernandes (2006) entre outros, permitem-nos considerar que: - o cuidado é um processo interactivo através do qual o enfermeiro e o utilizador dos cuidados ou seu próximo (familiar, cuidador ), se ajudam mutuamente (segundo as suas capacidades) no desenvolvimento, na actualização e na transformação mútuas, tendo como fim último: a acção de cuidar em si, a mudança de situação de saúde, a aquisição de competências, o conforto e bem estar da pessoa e ainda o morrer serenamente; - o cuidado de enfermagem, só o é verdadeiramente e só se alcança pela abertura íntima de um ao outro (o eu e o alter; o cuidado e o cuidador) pela determinação consciente de partilhar técnicas, ideias, conhecimentos e, incondicionalmente, emoções, construções, sentimentos e vivências; - o cuidado é o movimento quase eterno de devolver ao ser humano a sua dignidade. A acção de cuidar, como ciência humana, tem sentido em e por si mesma, não se caracterizando pela sua instrumentalidade. Partilhamos, em parte, a opinião de Paterson e Zderad sobre os elementos do cuidado: - encontro (o ser e a actualização); - entre pessoas (enfermeiro e utilizador dos cuidados); - numa transacção intersubjectiva (estar com e fazer com ou por); - que acontece num tempo e num espaço (cuja percepção é determinada pelo enfermeiro e pelo utilizador); - com uma finalidade determinada (bem-estar e actualização). À perspectiva apresentada pelas autoras, fruto da investigação que temos vindo a realizar com pessoas idosas, acrescentamos: - mediada por processos de negociação (os sujeitos podem negociar modos e meios de acção, de partilha e de interacção, cujas fronteiras eles mesmos estabelecem). Como refere Amendoeira (2006:283) os saberes utilizados pelos enfermeiros não só lhes permitem clarificar melhor as áreas de autonomização, como permitem desenvolver processos identitários mais consentâneos com a dinâmica que caracteriza hoje as profissões Esta ideia trás no seu encalço uma forma menos tradicional de entender o cuidado. Todos já sentimos e vivemos a saúde, a doença e o mal estar como situações de desequilíbrio. Mas será apenas biopsicofisiológico? Desequilíbrio orgânico caminha de mão dada com a evolução pessoal e social da pessoa. Uma simples dor de cabeça impede não só o exercício livre e pleno do trabalho (ou pelo menos determina o menor rendimento no mesmo), como origina diminuição do prazer de exercer o trabalho, questiona as capacidades do executante..., faz-nos sentir efémeros, passíveis de perdas mais ou menos profundas. O cuidado centrado no utilizador permite também clarificar o conceito de compreensão: atitude activa de empatia: mais do que aderir interiormente ao problema do utilizador (estaríamos perante o utilizador como objecto de cuidados...), compreender significa partilhar o fardo que o outro carrega (o utilizador como sujeito de cuidados). A compreensão inerente ao cuidado de enfermagem está relacionada com a intencionalidade dos actores. Como se infere das palavras de Erickson o critério básico de validade são os significados imediatos e locais

das acções, que se definem a partir do ponto de vista dos actores (Erickson: 196); esta asserção permite-nos considerar que as acções humanas têm sentido (compreensão) nos motivos dos actores. O cuidado de enfermagem, como acção humana, profissional, entra em sintonia, pela compreensão, com os desejos, as emoções e sentimentos da pessoa cuidada. O seu universo é o da descoberta do outro, o da restituição do sentido da vida, do bem estar, da saúde. A questão que colocamos, e sobre a qual importa reflectir, é a seguinte: como preservar a mais valia da centralidade do cuidado de enfermagem na pessoa do utilizador (as designações de doente, utente, cliente, assistido têm variado ao longo dos tempos e sobre as mesmas não existe consenso), considerando os múltiplos avanços e recuos que têm sido protagonizados quer pelos enfermeiros, quer pelas forças sociais que influenciam a decisão política? E como perspectivar a sua centralidade no desenvolvimento da formação? As primeiras sistematizações sobre o conceito