AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: UMA VISÃO DE SUA ATUAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL

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Transcrição:

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE ECONOMIA CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: UMA VISÃO DE SUA ATUAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO GABRIEL CORRÊA VASCONCELOS FONTES PEREIRA Santa Maria, RS, Brasil 2014

AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: UMA VISÃO DE SUA ATUAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL Gabriel Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria, como requisito parcial para a obtenção de grau de Bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Igor Castellano da Silva Santa Maria, RS, Brasil 2014

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas Curso de Graduação Bacharelado em Relações Internacionais AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: UMA VISÃO DE SUA ATUAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL. Elaborado por Gabriel Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais COMISSÃO EXAMINADORA: Igor Castellano da Silva José Renato Silveira Danielle Jacon Ayres Pinto Santa Maria, 09 dezembro de 2014.

DEDICATÓRIA Em memória a Leopoldo Ayres de Vasconcelos. (21/12/1932* - 14/09/2014 )

AGREDECIMENTOS Ao meu orientador, a minha família pelo apoio incondicional dado na minha graduação, a minha namorada pela paciência e para todos aqueles que contribuíram para minha formação como caráter, em especial ao meu avô Leopoldo.

RESUMO AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: SUAS FORMAS DE ATUAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL. AUTOR: GABRIEL CORRÊA VASCONCELOS FONTES PEREIRA ORIENTADOR: PROFESSOR MESTRE IGOR CASTELLANO DA SILVA Santa Maria, 09 de dezembro de 2014 O estudo terá como tema principal as Empresas Militares Privadas, entendendp como elas atuam no cenário internacional e traçar quais são os principais benefícios e malefícios percebidos na usa utilização. Para compreender esse fenômeno, é necessário entender o surgimento dessas empresas no final da Guerra Fria como características únicas criaram um novo mercado de segurança privada. As hipóteses principais do estudo são: (1) As Empresas Militares Privadas atuam tanto em conflitos armados conflagrados quanto em processos de resolução de conflitos. Na primeira situação, as EMPs podem ter uma participação tanto direta como indireta. No apoio a processos de resolução de conflitos, as EMPs prestam serviços secundários em missões de manutenção de paz como também tem uma participam de processos de Reforma do Setor de Segurança (RSS). (2) O balanço dos benefícios e malefícios está relacionado não apenas com os riscos que cada ator possui ao contratar as EMPs, mas também com os impactos na sociedade em que elas atuarão. Os pontos positivos podem ser destacados como a redução dos dispêndios militares no curto prazo, a mobilização rápida para o cumprimento dos serviços e a prestação de serviços especializados. Aos pontos negativos encontram-se a falta de controle que os contratantes têm sobre os contractors; a dependência do Estado nas EMPs; e o peso político e social que abusos aos direitos humanos por parte de funcionários das EMPs podem causar aos contratantes e a sociedade no seu local de atuação. Uma atuação mais sustentável para a atuação de EMPs parece ocorrer em processos de resolução de conflitos que não envolve emprego de força direto, mas a construção de capacidades, como no caso da Reforma do Setor de Segurança. Palavras-chave: Empresas Militares Privadas; Conflitos armados; Resolução de Conflitos.

ABSTRACT The study will have as the main theme the Private Military Companies, trying to understand their effect on the international scene and trace what are the main benefits and disadvantages perceived in their use. To understand this phenomenon, it s necessary to understand the emergence of these companies at the end of the Cold War as unique features created a new private security market. The main hypothesis of the study are: (1) The Private Military Companies act both in armed conflict and in conflict resolution processes. In the first situation, the PMCs may have an interest either directly or indirectly. In supporting the processes of conflict resolution, the PMCs provide secondary services in peacekeeping missions but also has a part in the Security Sector Reform process (SSR). (2) The balance of benefits and harms associated not only with the risks that each actor has to hire PMCs, but also the impacts on the society in which they will work. The strengths can be highlighted as the reduction of military expenditures in the short term, the rapid mobilization for the performance of services and the provision of specialized services. The negative points are the lack of control that contractors have on contractors; the dependence of the state in PMCs and the political and social impact that human rights abuses by officials of PMCs may cause to contractors and society as a place of work. A more sustainable performance to the performance of PMCs seems to occur in conflict resolution processes that do not involve direct use of force, but capacity building, as in the case of Security Sector Reform. Key words: Private Military Companies; Armed conflicts ; Resolving conflicts

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Imagem 1 Operações da Executive Outcomes em Serra Leoa (1995-1997) Figura 1 Estratificação de Empresas Militares e Segurança por Nikolaos Tzifakis Figura 2 Número de contractors pelo número de tropas norte-americanas no Iraque (2007-2011) Figura 3 Número de contractors por serviço no Iraque (2008-2011) Figura 4 Origem das Empresas Militares Privadas por país Figura 5 Histórico dos fundadores das EMPs Figura 6 Capacidades Dominantes das Empresas Militares Privadas (Baseado na classificação de Avant) Figura 7 Relação Proximidade com a Capital (50 milhas) com a Receita Total das EMPs (2006)

SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 11 1. HISTÓRIA DA ASCENSÃO DAS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: NOVOS ATORES, NOVOS CONTRATOS... 15 1.1 Definição de mercenário e Empresas Militares Privadas (EMP) suas principais diferenças.... 15 Mercenários... 16 Empresas Militares Privadas... 18 Diferenças entre Mercenários e Empresas Militares Privadas... 20 História dos mercenários.... 21 1.2 Situação no pós-guerra fria ambiente de expansão das EMPs.... 23 Conclusão do capítulo... 25 2. AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM AÇÃO... 26 2.1 Envolvimento direto nas operações de combate.... 27 Executive Outcomes expulsa rebeldes de Angola e Serra Leoa... 27 O caso angolano a Executive Outcomes entra no mercado... 27 Serra Leoa, guerra dos diamantes de sangue, Executive Outcomes mostra sua capacidade de combate... 28 2.2 Empresas Militares Privadas e seu envolvimento indireto nas ações de combate.. 31 Guerra do Iraque... 31 Do ambiente favorável ao boom da indústria.... 31 As Empresas Militares Privadas no Iraque e seus serviços... 32 Serviços de Segurança... 33 Serviços de apoio ao combate.... 35 2.3 Envolvimento em missões de paz da ONU.... 37 Estados-membros contratando as EMP em nome da ONU... 38 Missões de paz... 38 2.4 Empresas Militares Privadas como atores na Reforma do Setor de Segurança.... 40 Conclusão do capítulo... 43 3. PRINCIPAIS DEBATES SOBRE O USO DE EMPRESAS MILITARES PRIVADAS... 44 3.1 A geografia das Empresas Militares Privadas... 44 3.2 Empresas Militares Privadas e os impactos nas sociedades locais.... 48 3.3 Questões legais... 51

3.4 Balanço sobre os benefícios e malefícios do uso de Empresas Militares Privadas. 54 Conclusão do capítulo... 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 58 ANEXOS... 61 BIBLIOGRAFIA... 65

11 INTRODUÇÃO Em 1967, nasceu uma companhia mercenária, mas desta vez diferente daquelas antigas tropas as quais Maquiavel 1 descreveu no século XVI na obra O Príncipe. A Watch Guard International tinha seus fundadores e funcionários sido formados na tropa de elite do Reino Unido, a temida Special Air Service. Esta empresa tinha como intuito treinar militares com as táticas e técnicas aprendidas durante o tempo que serviram à Rainha e ofertar aos países que estivessem dispostos a pagar pelo treinamento (GARCIA, 2009, p.116-117). Estes militares aposentados iniciariam um fenômeno que ficaria muito evidente, a partir do final da Guerra Fria em 1991. Empresas Militares Privadas, como ficaram conhecidas, passaram a ter muita relevância nos conflitos. A evolução de simples empresas de aconselhamento a treinamentos militares esporádicos, como era o caso da Watch Guard International, para empresas com um escopo que cobrisse praticamente todas as facetas de uma guerra deu-se bastante rápido. O final da Guerra Fria gerou um ambiente propício para a ascensão destas empresas no mercado da guerra. O vácuo de poder deixado pelas grandes potências na periferia do mundo, fez com que antigas tensões desses países viessem a se confrontar, este fato propiciou o surgimento de vários conflitos interestatais e intraestatais nestas regiões. Aliados a isso, outros fatores como o alto contingente militar que foi dispensado pelos exércitos das grandes potências para a vida civil e a crença da efetividade dos mercados incentivada pelo neoliberalismo foram o combustível para que empresas militares privadas fossem formadas e crescessem. Esse ambiente conflituoso da década de 1990 fez com que muitos Estados possuíssem uma carência por segurança, ou seja, alta demanda por serviços militares especializados fizeram com que se criasse uma situação para essas empresas privadas que desempenhavam um papel de segurança tivessem uma oportunidade de suprir essa demanda. Não era a primeira vez que tal situação ocorria. Como mostra Tiago Borne (2008), em outras ocasiões históricas o fim de um conflito central leva ao incremento da atividade mercenária. Um exemplo pode ser visto na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), quando ao fim das hostilidades gerou o fluxo de os homens dispensados do conflito (tanto franceses 1 Nicolau Maquiavel (1469-1527) escreveu o Príncipe, considerado um dos mais importantes autores do realismo político, escreve um capítulo sobre tropas mercenárias, a qual despreza profundamente: As mercenárias e auxiliares são prejudiciais e perigosas; e se um príncipe fundamenta o seu poder nas armas mercenárias, não terá jamais sólido nem gozará de segurança, porque os soldados não se lhe afeiçoam, são ambiciosos, indisciplinados e infiéis, animosos entre os amigos, vis diante do inimigo; e não temem a Deus nem usam de lealdade para com os outros. (MAQUIAVEL, 1982, p.87)