de cuidado de enfermagem são de Madeleine Leininger e consideraram o cuidado como o domínio central do corpo de conhecimentos e das práticas de enfermagem. Não podemos deixar de fazer participar nesta discussão as três asserções que Leininger utilizou para cuidado: - Cuidados genéricos: Consistem nos actos de assistência, suporte ou facilitação prestados a grupos com necessidades evidentes e orientados para a melhoria e desenvolvimento da condição humana; - Cuidados profissionais: São as acções, comportamentos, técnicas, processos e padrões aprendidas cognitiva e culturalmente, que permitem (ou ajudam) ao indivíduo, família ou comunidade a manter ou desenvolver condições saudáveis de vida; - Cuidados profissionais de enfermagem: São todos os modos humanísticos e científicos, aprendidos cognitivamente, de ajudar ou capacitar os indivíduos, famílias ou comunidades para receber serviços personalizados mediante modalidades, culturalmente determinadas, técnicas e processos de cuidados orientados para a manutenção e desenvolvimento de condições favoráveis de vida e de morte (Leininger:1978). Aquilo que parece uma verdade simples, ou simplesmente fácil de apreender, tornouse o cerne de um debate apaixonante: o que é que os cuidados profissionais de enfermagem têm a mais do que os cuidados genéricos que são universalmente prestados pelos seres humanos? Os cuidados genéricos baseiam-se sobretudo na intuição e diferem dos cuidados profissionais pela sua não estruturação e função específica, embora sejam o seu suporte. Não basta ser bom, compreensivo, paciente e compassivo para prestar cuidados profissionais de enfermagem. O que diferencia os cuidados de enfermagem dos outros tipos de cuidados antes de mais é: - a sua finalidade: destinam-se a manter e a desenvolver nas pessoas saúde, conforto e bem-estar (mesmo no acto de morrer). Tendencialmente o seu objectivo é conduzir o ser humano para a homeostase; - a sua intencionalidade: integram-se em planos e surgem mediante sequências planeadas que são determinadas pelos objectivos, o que permite referenciar os cuidados de enfermagem a conjuntos de saberes organizados em torno de várias ciências (humanas e exactas) e o que por sua vez, caracteriza o seu desenvolvimento e transmissibilidade; - o seu grau de complexidade: a compreensibilidade do todo permite a recomposição das partes, mantendo a sua estrutura unificadora, o que reconduz os saberes

científicos operacionalizados em competências a um conhecimento útil e de compreensão evidente ao quotidiano dos cidadãos; - a sua especificidade: o agir profissional em enfermagem inclui o suporte e a ajuda aos seres humanos, característica indelével do agir técnico e relacional em enfermagem; - a sua tecnicidade: os gestos mais simples convivem com os actos mais complexos, assegurando, numa simbiose permanente, o vaivém técnica-relação e vice-versa. - a sua utilidade: os cuidados de enfermagem são socialmente compreensíveis e valorizados; - a sua característica unitária: o cuidado de enfermagem é transversal aos saberes e às práticas dos enfermeiros. A prática de cuidar é uma actividade co-operante, baseando-se na interacção entre quem cuida e quem é cuidado, e o seu êxito supõe a compreensibilidade do processo terapêutico e a sua sustentabilidade no acto de cuidar; coloca-nos, ainda perante o saber agir profissional, numa atitude não confinável ao saber fazer, porque interdependente com actos, atitudes e emoções significativas dos e para os sujeitos e seus contextos; porque dificilmente confinável à razão técnica, surge como acção social intencional e em contexto, implicando a interacção entre seres humanos e tendo como veículo unificador a compreensão do cuidado. Aderimos facilmente à análise apresentada por Abdel-Al (1975; 1992) para a clarificação de conceitos em cuidado de enfermagem: - Os cuidados de enfermagem são um serviço profissional porque se dirigem à pessoa, nas situações particulares de vida: saúde, bem-estar, doença, problema, situação concreta. - O serviço que a enfermagem oferece e a natureza dos cuidados são