12 quanto ingleses) à Itália renascentista, uma zona conturbada da época. Lá eles se tornariam condottiere 2. Diferentemente desses mercenários renascentistas que ofereciam seus serviços a quem pagasse mais, as Empresas Militares Privadas (EMPs) são corporações que operam na legalidade, mostram sua cartilha de serviços abertamente, têm acionistas e diretores, objetivam o lucro e podem atuar de forma simultânea em várias partes do globo. Essa maior institucionalização das atividades das atuais EMPs em comparação com os antigos mercenários não significa que não haja controvérsias e questionamentos sobre o seu uso em conflitos armados. Mesmo que seus contratos continuem sinuosos as EMPs aparecem para os meios midiáticos, muita das vezes como violadoras de direitos humanos. Há vários relatos de contractors violando direitos humanos desde o abuso da força até prostituição. Em grande parte, estes abusos são possibilitados pela falta de regulação tanto na esfera nacional quanto na internacional. Apenas alguns países tem uma legislação nacional que leva em conta a atuação dessas empresas ou que de alguma forma regulamente e restrinja suas ações. Contudo, recentemente iniciativas vêm sendo criadas com o objetivo de reduzir os abusos cometidos pelos contractors como o Documento de Montreux e o Código de Conduta das Empresas Militares Privadas. Este trabalho aborda o fenômeno da privatização da guerra, mais especificamente o caso das Empresas Militares Privadas. A tendência de crescimento para essa movimentação de privatização da guerra tem sido vital para se entender como os agentes vêm se comportando diante dos conflitos nessas últimas duas décadas. Enquanto que para a operação Desert Storm, realizada em 1991, somente um ente a cada cinquenta membros do corpo expedicionário americano era contratado, em 2003, quando do início das novas operações no Iraque, a proporção passou a ser um para cada dez. Em outras palavras, 10% das tropas passaram a ser compostos por soldados contratados (BORNE, 2008, p.10-11). O trabalho visa responder as seguintes perguntas de pesquisa: Como as Empresas Militares Privadas atuam no cenário internacional? Quais são os principais benefícios e malefícios percebidos na usa utilização? As hipóteses sugeridas são: 2 Nome dado aos mercenários do tempo da Renascença Italiana que formavam grandes companhias mercenárias. (COURAU, 2004)

13 1) As Empresas Militares Privadas atuam tanto em conflitos armados conflagrados quanto em processos de resolução de conflitos. Na primeira situação, as EMPs podem ter uma participação tanto direta, atuando como tropas que empregam força, como indireta, apoiando logisticamente os exércitos estatais e oferecendo segurança a terceiros em zonas de conflito. No apoio a processos de resolução de conflitos, as EMPs prestam serviços secundários em missões de manutenção de paz como também tem uma participam de processos de Reforma do Setor de Segurança (RSS). 2) O balanço dos benefícios e malefícios está relacionado não apenas com os riscos que cada ator que contrata as EMPs, mas também com os impactos na sociedade em que elas atuarão. Os pontos positivos podem ser destacados como a redução dos dispêndios militares no curto prazo e de eventuais pressões sociais no envio de tropas, a mobilização rápida para o cumprimento dos serviços e a prestação de serviços especializados (como segurança de pessoas e instalações em ambientes extremos). Aos pontos negativos encontramse a falta de controle que os contratantes têm sobre os contractors, podendo refletir diretamente na qualidade dos serviços e em custos excedentes no médio e longo prazo; a dependência do Estado nas EMPs, principalmente na questão tecnológica; e o peso político e social que abusos aos direitos humanos por parte de funcionários das EMPs podem causar aos contratantes e a sociedade no seu local de atuação. Uma atuação mais sustentável para a atuação de EMPs parece ocorrer em processos de resolução de conflitos que não envolve emprego de força direto, mas a construção de capacidades, como no caso da Reforma do Setor de Segurança. A principal finalidade deste trabalho é estudar as EMPs, focando-se na sua atuação estratégica, em como são efetuadas suas ações no cenário internacional atual e quais são as consequências positivas e negativas de seu uso. Mais especificamente, objetiva-se: (1) apresentar um histórico do uso de mercenários apontando as causas da ascensão das EMPs na última década do século XX e o escopo de seus serviços prestados; (2) levantar estudos de casos onde as Empresas Militares Privadas atuaram sob os diversos tipos de serviços em conflitos armados e na resolução de conflitos; e (3) debater os dilemas que as EMPs trazem para a comunidade internacional, discutindo pontos positivos e negativos no seu uso. Trata-se de um fenômeno contemporâneo nas Relações Internacionais, que afeta de forma significativa como os atores se comportam nos conflitos atuais. Entretanto, há escassez de pesquisas desse tema em território nacional, comparando com a produção em países que tem tradição na área. Além disso, importa problematizar o debate sobre o tema das EMPs e

14 seu emprego de sua força, uma vez que Estados e populações, contratantes e contratados, podem ser profundamente afetados por essas empresas, dependendo do tipo de atuação que as EMPs estejam executando. Metodologicamente, este trabalho de conclusão de curso em Relações Internacionais adotou o tipo de pesquisa descritiva que vai expor as características e a problemática envolvida no fenômeno da ascensão das EMPs. A abordagem do trabalho é do tipo hipotéticodedutivo. Também será utilizado o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica mediante o uso de fontes como pesquisas acadêmicas, dados nas Organizações Não-Governamentais, grupos de estudos, Think Tanks e relatórios governamentais relacionados às EMPs. Este trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo trará a história da ascensão das Empresas Militares Privadas, bem como mostrará como e porque essas empresas diferem dos antigos mercenários e porque não devem ser tratados sob mesma ótica. O segundo capítulo abordará como as Empresas Militares Privadas atuam durante e na resolução dos conflitos, seu envolvimento direto e indireto nos combates e seu apoio a missões de paz e nos projetos de Reforma do Setor de Segurança. No terceiro capítulo, o trabalho trará o arranjo global das EMPs, quais sejam: os principais países aonde se encontram as iniciativas de regulação da indústria, (i.e. Documento de Montreux e Código de Conduta), e, por fim, o balanço sobre pontos positivos e negativos percebidos em sua utilização. Há grandes incertezas sobre a viabilidade e sustentabilidade da utilização de EMPs em conflitos armados, haja vista que a sua utilização pode implicar custos significativos no longo prazo para contratantes e populações onde elas atuam. Já na esfera da resolução de conflitos vislumbra-se possibilidades menos danosas, já que envolvem atuação prioritariamente indireta. Contudo, essa participação é válida desde (1) que existam normas muito bem estruturadas para que possa haver punições sobre o estabelecimento de algum excesso por parte dos contractors e (2) envolva um direcionamento estatal adequado em processos de reconstrução de Forças Armadas nacionais.

1. HISTÓRIA DA ASCENSÃO DAS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS: NOVOS ATORES, NOVOS CONTRATOS 15 Mercenários são utilizados desde sociedades antigas. O primeiro registro histórico de sua utilização remonta à Batalha de Kadesh, entre egípcios e hititas no ano de 1294 a.c. Ao longo da história, os mercenários mostraram que, caso bem empregados, poderiam ser decisivos no contexto dos conflitos armados. Este primeiro capítulo buscará distinguir os mercenários clássicos na atuação das Empresas Militares Privadas (EMP) e a ascensão dessas empresas. O período que compreende esta ascensão começa ao final da Guerra-Fria e perdura na contemporaneidade. As EMPs atuaram na década de 1990 principalmente no continente Africano. Mas é possível verificar suas ações na Europa, em regiões de desintegração da União Soviética, e no sudeste do continente asiático. Nos anos 2000, há uma mudança de cenário de atuação dessas empresas. Com o ataque de 11 de setembro, as empresas passam a se concentrar no Oriente Médio, especificamente no Iraque e no Afeganistão. Houve uma escalada da demanda pelas Empresas Militares Privadas nos acontecimentos após 11 de setembro, especialmente no Afeganistão e Iraque, e uma conexão com a defesa de sua pátria (para empresas e/ou contractors estadunidenses). A confluência de todas essas dinâmicas levou tanto o surgimento e rápido crescimento da indústria militar privada. Não há sinais de que essas tendências vão diminuir ou reverter no futuro previsível (SCHEIER; CAPARINI, p.6) 3. O desempenho das EMPs se dá pelo intermédio de contratantes diretos dos governos, e também por vários outros atores no cenário internacional como empresas multinacionais, Organizações Não-Governamentais (ONGs) e Organizações Interestatais para diversos fins. 1.1 Definição de mercenário e Empresas Militares Privadas (EMP) suas principais diferenças. Apesar de muitos não fazerem a distinção entre os contractors e mercenários, existe uma diferença muito grande entre estes atores. Por isso, é necessário conceitua-los e mostrar porque devem ser analisados diferentemente. 3 Finally there has been the escalation in the demand for PMCs and PSCs in the wake of 9/11, particularly in Afghanistan and Iraq, and in connection with homeland defence. The confluence of all these dynamics led to both the emergence and rapid growth of the privatized military and security industry. There are no signs that these trends will slow or reverse in the foreseeable future.