caracterizados por: complexidade, multidimensionalidade, dinâmica, continuidade, variedade, especificidade, particularidade, humanidade o que implica conhecimento e difusão próprias. - As intervenções dos enfermeiros têm intencionalidade própria, de acordo com as suas funções. A noção de cuidado de enfermagem como prática e não como técnica (ofuscada por vezes pelo modelo de racionalidade biomédica) poderá ajudar a enfermagem a recuperar na actualidade o alvo identitário dos cuidados; todos os cuidados de enfermagem, mesmo as acções dependentes de prescrição médica, mais do que ossos do ofício, são a parte invisível, desconhecida e não reconhecida que urge desvendar. Aprender a cuidar: a restituição de sentido Toda a pessoa adulta, é confrontada com um tempo global, em torno do qual vive e se movimenta e no qual o aprender assume uma importância elevada: o tempo da Escola, o tempo do emprego, os tempos livres, os tempos de grupo social, o tempo da família...e outros... Privilegiar o espaço para o diálogo, para a partilha das histórias pessoais, poderá constituir o fundamento de uma pedagogia transformadora; nesta perspectiva, e segundo as teses de Lindeman (1926), retomadas mais tarde por Donald Schon (1986), os factos e tempos da vida, constituem-se no elemento chave da educação de adultos através da experiência. Se a experiência constitui a vida, no dizer de Knowles (1989) " então a vida é fonte de aprendizagem".

Habituamo-nos a entender e olhar a formação, a educação e a aprendizagem, como episódios isolados autónomos, autonomizadores e autonomizantes: afirmo-me pelo que sei, sabendo mais eu sou autónomo, sabendo mais eu valho mais, tendo melhores notas, tenho melhor emprego. Knowles avança com alguns fundamentos para a aprendizagem dos adultos: "os adultos motivam-se para a formação, quando percebem que ela vem de encontro às suas necessidades; o seu modo de aprendizagem baseia-se sobre a realidade; a experiência constitui-se no maior factor de aprendizagem; os adultos aspiram profundamente a tomar decisões por si mesmos..." (1989, p:45). Motivação pela utilidade Colocamos a primeira questão, a partir deste primeiro pressuposto: Como despertamos o sentido do útil nos estudantes, nas aprendizagens relacionadas com o cuidar? Que necessidades os ajudamos a descobrir, para que a motivação se coloque como o pilar seguro da aprendizagem? Como familiarizamos os nossos estudantes com o terreno dos cuidados de saúde para que gostem e se desperte neles a paixão pelo cuidado às pessoas? O modo de aprendizagem Baseando-se a formação dos adultos sobre a realidade, toda a formação deverá ser concebida sobre situações reais e não à volta de assuntos: é nesta base que um Curriculum de Enfermagem pode, por exemplo, assentar na resolução de problemas... e são por demais conhecidas as inúmeras experiências que foram realizadas e, hoje, os numerosos exemplos de curriculum baseados na resolução de problemas, com a inúmeras vantagens que lhe são conhecidas: desenvolvimento e processos tutoriais de ensino, personalização do processo de aprender, construção do processo de aprender de acordo com as necessidades, inter e transdisciplinaridade das abordagens etc. É nesta base, também, que a tradicional aula à volta de um assunto, (dirigida e centrada em pequenos grupos de estudantes longe deverão estar os tempos das aulas em anfiteatro ) poderá tender para a análise de situações problema em que o utente a cuidar surge com dificuldades específicas e reais, que por sua vez, poderão conduzir ao estudo integrado de conceitos de anatomofisiologia, de patologia, de cuidados de Enfermagem, etc. Neste aspecto, tornam-se relevantes os critérios para a selecção das situações de aprendizagem, dado que a sua pertinência assegurará a interligação do trinómio: Actividade- Processo- Produto. A experiência É sabido que a aprendizagem resulta da participação activa e actuante em acontecimentos, factos, situações daí que os modelos experienciais se baseiem no conceito fenomenológico de aprendizagem: meio e significado caminham juntos, proporcionando a interacção dos estudantes com o meio do qual derivam os significados pessoais das suas