16 Mercenários O Grande Dicionário Unificado da Língua Portuguesa traz a definição de mercenário como: Aquele que trabalha por soldo, sem idealismo algum; ávido de ganho; soldado que por dinheiro serve a um governo estrangeiro (RIOS, 2010, p.451). Outra definição mais recente e completa diz que o mercenário é um indivíduo de organização financiada para agir em uma entidade estrangeira dentro de um escopo de serviço militar, incluindo a condução de operações de característica militar, sem levar em conta os ideais, compromissos legais ou morais, e nacional e internacional" (GODDARD, 2001, p.8). Conectando a uma definição mais normativa, pode-se retornar às conferências diplomáticas de Genebra que aconteceram nos anos de 1974 e 1977. Essas conferências resultaram de protocolos adicionais às Convenções de Genebra de 1949 em que foram debatidos os assuntos relacionados com proteção de vítimas em conflitos armados internacionais (protocolo I) e internos (protocolo II) (MIGUEL, 2011, p.14-15). Assim, no que consta o Artigo 47 do Primeiro Protocolo Adicional das Convenções de Genebra de 1949, intitulados Mercenários, pode-se ler o seguinte: 1) Um mercenário não terá direito da ser um combatente ou prisioneiro de guerra; 2) Um mercenário é qualquer pessoa que: a. Seja especialmente recrutada localmente, ou no estrangeiro, para combater num conflito armado; b. Tenha, de fato, uma ação direta nas hostilidades; c. Seja motivado para atuar nas hostilidades essencialmente pelo desejo de ganhar proveitos pessoais e a quem, de fato, lhe tenha sido prometido por uma das partes envolvidas no conflito, direta ou indiretamente, uma compensação material substancialmente acima da que é prometida ou paga aos combatentes de suas forças armadas, de patentes e funções idênticas, dessa mesma parte; d. Não seja nem cidadão de uma das partes do conflito, nem reside nem território controlado por um das partes em conflito; e. Não seja membro das Forças Armadas de nenhuma das partes em conflito; f. Não tenha sido enviado por um Estado, que não seja parte no conflito, para cumprir uma missão oficial enquanto membro das suas Forças Armadas.

A classificação de mercenário vai além da caracterização de pessoa ou entidade. É necessário fazer uma melhor diferenciação entre estes atores e as Empresas Militares Privadas. Para isso, destaca-se a colocação por Schreier e Caparini: Tradicionalmente, os mercenários foram definidos como estrangeiros contratados para tomar parte direta nos conflitos armados. As principais motivações sempre são ditas ser os ganhos monetários, em vez da lealdade a um Estado. Por isso, que são chamados de soldados da fortuna. (...) Às vezes, eles são veteranos de guerras passadas ou insurgência que procuram por qualquer novo conflito para continuar o que faziam antes: lutar (SCHEIER; CAPARINI, 2005, p.16) 4. 17 No senso comum, a principal ideia sobre a atividade mercenária se resume no ganho monetário. Essa superficialidade do termo não atinge a amplitude dos aspectos que determinam a atividade em si. Muitas vezes, ex-combatentes não conseguem se habituar à vida civil, e os programas de reingresso propostos por seus países não são eficazes, fazendoos voltarem para atividade que exerciam antes. A maioria desses mercenários age de forma ad hoc. Eles advêm de várias nacionalidades, incluindo ex-combatentes do bloco soviético como ucranianos, russos e sérvios, de países sul-africanos, norte-americanos, israelenses, etc. Esses indivíduos lutam por todo o globo, onde haja um conflito e possibilidade de emprego. São, muitas vezes, acusados de banditismo e de quebra dos direitos humanos. Scheier e Caparini afirmam, por exemplo, que estes cães de guerra são conhecidos por sua deslealdade e falta de disciplina (SCHEIER; CAPARINI, 2005, p.16). São, acima de tudo, soldados freelancer (autônomos), sem residência fixa, que buscam grandes quantias em dinheiro, lutam por causas duvidosas, jogam com os dois lados para ver quem consegue comprá-los ao preço mais alto, e, em função disso, prolongam os conflitos com interesse em continuar obtendo ganhos. Essas características parecem vir permeando a história. Desde os tempos de Maquiavel, pelo menos, mercenários são descritos como homens com que se deve ter muito cuidado, a priori evitados: As mercenárias e auxiliares (tropas) são prejudiciais e perigosas; e se um príncipe fundamenta o seu poder nas armas mercenárias, não terá jamais sólido nem gozará de segurança, porque os soldados não se lhe afeiçoam, são ambiciosos, indisciplinados e infiéis, animosos entre os amigos, vis diante do inimigo; e não temem a Deus nem usam da lealdade para com os outros (MAQUIAVEL, 1982, p.87). 4 Traditionally, mercenaries have been defined as non-nationals hired to take direct part in armed conflicts. The primary motivation is said to be monetary gain rather than loyalty to a nation-state. This is why they are also called soldiers of fortune. Mercenaries can also be misguided adventurers, but often they are merely disreputable thugs, ready to enlist for any cause or power ready to pay them. Sometimes, they are veterans of a past war or an insurgency looking for whatever new conflict to continue in what they did before: fighting.

18 É por isso que o termo mercenário ainda é carregado de estereotipagem e a primeira vista, a própria definição de Empresas Militares Privadas implica em seu nome uma conotação negativa. No entanto, o rótulo de mercenário é inapropriado quando aplicado a Empresas Militares Privadas. (MAGALHÃES, 2005, p.159). As EMPs podem ser descritas como uma nova realidade dentro do fenômeno histórico de uso de entidades privadas em conflitos. Empresas Militares Privadas Antes de tecer uma definição mais clara das várias tipologias que autores adotam para se referirem às Empresas Militares Privadas, vale notar que não existe uma normativa internacional que expresse a diferenciação das EMPs da ação mercenária. Mesmo a ONU não faz essa separação. Existem poucos países que regulam essa atividade de serviços relacionados à guerra, um exemplo é os Estados Unidos que têm a regulação mais complexa para a exportação e contratação desses serviços. Por isso, não será usada uma normativa em especial para a definição dos serviços dessas empresas, contemplando assim uma definição acadêmica dos autores que dissertaram sobre o assunto. Quando descreve-se o que são Empresas Militares Privadas, existe a dificuldade de tentar classificá-las em certas categorias. Lueka Groga (2011) prefere a separação das Empresas Militares Privadas em companhias que provêm suporte ao combate direto. Seriam aquelas que atuam diretamente nas ações de combate com o objetivo de acabar com o conflito, servem como complemento das forças nacionais, e podem funcionar como substituição das forças nacionais. Uma segunda classificação seriam as empresas prestadoras de apoio ao indireto ao combate. Na verdade sob esta forma age a grande maioria das EMPs. Aqui o escopo de macro serviços é maior e vai desde consultoria militar até a segurança de instalações, ou seja, não participam diretamente do combate, mas influem nele através de serviços prestados de suporte (GROGA, 2011, p.8-9). Outro autor que faz a estratificação das Companhias Militares Privadas é Nikolaos Tzifakis (2012). Para ele, pela diversidade de serviços e pelas características das operações das diversas empresas se faz necessária uma especificação para um melhor entendimento do

19 assunto. Além de diferenciar empresas de segurança privada, que prestam serviços de segurança de instalações e pessoas, de empresas militares privadas, Tzifakis (2012) propõe uma diferença entre Military Provider Companies (Companhias Prestadoras de Militares), prestadoras de apoio direto de combate; Military Consulting Companies (Companhias de Consultoria Militar), que provêm treinamento militar e consultoria militar; e Military Support Companies (Companhias de Suporte Militar), companhias de logística que atuam em zonas de conflito (ver figura abaixo). Figura 1 Estratificação de Empresas Militares e Segurança Privadas por Nikolaos Tzifakis (2012). Empresas Militares e Segurança Privadas Empresas Militares Privadas Empresas de Segurança Privada Military Provider Companies Military Consulting Companies Military Support Companies Autor: TZIFAKIS, 2012, p.11. Adaptação: PEREIRA, 2014. Diferentemente dos autores que preferem essa classificação mais minuciosa Peter Singer (2003), procura entender essas empresas como um complexo único. Ele reconhece que existem diferenças, mas prefere colocá-las como Firmas Militares e englobá-las num espectro maior. As delibera como: (...) organizações com fins lucrativos que oferecem serviços profissionais intrinsecamente relacionados com conflitos. Elas são corporações que se especializam na provisão de habilidades militares incluindo operações em combate tático, planejamento estratégico, análise e coleta de inteligência, suporte em operações, treinamento de tropas e assistência técnica à militares (SINGER, 2003, p.8). Continuando essa análise, Miguel (2011) referencia as EMPs num aspecto mais amplo. Ele expõe que as EMPs são corporações multifacetadas não só no espectro do combate

direto; mas que também adicionam prestações de serviços diferenciados como consultoria militar e apoio logístico militar: Assim, considera-se que as EMP são organizações profissionais privadas legais, de caráter permanente e transnacional, cuja estrutura corporativa assenta numa lógica empresarial, que comercializam e competem num mercado aberto e global, e que fornecem serviços intimamente relacionados com a guerra, nomeadamente no âmbito de combate militar, consultoria militar e de apoio militar (MIGUEL, 2011, p.14). Diferenças entre Mercenários e Empresas Militares Privadas 20 Após essa discussão inicial, pode-se buscar uma melhor diferenciação entre as EMPs e os mercenários. O primeiro módulo de diferenciação é a forma comercial. Os mercenários são contratados em ad hoc, enquanto Empresas Militares Privadas formam complexos permanentes e claramente hierarquizados, capazes de competir e sobreviver no mercado internacional (BORNE, 2008, p.60). Outro ponto importante é que essas empresas buscam lucros em longo prazo, não de forma imediatista que motivam mercenários (ROBERTS, 2007, p.2). As EMPs competem no mercado internacional de forma aberta. Em países onde exigem certa legislação são obrigadas a prestarem contas e a fornecer relatórios de suas atividades e de seus contratantes. Os mercenários, por sua vez, são atores internacionais marginalizados, (...) geralmente devem atuar na sombra da lei. (BORNE, 2008, p.60). Outra diferença entre estes dois atores reside nos seu escopo de serviços, sendo que os contractors podem oferecer uma gama de serviços muito maior e complexa que serviços oferecidos por mercenários. Sobre os tipos de clientes que cada um pode possuir Borne exemplifica: A própria clientela dessas empresas tende a ser muito mais diversificada do que aquela que recorre aos soldados da fortuna. Não apenas Estados, mas também Organizações Internacionais como as Nações Unidas, Organizações Não- Governamentais (ONGs) e mesmo empresas comumente alugam os Serviços das EMPs. Dessa sorte, muitas delas são capazes de trabalhar para múltiplos clientes em múltiplos mercados e teatros de operação simultaneamente (BORNE,2008, p. 61). Os integrantes das EMPs são contratados de forma aberta como qualquer outro emprego no setor privado, os contractors são constituídos de ex-militares competentes, que geralmente já passaram por operações de combate ou que possuem uma habilidade específica. Como não há necessidade de treinamento pesado, apenas uma adequação à realidade da empresa, se faz com que a empresa não precise desprender muito recursos para programas de

21 treinamento. Esse tipo de seleção proporciona aos empregados dessas firmas níveis de disciplina e coesão dificilmente encontrados em forças mercenárias (BORNE, 2008, p.61). Pode-se visualizar na tabela abaixo um resumo das principais diferenças: Tabela 1 Mercenários x Empresas Militares Privadas Mercenários EMPs Organização Individual Temporal ou Ad Hoc Corporativa Hierarquizada Permanente Eficiente Competitiva Motivação Remuneração Individual com lucro em curto prazo Pensamento empresarial com lucro em longo prazo Serviços Operações exclusivamente de combate direto para um único cliente por vez. Escopo diversificado (treinamento, logística, inteligência) atuando com vários clientes, simultaneamente. Recrutamento Pouco transparente Público e especializado Autor: BORNE, Thiago (UFRGS), 2008. Fonte: SINGER, 2008. Adaptação: PEREIRA, 2014. História dos mercenários. A ideia de olhar para o setor privado fornecendo proteção e defesa para os Estados está longe de ser um fenômeno novo. De fato, pode-se argumentar a suposição que o fornecimento de defesa nacional através das Forças Armadas é principalmente, se não exclusivamente, a responsabilidade do Estado, setor público, tem sido mais a exceção do que a regra (EDMONDS, 1999, p.115) 5. 5 The idea of looking to the private sector to provide for the defense and protection of the state is far from being a new phenomenon. Indeed, it might be argued that the assumption that armed forces and the provision of

22 Singer (2003) aponta para o fato dos mercenários estarem sempre presentes na história das guerras. O autor divide o histórico de conflitos em alguns períodos que acompanham a história, comprovando que houve mudanças da dinâmica de como operavam os mercenários, e que características permearam cada período (SINGER, 2003, p.19-39). O primeiro período se refere à Antiguidade, com exemplos como a Batalha de Kadesh, em 1294 A.C., situação onde o Faraó Ramsés II do Egito usou tropas núbias contra os hititas. Cartago é outro exemplo, sua formação e expansão foi o alto uso de seus mercenários. Tal dependência motivou uma revolta durante a Primeira Guerra Púnica (264-241 A.C.), naquela que ficou conhecida como Guerra dos Mercenários. Roma também tinha em sua política o alto uso de mercenários, utilizou-os por quase toda sua existência, tanto que ao final do século I, existam mais soldados germânicos em suas fileiras do que romanos. Na segunda fase, no período medieval, o sistema feudal impunha um tipo de serviço militar que não possuía uma qualidade boa. Desse ambiente, surgiram condições propícias para que mercenários se especializassem em algum tipo de arte militar. Essas artes requeriam um elevado grau de especialização e treinamento. Como exemplo, pode-se referir ao manejo do arco e flechas e das bestas. Os mercenários ofereciam os seus serviços pelo valor mais alto, o que fazia com que a contratação de seus serviços fosse realizada com extrema atenção. A Itália renascentista foi outro um dos palcos principais destes soldados da fortuna. Muitas cidades-estados estavam dispostas a pagar uma quantia atrativa para esses homens. Esse marco profissionalizou a arte da guerra através de contratos chamados de condotta entre os líderes italianos e as companhias mercenárias, implementando assim, os conhecidos condottieri.as primeiras companhias que prestavam serviços militares privados surgiram quando os mercenários e as tropas dispensadas de outras partes da Europa, principalmente da Guerra dos Cem Anos, perceberam que ganhariam mais se trabalhassem em grupos organizados. A partir disso, nasceram companhias como Compagnia Bianca del Falco (1338-1354), que chegou a compor um contingente de mais de 10.000 homens que atuavam em toda a região da atual Itália, e a Gran Compañia Catalana (1302 a 1388), que desenvolveu parte de suas atividades em Atenas, onde governou por mais de 60 anos (HOLMILA, 2012, p.50-54). A Guerra dos 30 anos marcou um turning point no sistema político internacional. Apesar de grande contratação de mercenários, consolida-se o princípio da soberania estatal e national defense is primarily, if not exclusively, a state/public sector responsibility has been more the exception than the rule.

23 os Estados passam a gradualmente exercer o monopólio da força e formarem exércitos permanentes. Por conseguinte, a paz de Vestefália, em 1648, impôs uma diminuição da necessidade de recrutar mercenários. Contudo, essa nova dinâmica demoraria a se consolidar, a atividade mercenária continuaria a desempenhar um papel importante como contingente de exércitos europeus. O exército típico em 1700 refletia esta mistura e era verdadeiramente uma força multinacional. As forças contratadas constituíam ente 25 a 60 por cento de todas as forças terrestres (SINGER, 2003, p. 32). Essa mudança acelerou a partir da Revolução Francesa, em 1789, pela forte ideia de que um exército estatal é o exército do povo, e que soldados contratados só são contratados para a defesa da nobreza (OSTELLS, 2012, p.7-9). O sétimo período marcou a emergência de grandes organizações militares privadas como parte da prática de prioridades da política externa que detinha o monopólio do comércio em regiões controladas por Estados colonizadores. Nesse caso, as empresas de segurança foram utilizadas principalmente para garantir segurança das províncias ultramarinas. Destacam-se, dentre elas, a Companhia Holandesa das Índias Orientais (CHIO) e a Companhia Britânica das Índias Orientais (CBIO). Os lucros que essas companhias obtinham, transformaram-nas em empresas altamente rentáveis com forças mercenárias próprias. Por final, os mercenários só voltaram a atuar de uma forma mais relevante após a Segunda Guerra Mundial, mais nitidamente na fase de descolonização do terceiro mundo. A atuação destes cães de guerra foi muito intensa no continente africano. Tanto Bob Denard, quanto Mike Mad Hoere destacaram-se principalmente pela intensa atividade dos dois mercenários, mas também pelo seu histórico vasto de clientes. Com o final da Guerra Fria, estes mercenários clássicos perderam espaço frente às Empresas Militares Privadas. Essas empresas entenderam as novas dinâmicas que estavam surgindo, deixando estes agentes cada vez mais marginalizados. 1.2 Situação no pós-guerra fria ambiente de expansão das EMPs. O final da Guerra Fria gerou uma série de modificações que propiciaram o elevado crescimento das Empresas Militares Privadas no cenário internacional. Dentre os principais fatores podem-se apontar três grandes evidências para a escalada do mercado de segurança

privada: redução dos contingentes militares, vácuo de poder deixado pelas potências centrais, e crença na efetividade do mercado (neoliberalismo). O primeiro fator, redução dos contingentes militares, é significativo para o aumento da atividade das EMPs, pois saídos de duros combates bélicos ou preparação para tanto, quando se remete à Guerra Fria, os mercenários perderam espaços no seu campo de trabalho e passaram a qualificar o quadro da mão-de-obra das empresas privadas. Com a redução da competição estratégica, desde o fim da Guerra-fria mais de sete milhões de militares foram dispensados de suas atividades, muitos com alta capacidade de combate (SCHEIER; CAPARINI, 2005, p.3). Esse fenômeno veio junto com uma profissionalização maior das Forças Armadas, assim os exércitos focaram em core competencies : combater, fazendo outsourcing de todas outras atividades (MAGALHÃES, 2010, p.162). Essa grande diminuição das tropas, aliada a uma significativa reestruturação organizacional militar, leva a uma alta disponibilidade não somente de equipamentos bélicos, mas também de mão-de-obra altamente qualificada no mercado internacional, ambas as parte dos quadros militares dos Estados nacionais no passado (BLANCO, 2010, p.178). Vale ressaltar que muitos destes indivíduos desmobilizados, a maioria oriunda de unidades de elite, utilizaram a estrutura que exista no exército para formarem suas próprias companhias (MAGALHÃES, 2005, p. 164). Um exemplo a se destacar é a Executive Outcomes formada por ex-combatentes das forças especiais do South African Defence Force que atuou em todo continente africano. O segundo fator centra-se no vácuo de poder deixado pelas potências centrais. Isso reduziu a sua participação e engajamento em zonas periféricas, dando liberdade para mudanças de correlações de forças e ascensão de tensões não revolvidas e novos atritos. Somou-se ainda a alta oferta de armamentos dos arsenais da Guerra Fria que fizeram proliferar as zonas de conflito (SCHEIER; CAPARINI, p.4). Assim, Estados fracos ficaram incapazes de conseguir prover segurança a sua população e como as grandes potências não desprendiam muito esforço em ajudar, muitos chefes de estados, empresas e organizações passaram a contratar Empresas Militares Privadas para exercer esse tipo de serviço. Essa mudança de comportamento deu abertura para o mercado de segurança. Se antes eram as grandes potências a darem aconselhamento militar, agora, seriam as EMPs, e, para isso, a diversificação dos serviços dessas empresas deveria ser amplificada. 24