competências cognitivas. No Ensino de Enfermagem, a aprendizagem da prática clínica tem estado relacionada com este princípio. Os estudantes diferem na sua percepção dos acontecimentos, no meio e nos significados atribuídos aos fenómenos, daí que os resultados esperados resultantes da experiência, sejam variáveis. A análise integradora terá que ser feita; é o momento privilegiado do professor: à mesma mesa as diferentes percepções da realidade constituir-se-ão no processo apropriativo do saber; um saber diferente, vivido, discutido, assumido. A lógica de formar-se transporta o vivido da história de cada um, cujo sentido também é interpretado pelos utilizadores dos cuidados. Os métodos experienciais reconhecem a importância da percepção, do insight e da estrutura cognitiva do estudante ou da pessoa que aprende. Envolvem todo o estudante; decorrente deste envolvimento, a aprendizagem assume uma dimensão afectiva importante, mais duradoira talvez. A autodecisão dos adultos Não podemos concluir esta primeira parte, sem uma breve referência ao facto de os adultos aspirarem profundamente a tomarem decisões por si mesmos. Tal facto explica e suporta de que o papel do professor de Enfermagem se alicerce num processo dual: a partilha responsabilizante do processo de ensino/ aprendizagem, alicerça os fundamentos de um percurso que se pretende autónomo, mas a dois (aluno e professor), daí que se espere que o professor de Enfermagem não se limite a transmitir conhecimentos para em seguida os avaliar; antes, a participação dos alunos no processo é percebida e assumida com toda a objectividade. A reflexão inerente aos princípios de Bolonha ajuda a aprofundar este debate. Pensar a formação em enfermagem, numa perspectiva de desenvolvimento pessoal, social e profissional, em início de vida adulta, implicará uma formação que se constitua em experiência formadora, tal como C. Josso a concebe (2002, p:35 e seguintes), na qual haja articulação conscientemente elaborada entre actividade, sensibilidade, afectividade e ideação, articulação essa que se objective numa representação e numa competência. A mesma autora considera que a formação ou é experiencial ou não é formação. A mesma autora considera que há experiências mais ou menos significativas, conforme sejam experiências existenciais: as que se referem à coerência de vida, ou experiências pela aprendizagem: quando não colocam em questão as valorizações que orientam os compromissos de vida. A mesma autora considera dois tipos de experiências, que aqui assinalo, pela elevada relevância das mesmas na formação dos estudantes de enfermagem: experiências fundadoras e experiências significativas, sendo as primeiras de uma força maior que se

tornou orientadora ou reorientadora do projecto de procura do modo de viver e as segundas alimentam, confortam e prolongam de modo significativo a corrente de fundo das primeiras. Para que a experiência seja formadora terá de promover uma transformação que articula, hierarquicamente, saber fazer e conhecimentos, funcionalidade e significado, técnicas e valores, num espaço tempo que permite a presença a si e à situação, pela mobilização de uma pluralidade de registos (Josso, p: 28). Promover um processo de transformação pessoal implica desenvolver questionamentos sucessivos em atitude reflexiva permanente; esta é envolvente dos actores de aprendizagem: estudantes e docentes partilham as ferramentas desta aprendizagem experiencial. A profissão de professor de enfermagem, ao passar do séc. XX para o séc. XXI tem de examinar a sua identidade, as suas fronteiras, a sua maturidade, os seus paradigmas, a sua educação e os seus modelos práticos; a escola, por seu lado, deve utilizar estratégias que conduzam a aprendizagens inovadoras. O cuidar humano, não se confina à tecnicidade pedagógica, antes, exige um compromisso pessoal, social, moral, científico e espiritual do professor de enfermagem e um compromisso consigo, com os estudantes e com a sociedade (Watson e Bevis, 