25 Para entender o último fator se faz necessário explicar a chamada modernização das Forças Armadas. Após a Guerra Fria, o conceito da Revolução nos Assuntos Militares que integra a crença do futuro da arte da guerra com a utilização intensiva de tecnologia. Tal paradigma tornaria as Forças Armadas mais dependentes das tecnologias, sendo um peso para os Estados custearem tal dinâmica. Por isso, a arte da guerra se fez conglomerada na privatização, onde se transfeririam os custos do público para o privado abrindo amplo espaço para as EMPs (BLANCO, 2010, p.178). Após descrição, entende-se porque a privatização é um elemento que ajuda a desenvolver a indústria do setor de segurança privado. Para Magalhães (2005), a mercantilização da esfera pública é o principal fator para o aumento recente da indústria de segurança. Ou seja, no contexto da ascensão do neoliberalismo, a entrega de serviços antes realizados pelos Estados para o mercado, poderia maximizar a eficiência. Na esfera militar, não foi ser diferente, as grandes potências focaram nas atividades de combate apenas, as atividades de logística foram privatizadas abrindo um grande leque de oportunidades para EMPs atuarem. Em virtude desse ambiente favorável, as Empresas Militares Privadas começam a ter uma relevância muito pertinente nos conflitos que sucederam na década de 1990 e mais ainda nos anos 2000. Comparando a ação do contingente desses contractors nos conflitos posteriores à virada do milênio, Guerra do Iraque e Afeganistão, as mais significativas para as EMPs, houve determinados momentos que os números chegaram a ultrapassar o de soldados regulares. Conclusão do capítulo Neste capítulo foi mostrado como as EMPs são diferentes dos mercenários comuns, muito pelo fato de sua lógica empresarial institucionalizada. Também apresentou-se um breve histórico do uso de mercenários e como tiveram seu auge e declínio. Posteriormente foram abordados os principais fatores de crescimento das EMPs. Atualmente, se pode dizer que os principais fatores para a expansão das EMPs ainda reside no fato que alguns exércitos estatais privatizam suas esferas não militares. No próximo capítulo será exposto os vários tipos de atuação que as EMPs desempenham.

26 2. AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS EM AÇÃO Para um melhor entendimento da atuação das Empresas Militares Privadas no cenário internacional, separam-se as atuações em duas situações: Empresas Militares Privadas prestando seus serviços durante um conflito armado e na resolução dos conflitos armados. Será apresentado o amplo escopo de serviços que as EMPs são capazes de executar e posteriormente a realidade de utilização dos seus serviços pelos diversos atores nos conflitos. As duas primeiras seções do capítulo apontarão a atuação das Empresas Militares Privadas durante o período dos combates. A primeira seção explanará a ação dessas companhias atuando de forma direta no envolvimento do combate e a segunda seção tratará das EMPs atuando de forma indireta nos conflitos armados. No primeiro, trata-se do envolvimento direto nas ações de combate, mediante a participação junto aos exércitos ou até mesmo liderando o combate para um dos lados da situação. Para evidenciar esse envolvimento será apontado o caso da Executive Outcomes e sua participação em Angola e em Serra Leoa, onde de fato liderou as ações como um exército regular privado do governo da época. O segundo caso mostrará como as Empresas Militares Privadas tem envolvimento indireto na participação do combate. Diferentemente da Executive Outcomes, algumas EMPs não oferecem seus serviços como exércitos regulares privados, mas prestam serviços de segurança e de apoio logístico em operações de combate. Nos serviços de segurança, as empresas se aproveitam da vulnerabilidade causada pelo conflito e pela incompetência do Estado em oferecer proteção aos agentes que vão ao seu país. Nos serviços de apoio às operações de combate, as empresas não participam das operações como exércitos regulares, mas como empresas de suporte dessas que o exército executa, que podem ir desde monitoramento aéreo e serviços de inteligência até tradução de interrogatórios e lavanderia. Após a Guerra Fria, alguns exércitos estatais tratariam apenas das core compitencies, deixando outras áreas de apoio com a iniciativa privada, como foi falado no capítulo anterior. Para ambas as situações, os serviços de apoio ao combate e de segurança às EMPs se envolvem indiretamente no conflito. O caso que será estudado para revelar o trabalho das EMPs em um envolvimento indireto do combate será o da Guerra do Iraque. Não será feito um estudo aprofundado de uma empresa em específico, mas sim de todo o

27 complexo da indústria de segurança que essas empresas criaram e seguiram durante as hostilidades encontradas. Feita a apresentação destes dois casos que evidenciam o trabalho das EMPs durante o andamento do conflito, as duas seções seguintes tratarão de casos onde essas empresas atuaram em situações de resolução de conflitos. Para apontar como se dá a atuação das EMPs em um ambiente de resolução de conflitos, primeiramente será exposto como essas empresas participam de missões da paz da ONU, e posteriormente como as EMPs atuaram nos projetos de Reforma do Setor de Segurança. As EMPs tiveram uma participação secundária nessas missões: seu escopo em grande parte é para apoio logístico e prestando serviços de segurança, e é disso que tratará a terceira seção do capítulo. A quarta seção deste capítulo tratará do caso referente à situação onde há ausência de conflito. Evidenciará as EMPs atuando na Reforma do Setor de Segurança, exemplificado pelo caso da Executive Outcomes participando da Reforma do Setor de Segurança em Angola. Por final, serão mostrados alguns desafios que as EMPs trazem quando participam desses projetos. 2.1 Envolvimento direto nas operações de combate. Executive Outcomes expulsa rebeldes de Angola e Serra Leoa A Executive Outcomes (EO) foi fundada em 1989 por EebenBarloe - um militar que serviu nas forças especiais do South African Defense Force (SADF). A essência da atividade da empresa se configurava em operações táticas altamente especializadas de combate militar (MIGUEL, 2011, p.9), e essa característica se deve pelo retrospecto de seus contractos, oriundos do 32 Batalhão, aos quais serviram no conflito de Angola (OSTELLS, 2012, p.195). A EO tinha basicamente dois tipos de contratos celebrados, e eles poderiam ser mais amplos ou mais detalhados: no primeiro caso, a empresa disponibilizaria todos seus esforços e recursos necessários para definir o conflito. No segundo caso, a empresa complementaria as operações do cliente através de tarefas especializadas (MIGUEL, 2011, p.10). O caso angolano a Executive Outcomes entra no mercado A primeira ação importante que a EO realizou foi para o governo de Angola, mais especificamente para o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

A ex-colônia portuguesa obteve sua independência em 1975, após uma descolonização brutal por parte de Portugal. Sem um período de transição, o país passou a ser dirigido pelo MPLA, antigo partido que havia se formado pela guerrilha marxista contra os colonizadores portugueses. Logo após a independência de Angola, a MPLA confrontou-se com o partido anticomunista, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), entrando numa guerra civil. Durante a Guerra Fria, os dois lados receberam armas e financiamento de seus apoiadores, MPLA da União Soviética e a UNITA dos EUA e África do Sul aliado local (OSTELLS, 2012, p.196). Com o fim da Guerra Fria, veio o fim do apoio de armas e dinheiro de ambos os lados. As partes envolvidas no conflito precisavam de alguma forma para financiar suas operações.a UNITA preferiu extrair diamantes da região sul de Angola. O MPLA, por outro lado obteve seu financiamento através das jazidas de petróleo, ao largo da costa da capital Luanda. Estas novas fontes, deram uma continuidade para a guerra civil, no caso da MPLA possibilitou até a contratação da Executive Outcomes: Fragilizado pela queda de seu protetor soviético, o MPLA decide recrutar novos soldados de fortuna para garantir sua vitória. O dinheiro do petróleo permite pagar os soldos desses mercenários estrangeiros. Uns cinquenta combatentes, que, em sua maioria, tinham combatido antes pela UNITA, passam assim a servir o MPLA na primavera de 1993 (OSTELL, 2012, p. 196). Neste contexto, foi construída a reputação da EO, mais precisamente na batalha nas instalações de petróleo de Soyo na boca do Rio Congo situada no norte de Angola. Entre Março e Abril de 1993, as forças da Executive Outcomes, representando as forças da MPLA, entraram em combate contra os rebeldes da UNITA, lideradas por Jonas Savimbi. Os 28 combatentes por parte da EO demonstraram capacidade de combate fora do vulgar, morreram apenas três sul-africanos do lado da EMP e várias centenas de guerrilheiros da UNITA. (MIGUEL, 2011, p.9). Essa batalha representou a reconquista dessas áreas petrolíferas por parte do governo, antes nas mãos de Savimbi. Pelos resultados positivos, o governo de Luanda estendeu o contrato com a empresa até 1996 onde a EO tem que se retirar sob pressão exercida pelos EUA e pela ONU sobre a MPLA. (OSTELL, 2012, p.196). Apesar deste afastamento, a consolidação da empresa em operações na África se fez evidente. Serra Leoa, guerra dos diamantes de sangue, Executive Outcomes mostra sua capacidade de combate 28