2005). Aprendizagem tutorial: uma forma de contratualização da aprendizagem do cuidar? O processo de Bolonha e as suas vicissitudes tem sido o mote para numerosos desenvolvimentos e inovações no palco do ensino de enfermagem. As grelhas, designadamente as que vieram normalizar os processos de adequação dos cursos, tiveram as suas vantagens e perversidades mas introduziram no léxico pedagógico sentidos inovadores. As horas tutoriais incluem-se nesta modalidade e podem representar um desenvolvimento significativo sobretudo se o seu enquadramento tiver em conta o desenvolvimento anterior do corpo de conhecimentos; se estudantes e professores assumirem o espaço de liberdade que este modelo proporciona. Sobretudo e, ressalvamos com especial veemência este aspecto, se a aprendizagem tutorial resistir à velha tentação de tudo ensinar e surgir como uma oportunidade de criação de percursos flexíveis de aprendizagem, suportado em textos avançados e com aspectos informados por conhecimento da e na fronteira da área da enfermagem, através da procura e sustentação de argumentos. Trata-se da aplicação de métodos de perspectiva humanista, cujo centro é o aluno e que se baseia no princípio de que os seres humanos têm uma motivação intrínseca para a aprendizagem e que se centra nos conceitos de aprendizagem auto dirigida e centrada no aluno. A aprendizagem tutorial, porque centrada no aluno especifica de forma clara, aquilo que o estudante vai e quer aprender, o modo de organização e desenvolvimento desta aprendizagem, em que tempo bem como os modos de avaliação. Relaciona-se com um dos pressupostos enunciados por Knowles e já aqui referido: os adultos estão dispostos a aprender devido à necessidade de se prepararem para o desempenho de papéis. As rápidas mudanças que se verificam ao nível dos conhecimentos, ocasionam inadequação dos programas standart; acreditamos que o estudante que é capaz de iniciar e dirigir o seu próprio estudo e aprendizagem, terá maior capacidade para enfrentar a mudança e terá mais competência para desenvolver um trabalho mais efectivo e autónomo do que aquele que não adquiriu com estas capacidades. E o que dizer dos professores? É verdade que grande parte das aprendizagens ocorre em sala de aula ou em laboratório. É verdade ainda que os professores de enfermagem são, de um modo geral, os seus condutores e mentores. Cremos, como numerosos autores, que a

relação com os utilizadores e com os pares é que é verdadeiramente relevante e significativa para a aprendizagem dos estudantes. Urge (re)inventar modos de estar em pedagogia de modo a desenvolver os níveis de transferibilidade do conhecimento e de adequabilidade da investigação realizada. Racionalidade técnica versus racionalidade prática. A obra de Schön: The Reflexive Practicionner, veio dar novo realce aos conceitos de racionalidade técnica e racionalidade prática e poderemos olhar o professor de enfermagem sob duas facetas antagónicas: - Dum lado, o professor que dá sempre as aulas segundo o programa, que utiliza boa técnica para as mesmas, que mantém os estudantes ocupados, que repete no ano seguinte a matéria do ano anterior (afinal o conhecimento não muda, tão depressa ), que não se adapta a situações singulares porque não as procura - Do outro, o professor que procura situações novas, sensível aos interesse dos alunos, reflexivo e crítico perante as situações e com elevada capacidade de autonomia na construção do seu conhecimento profissional, capaz de leitura dos contextos profissionais de enfermagem nos quais bebe a sua dupla inspiração: de professor e de enfermeiro. Schön atribui, em parte, a deterioração da imagem social das profissões a uma certa forma de profissionalismo baseado na ciência. As realidades complexas, instáveis do quotidiano são pouco susceptíveis de aplicação de regras e de princípios científicos. A prática requer outro tipo de racionalidade; aproxima-se pouco da ideia de reformular as técnicas a partir dos princípios científicos emanados pelas teorias e privilegia o encontro de novas soluções pela reformulação do