29 De 1991 a 2002, Serra Leoa enfrentou uma guerra civil. Apoiada pelo líder rebelde liberiano Charles Taylor, a Frente Revolucionária Unida (RUF sigla em inglês para Revolutionary United Front) organização liderada por Foday Sankoh, ex-cabo do exército serra-leonês, teve por objetivo derrubar o governo estabelecido, se concentrando nas fronteiras perto da Libéria, onde se marginalizaram e perpetuaram ações violentas em sua totalidade. Em 1992, os militares que lutaram contra a RUF realizaram um golpe de estado e destituíram o governo do poder. Essa nova junta foi liderada por Valentina Strasser, que diante de pressões internacionais prometeu realizar eleições democráticas em três anos, ao final de 1995. Muito desse conflito advêm da riqueza de recursos naturais que Serra Leoa possui - em especial, diamantes. Contudo, essa riqueza não permanecia no país, pois Serra Leoa estava presa a licenças internacionais confiadas a estrangeiros que corrompiam o poder vigente. Sabendo desse valor a RUF aspirava primeiramente às áreas diamantíferas, pois essas serviam para financiar o tráfico de armas e drogas na região. (OSTELLS, 2012, p.196-197) A RUF, depois que roubou as áreas produtoras de diamantes, avançou cada vez mais. Quando os rebeldes estavam às portas de Freetown, a capital de Serra Leoa, o governo de Strasser recorreu a Executive Outcomes, e em maio de 1995, fechou um contrato que primeiramente enviou 50 contractors. Nos seis meses seguintes chegariam mais 130. Depois da liberação de Freetown pela EO, o alvo da empresa voltou-se para a retomada das áreas diamantíferas Kono-Koidu. Em poucos dias a EO expulsou os rebeldes da região de Kono com poucas baixas, tendo como o saldo mais importante que os rebeldes perderam sua forma de financiamento mais produtiva. Em janeiro de 1996, a Empresa Militar Privada EO estava se preparando para fazer o ataque final à base da RUF. As eleições livres puderam ser realizadas e Ahmed TejanKabbah foi eleito. Com ele no comando, o contrato com a empresa foi postergado até o fim daquele ano. Imagem 1 Operações da Executive Outcomes em Serra Leoa 1995-1997.

30 Fonte: CIA World Factbook 6, Adaptação: PEREIRA,2014. Os combates continuaram por mais um ano, quando o presidente Kabbah rescindiu o contrato com a EO, para dar lugar ao ECOMOG (sigla em inglês para Economic Community Monitoring Group) que passou a combater os rebeldes da RUF. Às vésperas do fechamento da empresa sul-africana parece estar, então no topo de seu poder. Ela conta com uma equipe de 2 mil contractors e um armamento impressionante: três Boing 727, os helicópteros usados em Serra Leoa, aviões leves, mas também caças. A EO oferece uma gama de serviços de excelência: tiro de precisão a longa distancia formação em contra insurreição urbana ou rural (o forte da experiência do 32 Batalhão), paraquedismo, etc. (OSTELL, 2012, p.197). Pode-se dizer que o saldo das operações da EMP foi positivo mesmo em curto prazo, porque expulsou os rebeldes de sua fonte de financiamento. Contudo, a EO era uma tropa pequena, não possuía a mesma estrutura de um exército regular. Adicionado a isso, consequências negativas foram que o governo ao contratar a EO só aumentou ainda mais sua dependência por forças externas. Isto deixou o Estado serra-leonês ainda muito fragilizado, só conseguindo atingir a paz em 2002, após várias intervenções no país. 6 Imagem original disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-worldfactbook/geos/sl.html acesso em 12/09/2014.

31 2.2 Empresas Militares Privadas e seu envolvimento indireto nas ações de combate. Guerra do Iraque Desde os atentados de 11 de setembro, o governo dos Estados Unidos aumentou o combate contra o terrorismo. Invadiu o Afeganistão em 2001, atrás dos responsáveis pelo ataque terrorista às Torres Gêmeas, Osama Bin Laden e o grupo terrorista Al Qaeda. Invadiu também o Iraque atrás de Saddam Husseim sob o pretexto que ele seria uma ameaça global. Em ambos os conflitos a participação das Empresas Militares Privadas foi imprescindível para os ataques norte-americanos, como conta Ostells (2012): (...) a mobilização necessária aos EUA seria considerável e inflaria seus efetivos para além do período do conflito (OSTELLS, 2012, p.200). Para evidenciar esses casos de envolvimento indireto das EMPs nos combates, foi escolhida a Guerra do Iraque como corpus investigativo dessa proposta de estudo. Ao invés da perspectiva da seção anterior, esta não se limitará a remontar a ação de uma empresa isolada, mas sim, de todo um complexo que foi formado pelas EMPs no país do Oriente Médio. Do ambiente favorável ao boom da indústria. A Guerra do Iraque em 2003 foi junto a Guerra do Afeganistão, um dos conflitos armados com maior número de contractors estrangeiros. Durante o período, estrangeiros, empresas multinacionais, organizações não governamentais, agências estatais e a própria ONU utilizaram em algum momento Empresas Militares Privadas para garantir a segurança de pessoas e bens e para de executar funções de apoio militar. A presença das EMPs aumentou de forma expressiva no Iraque depois de uma política clara dos Estados Unidos afirmando que não iriam garantir a segurança pública dos agentes estrangeiros durante o conflito. Inclui-se o fato do vácuo de poder no governo iraquiano e a ineficácia do governo de transição em segurança; e proteção aos empreendimentos estrangeiros. Esses agentes estrangeiros garantiram a sua segurança através de contratos com Empresas Militares Privadas. Em 2007, o número de funcionários das EMPs superou o da tropa dos EUA no Iraque (PALOU-LOVERDOS; ARMENDÁRIZ, 2011, p.31). Em

32 comparação com a primeira Guerra do Golfo, a proporção de pessoal contratado era 10 vezes maior (SCHEIER; CAPARINI, 2005, p.1-2). Essa presença estrangeira, principalmente de empreiteiros civis dedicados a investir seus recursos no Iraque, não só resultou em um número crescente de Empresas Militares Privadas, como foi um dos maiores fatores que impulsionou o crescimento das EMPs. Mesmo com crescimento de oferta dos contractors a dependência pela segurança privada causou uma inflação nos preços cobrados pelas companhias. Em pouco tempo, os salários dos contractors passaram de 300 dólares por dia por agente a uma faixa salarial entre 500 a 1.500 dólares. As EMPs de renome como a Blackwater conseguiam faturar cerca de 1.500 a 2.000 dólares por pessoa / dia (SCHAHILL, 2007, p.28). Esse boom da indústria cresceu de uma maneira tão rápida que as próprias EMPs no Iraque fundaram um grupo comercial. Esse grupo deveria, além de representar tal parcela industrial/comercial de serviços, regular esse mercado em ascensão. Tal junta denominou-se Private Security Company Association of Iraq (PSCAI, em português Associação Iraquiana Companhias Privadas de Segurança) e dissolveu-se em 31 de dezembro de 2011, quando as tropas regulares do exército dos Estados Unidos deixaram a região. Naquela época, o jornal londrino The Times se refere ao mercado de segurança privada no Iraque, nos seguintes termos: No Iraque, a expansão dos negócios pós-guerra não é o petróleo. É a segurança (PALOU-LOVERDOS; ARMENDÁRIZ, 2011, p.32). Estas empresas que trabalharam na reconstrução do Iraque estavam dispostas a contratar as EMPs. Apesar de esta indústria ter crescido de forma abrupta no Iraque, a segurança era um privilégio de poucos, grande parte da população iraquiana não usufruiu dessa segurança (PALOU-LOVERDOS; ARMENDÁRIZ, 2011, p.32). As Empresas Militares Privadas no Iraque e seus serviços Palou-Loverdos e Armendáriz(2011) discutem principalmente os dados apresentados por agências que cuidaram de levantar os relatórios de autoridades norte-americanas do Departamento de Defesa e da Autoridade Provisória da Coligação (CPA sigla em inglês para Coalition Provisional Authority), sobre a estimativa de cerca de 60 empresas que atuaram com cerca de 20 a 25 mil contractors no Iraque. O levantamento feito pela Associação de