problema. A reflexão (palavra que invadiu o léxico académico, nem sempre da melhor forma ), inerente à construção dos problemas (Schön refere que os problemas não chegam definidos às mãos dos práticos) implica: dar nomes às coisas, identificá-las, estruturá-las, relacioná-las, transformar o seu ângulo de visão, considerar irrelevante o que parecia fundamental e viceversa. Este processo constitui-se em intuições subjectivas, que não são mais do que a reorganização de conceitos interpretativos que, mediante nova configuração, permitem delinear o caminho da acção. O prático, na procura de soluções, perspectiva, discute, delineia alternativas, prevê implicações, tem em conta o resultado final. Em síntese: vê o fim do filme, ainda na construção do argumento. O trabalho com e sobre os problemas, a par do recurso à reflexão dialogante sobre o que se observa e se vive, conduz à construção activa do conhecimento na acção: Nesta conversação reflexiva, os esforços para resolver o problema (re)enquadrado trazem novas descobertas, que exigem uma nova reflexão na acção (Schön, 1983, p:132). A situação singular e incerta é compreendida na tentativa de a mudar; e é mudada na tentativa de a compreender. O que releva desta situação e que se afigura importante na formação de Enfermeiros para o cuidar, é uma transformação no ângulo de visão da questão formativa, o que não é pacífico, nomeadamente para o ensino formal dos Enfermeiros: a prática como fonte de conhecimento e de reflexão dos profissionais, mediante a investigação no contexto da prestação de cuidados, destinada à compreensão do que se faz, e a quem se faz, permitindo

ultrapassar as lacunas de um conhecimento profissional baseado na tradição e na autoridade (Formarier, 1988). Na perspectiva de Missenard o acto de Enfermagem inclui as vivências significativas e não significativas de cada um pois não é um gesto banal e repetitivo que se executa, antes é a sequência de um imperativo (de origem diversa...), e o resultado de uma experiência global onde se incluem as motivações e os fantasmas, as proibições, os ideais profissionais e as suas representações (citado por Meleis, 1991). As problemáticas do "saber Enfermagem" constituem eixos fundamentais de pesquisa, não apenas nas dimensões da formação inicial, mas também no significado e interpretação que os Enfermeiros fazem dessa mesma formação e de tudo o que possa ter sido formativo nas suas práticas. Tudo aquilo que, como adulto, o Enfermeiro sabe e faz na sua actividade, além de decorrer da percepção individual do que é a Enfermagem (Orem, 1980; Meleis, 1991), decorre também dos percursos e aprendizagens anteriores (Lesne, 1984) e inclui as vivências significativas e não significativas de cada um, ao longo do seu próprio percurso. Aprende-se a resolver problemas sobretudo relacionados com o campo de acção, o que confere ao saber experiencial um carácter local, mas interdependente de outras aprendizagens que se desenvolvem nas situações de trabalho e que se relacionam também com a divisão do trabalho. Síntese final Esta reflexão levou-nos a colocar em primeiro plano a experiência de cuidar, a experiência de aprender e a experiência de formar, de estar com para a elaboração e construção do saber profissional; mas leva-nos também a considerar que são as duas faces da mesma moeda: o desenvolvimento profissional é indissociável do desenvolvimento pessoal e a sua coerência dá sentido e suporta o desenvolvimento institucional, e no meio de tudo isto há algo de irredutível no ser humano (ou será que verdadeiramente a história se repete?) e não resistimos à tentação de terminar com uma recriação evangélica, intitulada A LIÇÃO e que ouvimos há muitos anos ao Professor Popkewitz e que sintetizamos (na impossibilidade de aceder ao texto ): Então Jesus levou os seus discípulos para a montanha, juntou-os à sua volta e começou a ensiná-los dizendo-lhes: - bem-aventurados os pobres de espírito porque será deles o Reino dos Céus; bemaventurados os mansos; bem-aventuradosos que choram; bem-aventurados os misericordiosos; bem-aventurados os que