33 Companhias Segurança Privada do Iraque estimou que em 2006 mais de 181 empresas de segurança privada estavam trabalhando com pouco mais de 48 mil funcionários. Periodicamente, dados computados pelo Congresso Americano mostraram que o número de contractors foi decaindo a partir de 2007 até o meio de 2011, ano de término da permanência das tropas oficiais do exército americano. Figura 2: Número de Contractors pelo número de tropas norte-americanas no Iraque (2007-2011). Fonte: CENTCOM Quarterly Census Reports; Joint Staff, Joint Chiefs of Staff, Boots on the Ground monthly reports to Congress. Adaptação: PEREIRA, 2014. Percebe-se que o número de tropas regulares associa-se diretamente ao número de contractors. Isso se relaciona à questão de que muitas EMPs oferecerem seus serviços ao governo estadunidense. Quando o governo diminuiu seu efetivo, a demanda por serviços de terceirização e segurança também baixou. Essa queda também se deu pela ocorrência das empresas empreiteiras já terem executado seus projetos no país. Em relação aos serviços, as principais atividades macro realizadas pelas Empresas Militares Privadas no Iraque foram: suporte às ações militares e desempenhando papeis de segurança privada. Serviços de Segurança

34 Em relação aos serviços de segurança, as Empresas Militares Privadas tinham um escopo bastante amplo. Seus contratantes eram os mais diversos, não exclusivamente os Estados, mas também governos, organizações internacionais, humanitárias, mídia e empresas transnacionais eram seus clientes mais comuns. Na tabela abaixo, são mostrados alguns de seus serviços de segurança: Principais atividades de segurança realizadas no Iraque. Serviços que incluem armas: 1. Segurança de instalações. Proteção de estabelecimentos fixos: como áreas de habitação, locais de trabalho, prédios do governo. 2. Segurança de comboios. Proteção de comboios que viajam através do Iraque. 3. Escolta de segurança. Proteção de indivíduos que viajavam em áreas não seguras no Iraque; segurança e proteção a indivíduos especiais. Serviços de segurança que não incluem armas: 1. Coordenação operacional. Estabelecimento e gerência de comando, controle e comunicações nos centros de operações. 2. Análise de inteligência. Coleta de informações e desenvolvimento de análise de ameaças. 3. Negociação de reféns. Investigação, negociação e resgate de civis e outros contractors. 4. Treinamento de segurança. Treinamento para a Segurança Iraquiana. Autor: PALOU-LOVERDOS; ARMENDÁRIZ, 2011, p. 44 Adaptação: PEREIRA, 2014. É difícil, porém, elencar maiores informações dessas atividades, pois a maioria dos contratos se firmava sob um pacto de confidencialidade. Até em caso de contratação pelo

35 Congresso norte-americano, os detalhes permaneciam em âmbito sigiloso (DCAF, 2008, 17). Contudo, um relatório do Congresso Americano publicado em 2008, revelou alguns dos acordos que o Departamento de Defesa (DoD sigla em inglês de Department of Defence) e o CPA com EMP durante o período do conflito. Em 2005, o Departamento de Defesa inaugurou uma categoria de contrato conhecida como Worldwide Personal Protective Services II (WPPS II). Nessa categoria as empresas contratavam e mantinham um relacionamento próximo com as agências e seus diretores. No ano de 2008, o número de contractors a serviço tanto DoD e quanto do CPA passavam de 9.000. Os laços dessas agências com as Empresas Militares Privadas se fizeram cedo, no meio dos anos 90 com a Guerra da Bósnia. Contudo, foi somente a partir de 2004 que esse relacionamento se estreitou. Os contratos com a Blackwater para vistoriar e fazer a segurança da embaixada dos EUA em Bagdá em 2004; ou com o contrato com a Dyn Corp por suporte aéreo e treinamento policial das Forças Iraquianas; passando pela análise de risco feita pela Aegis Defence Services em 2005; mostram como existe uma política estadunidense para procurar no setor privado soluções em segurança. Serviços de apoio ao combate. Além do desenvolvimento sem precedentes da indústria de segurança privada, as EMPs também tiveram participação em serviços de apoio militar. Há assim como nos serviços de segurança, um amplo escopo de serviços de apoio ao combate. Os serviços ofertados incluíam planejamento estratégico, reconhecimento aéreo, operações de voo, serviços de inteligência. Mas não só estes serviços eram considerados de suporte ao combate, e sim todo serviço prestado que serviam os militares foi registrado como de suporte ao combate, como apoio na logística de armamentos e suprimentos para os quartéis-generais, além de trabalhos como lavanderia e de refeição. Provavelmente um dos exemplos mais conhecidos a respeito da privatização das atividades militares esteja relacionado com o desempenho dos serviços de inteligência, que aumentaram desde o início da "guerra ao terror". Durante a guerra e a ocupação do Iraque, o desempenho desses serviços por Empresas Militares Privadas incluíram atividades como

36 interrogação prisional, tradução de documentos estrangeiros e gerenciamento de outros sistemas de inteligência (ELSEA; SERAFINO, 2004, p.4-7) Além disso, parte do treinamento militar para as forças armadas nacionais e policiais locais foi realizada em conjunto com algumas empresas. Estava incluso aí um treinamento tático especial para situações críticas, planejamento estratégico e suporte para treinamento com armas e equipamentos. Outros serviços realizados exclusivamente por militares, como depuração de minas terrestres, foram transferidos às atividades das EMPs (GAO, 2005, p.13-17). Em relação à dimensão e ao risco que cada serviço ocupa, foi traçado um panorama como base o relatório do Congresso Americano sobre o número de contractors por serviço prestado no Iraque. O gráfico ilustra como a variação dos serviços Base Support, terceirizados e militares relacionavam-se com a segurança e o número de contratantes: Figura 3: Número de contractors por serviço no Iraque 2008-2011: Fonte: DoD US CENTCOM 2nd Quarter FY2011 Contractor Census Report.. Adaptação por PEREIRA, 2014. Em 2011, percebe-se que o número de contractors relaciona-se com o outsourcing, ou seja, a terceirização de algumas funções que antes eram realizadas pelo exército americano,

37 confirmando os números de queda apresentados que acompanham a diminuição do número de tropas regulares. Os outros serviços se mantiveram estáveis no encaminhamento final do conflito. Visto isso, pode-se dizer que os resultados das ações das EMPs foram múltiplos e merecem uma análise diferenciada em comparação a ação da EO nos anos 1990. Para as empresas e agentes que as contrataram aparentemente foi uma relação muito positiva, pois as EMPs conseguiram prestar seus serviços em um ambiente que necessitava de segurança ou outsourcing. às empresas, governos, OIs e ONGs que as contrataram, as EMPs eram a solução possível, pois os Estados Unidos não garantiram segurança para agentes terceiros. Estes quando viram que não encontrariam segurança acharam nas EMPs uma forma de poder atuar no Iraque. Para a população a presença das EMPs não causou uma segurança de fato. As empresas não se envolviam com a população com este propósito. Inclusive esse relacionamento possuía vários atritos, como em situações onde os direitos humanos foram violados pelos contractors na população como abuso de força, assassinatos e tortura. A situação que ocorreu no Iraque e Afeganistão pode ser uma amostra de como serão os conflitos futuros envolvendo uma grande potência e as EMPs. A possibilidade de essas potências utilizarem essas empresas é bastante alta, sobretudo aquelas originárias de seu próprio país. 2.3 Envolvimento em missões de paz da ONU. As discussões sobre o envolvimento das EMPs em operações da ONU geralmente abarcadas de um entendimento errôneo do papel desempenhado por essas empresas. Como bem mostra Ostensen (2011) as Empresas Militares Privadas não desempenham serviços de segurança somente. Frequentemente o que mais fornecem são serviços logísticos em áreas de conflito. O trabalho dessas EMPs não substitui o trabalho a ser realizado numa missões de paz da ONU, pois as empresas são contratadas para tarefas específicas como logística em locais de difícil acesso. Os contractors não participam das forças de paz como soldados efetivados em situações de manutenção de paz, (OSTENSEN, 2011, p.11).

38 Estados-membros contratando as EMP em nome da ONU As Nações Unidas são clientes regulares das EMPs buscam, diferentes serviços dependendo da agência ou programa como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), World Food Programme (WFP) e o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD). As EMPs também se envolvem frequentemente em operações da ONU através de alguma contratação de seus Estados-membros. Essa prática, por exemplo, é rotineira para os Estados Unidos. Desde que o DoD estabeleceu que sua polícia federal não participa-se em missões internacionais, os Estados Unidos faz um contrato com alguma EMP para integrar estas missões como representante de sua força policial (OSTENSEN, 2011, p.12). O exemplo disso, em abril de 2004 a Dyn Corp foi a empresa que forneceu seu pessoal para integrar as forças de policial civil dos Estados Unidos, o que significa que todos os policiais estadunidenses da Polícia Civil das Nações Unidas (UNCIVPOL sigla em inglês) eram contractors. Desde então, o contrato é segue com outras EMPs. A Pacific Architects & Engineers fez parte da contribuição nas Missões de Paz no Haiti e na Libéria. A Dyn Corp firmou em 2003 outro grande contrato com o Departamento de Defesa norte americano. Desta vez, a companhia deveria dar suporte à manutenção de paz na África, onde a empresa poderia executar qualquer serviço possível de peacekeeping, capacidade de vigilância e outros esforços no continente africano. Países em desenvolvimento também buscam soluções junto as Empresas Militares Privadas para realizar algum trabalho nas operações de peacekeeping. A Paramount Group exerceu trabalhos de treinamento e logística, Aegis e a Global Risk foram contratadas pelos Estados Unidos para dar proteção aos seus funcionários das Nações Unidas no Iraque. Missões de paz Nas operações humanitárias, as Empresas Militares Privadas atuam prestando serviços de proteção a funcionários e instalações da missão, na avaliação de riscos no planejamento da missão e oferecem treinamento de segurança tanto para os agentes da missão quanto para os militares que vão acompanhar o trabalho deles. As agências das Nações Unidas interessadas