têm sede de justiça; bem-aventurados sereis quando fordes perseguidos; abençoados sereis quando sofrerdes; alegrai-vos e rejubilai: a vossa recompensa no céu será grande. Tentai lembrar-vos do que vos estou a dizer. Iniciou-se então entre os discípulos um interessante diálogo: "isto é para avaliação?" "teremos um teste desta matéria?" "e para quando é que temos de ter isto sabido?" "teremos que decorar todas estas palavras?" "teremos que nos levantar na frente de todos para dizer isto?" "mas os outros discípulos não precisaram de saber tudo isto..." "e o que vamos ganhar com tudo isto?". E Judas acrescentou: "será que isto nos vai tornar ricos?" E todos os discípulos falavam de forma semelhante. Então, um dos Fariseus que estava presente, pediu a Jesus para ver o plano da lição... e interrogou Jesus sobre os objectivos específicos do domínio cognitivo...e quis saber como ia

medir os comportamentos terminais de tudo aquilo, se já tinha pensado nos resultados esperados, se as competências previstas se encontravam segundo a lei! E Jesus Cristo chorou! A natureza prática da acção de cuidar (de formar ) adquire sentido na reconstituição processual da história dos cuidados. Torna-se por demais evidente que é insustentável a consideração do conhecimento em enfermagem como exclusivamente técnico. No saber enfermagem, cruzam-se o modo de ser enfermeiro (área implicativa) e a visibilidade dos cuidados (área explicativa). As conclusões dos trabalhos de Schön (1983; 1991; 1996) Tanner (1990) e Benner (1995) elucidam a lógica construtiva dos cuidados de enfermagem, salientando-se: - Que o conhecimento prático funciona como charneira para aplicação criteriosa dos cuidados; - Que o contexto em que a acção de cuidados se desenvolve é integrador do processo para a sua compreensão; - Que compreensão dos cuidados se situa no continuum da evolução da enfermagem; - Que como toda a acção humana, o conhecimento prático adquire sentido no contexto social e histórico; - Que a qualidade técnica dos enfermeiros evolui com a experiência, afastando-se da racionalidade técnica. Os saberes experienciais são pragmáticos e partilhados por uma comunidade de pertença, são sensíveis ao contexto local e de natureza compreensiva, isto é, interpretam o sentido, em função de uma situação específica (Toupin, 1991). A formação para o cuidar não deve esquecer estas permissas. Fica um longo caminho a percorrer, no qual se cruzam os desenvolvimentos das instituições de Saúde, as determinantes políticas e profissionais para o ensino e para a profissão enfim mas também o futuro dos Enfermeiros, da Enfermagem, das práticas profissionais e da formação. Referências Bibliográficas ABDEL-AL, H. (1975) Relating Education to practice within a Nursing Context. Tese de doutoramento não publicada. Edinburgh University. ABREU, W. (2001) Identidades, formação e trabalho: da formatividade à configuração identitária dos enfermeiros. Coimbra. Educa ABREU, W. (2007) Formação e aprendizagem em contexto clínico. Fundamentos, teorias e considerações didácticas. Coimbra. Formasau. BENNER, P. (1995)- De novice à expert. Excellence en soins infirmiers. Paris, InterÉditions. COLLIÈRE, M. (1989)- Promover a vida. Lisboa, SEP. COSTA, M. (1998) Enfermeiros: dos percursos de formação à produção de cuidados. Lisboa, Ed. Fim de Século. COSTA, M. A. (2001). Cuidar Idosos. Formação, práticas e competências dos enfermeiros. Coimbra: Educa/Formasau. ERICKSON, F. (1989). Métodos cualitativos de investigación sobre la enseñanza. In: M. Wittrock (Ed.), La investigación de la enseñanza II. Métodos cualitativos de observación. Barcelona: Paidos MEC. HESBEEN, W. (2000) Cuidar no hospital. Enquadrar os cuidados de enfermagem numa perspectiva de cuidar. Lisboa, Lusociência. JOSSO, C. (2002) Experiências de vida e formação. Lisboa. Educa. KNOWLES, M. (1990)- L apprennant adulte. Vers une nouvelle art de la formation. Paris, Les Ed. d Organisation. LEININGER, M. (1991) Culture care, diversity & universality: a theory of nursing. New York, NLN.

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