39 na contratação de alguma Empresa Militar Privada precisaram procurar autoridade específica do United Nations Procurement Division (Divisão de Aquisições das Nações Unidas) para tal finalidade. A empresa Defence Systems Limited, por exemplo, forneceu agentes de segurança para a UNICEF no Sudão e na Somália. Os serviços comprados com mais frequência das EMPs por agências da ONU são segurança física de instalações, seguido de treinamento de segurança. A ArmorGroup também realizou para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) serviços de segurança de escritório em 2008 (OSTENSEN,2011, p.14-15). As tarefas realizadas por atores privadas em operações de peacekeeping são normalmente restrito para funções de suporte e algumas relacionadas com segurança, (LILLY, 2000, p. 53-64). A ONU contrata as EMPs durante as operações de manutenção de paz para serviços variados como guarda estática de segurança, apoio logístico e de desminagem e destruição de material explosivo (OSTENSEN, 2011, p.15-17). Exemplos de EMPs que prestam serviços de apoio às operações de paz incluem a Dyn Corp, com o fornecimento de transporte de aéreo e controle de redes de comunicações via satélite para a missão no Timor Leste. A Defence Systems Limited também prestou serviços de logística e inteligência para as forças que participaram desta missão (SINGER, 2003, p.182-186). A Pafic Architects & Engineers, por exemplo, também proveu apoio logístico à Missão das Nações Unidas em Serra Leoa entre 2000 e 2003 e vários serviços de logística para a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO) em 2001(CHATTERJEE, 2004). Em muitos casos, os serviços parecem ser adquiridos em combinação: os serviços de logística são muitas vezes combinados com a segurança, que por sua vez pode implicar na coleta de informações ou serviços de inteligência semelhantes. Este parece ter sido o caso na MONUSCO, quando a Armor Group prestou serviços de segurança e logística para a missão (ALVES et al, 2014, p.17-18). Contudo, a contratação dessas EMPs por parte das Nações Unidas pode levar a questionamento do interesse dessas empresas como em 2010, quando a EMP ugandense Saracen Uganda foi contratada pelas ONU para prover serviços de segurança não armada para a MONUSCO. Tal contratação levantou polêmicas após a empresa ter sido acusada de

40 um envolvimento ilegal de recursos naturais na República Democrática do Congo e no treinamento de um grupo paramilitar no país em parceria com o General Salim Saleh, irmão do presidente ugandense Yoweri Museveni, o qual possui 25% da empresa (ALVES et al, 2014, p.24). Ultimamente a utilização das Empresas Militares Privadas em missões de paz tem sido significativa. De 2009 até 2013 foram feitas 31 contratações de empresas, sob diversos tipos em serviços com uma faixa de orçamento bem diversificada também; desde U$ 54,517 mil em serviços de segurança apresentados pela G4S Security Services na Sérvia entre 2010 e 2011, até os U$ 2.761,213 mil da Asia Pafic Assurance Company Unipessoal (APAC) para os mesmos serviços de segurança pessoal e de instalações no Timor Leste entre 2009 e 2010 7. Como cada contratação e cada Missão de Paz têm suas próprias características, é difícil apontar para uma situação onde a participação das Empresas Militares Privadas seja decisiva ou não. A ONU não parece ter uma política clara em relação de como esses contratos devem ser estabelecidos e não possui um protocolo claro de como essas EMPs devem operar. Constata-se, portanto, que mesmo sem uma política clara a ONU continuará a usufruir dos serviços das Empresas Militares Privadas em suas missões de paz desde que regulamentadas para evitar qualquer desvio no eventual uso da força. 2.4 Empresas Militares Privadas como atores na Reforma do Setor de Segurança. O papel das Empresas Militares Privadas na Reforma do Setor de Segurança (RRS) pode ser melhor entendido no contexto de uma nova estratégia para o desenvolvimento que ocorreu nos países em desenvolvimento. A ideia de incluir o setor de segurança no âmbito dos programas para o desenvolvimento de países do terceiro mundo foi encabeçada pelos países da Escandinávia e Holanda. Este grupo de países via a reestruturação do setor de segurança como parte importante para alcançar resultados significativos na melhoria da resolução de conflitos (WILLANS apud KINSEY, 2000, p.2), principalmente porque não se tratava apenas de um reforma nas forças policiais, mas sim de um processo mais amplificado que buscaria reformar todo o sistema de justiça criminal, além de uma reestruturação militar ligada a uma gestão de defesa nacional que também incluía reformas no legislativo e executivo (KINSEY, 2006, p.123-124). 7 Verificar Anexo 1.

41 As evidências que provam esta mudança conceitual podem ser identificadas nos diferentes cursos ofertados para os países africanos por parte dos governos doadores. Os times de instrutores estadunidenses, por exemplo, começaram a enfatizar a importância de se estabelecer relações civis-militares para gerenciar as forças de defesa nacional. Os cursos oferecidos eram diversificados abrangendo um escopo grande como treinamento militar, orçamento de defesa, compreensão do papel dos militares dentro de democracias, gestão de logística entre outros. No caso do Reino Unido, o ministro da defesa britânico estendeu o mandato do Time Britânico de Treinamento e Assistência Militar (TBTAM) na África do Sul para ajudar o país na criação e consolidação de seus mecanismos executivos de supervisão civis sobre as forças armadas, enquanto o Departamento de Desenvolvimento Internacional colocou a questão da RSS na agenda internacional em 1999 (HENDRICKSON, 2002, p.10-11). Sua inclusão na área de desenvolvimento foi resultado deste doador pensar sobre a relevância da SSR em questões de desenvolvimento. A partir dos anos 1980, algumas firmas de segurança e consultoria começaram a mover-se para as áreas de aconselhamento e consultoria em segurança. A EMP Control Risk Group começou a atuar com consultorias de segurança para países desenvolvidos desde 1982. A MPRI, também realizou programas de reforma militar nos Balcãs na virada do milênio, também empreendendo reformas na área da justiça e aplicação da lei. Empresas como a Atos Consulting, tem se envolvido na reforma dos sistemas de segurança e justiça nos países em desenvolvimento. Um dos maiores projetos da empresa nesta área específica foi realizado na Jamaica, onde a empresa foi convidada a rever e prestar um relatório de três grandes ministérios, entre eles o da Segurança Nacional e o da Justiça (KISNEY, 2006, p.125). Esta experiência no setor público deu a habilidade para trabalhar em projetos na Reforma do Setor de Segurança, pois apesar da RSS ter uma característica holística, muitas das pautas que estes projetos possuem se remete a ajustes no setor de justiça. Grande parte do trabalho realizado por essas empresas de consultoria focadas a atender o setor público está na contribuição para a construção das competências e capacidades locais. Neste quesito reside uma diferença entre EMPs e forças de segurança privada locais no tocante a tarefas de pós-conflito. Em grande parte as EMPs irão prestar seus serviços ao setor público e as forças de segurança privadas locais irão prestar serviços ao setor privado, não

42 impactando de forma tão significativa para o projeto da RSS (WILLIANS; ABRAHMSEN, 2006, p.5-16). Uma das principais regiões onde houve projetos de Reforma no Setor de Segurança foi o continente africano. Os Estados africanos passaram por processos de reestruturação na segurança, envolvendo políticas de reformatação das forças e profissionalização. Contudo, muitos dos militares que compunham esses Estados precisavam ser democratizados e entender que eles eram responsáveis pelo Estado, e não por algum indivíduo que ocupa o cargo de Estado (BRYDEN, 2010, p.3). As dificuldades de envolvendo recursos para essas tarefas acabaram sendo partilhadas com doares internacionais(kisney, 2006, p.126). Neste contexto africano, algumas agências internacionais e locais se aliaram às EMPs para ofertar treinamento militar dirigidos por ex-militares. A Executive Outcomes, por exemplo, se envolveu na reciclagem de militares africanos, realizando contratos para treinar parte de militares angolanos. Estas novas táticas de contra insurgência, um dos serviços mais bem executados da antiga empresa sul-africana, fez com que a MPLA criasse os grupos táticos, todos com uma doutrina altamente especializada com a experiência que a Executive Outcomes pôde primeiramente treinar e aperfeiçoar. A EO foi utilizada pelos militares angolanos devido à experiência prévia dos contractors da empresa. Os militares que fundaram a EO tinham participado da guerra de independência angolana, apoiando junto ao exército sul-africano e as forças da UNITA. Este conhecimento do modus operandi da UNITA deu uma vantagens substancial para a formação de grupos táticos treinados das Forças Armadas Angolanas (FAA) treinadas pelas Executive Outcoems. Além disso, a EO sensibilizou o governo Angolano, ao usar seu conhecimento para ajudar a população local a superar o problema da falta de saneamento. Isso ocorreu por meio de purificação de água à população, serviço que não foi cobrado. A Executive Outcomes contribuiu, assim para mudanças que ocorreram nas FAA entre 1993 e 1995. Um dos serviços prestados foi o aconselhamento de estratégia e doutrina. Dentre as novas táticas que a EMP treinou os recrutas angolanos formando pequenos batalhões. Com isso a FAA conseguia ter maior flexibilidade nos combate, aliada à competência histórica em

guerra convencional (CASTELLANO, 2012, p.32-33). Isso contribuiu para que a UNITA tivesse de retomar antigas táticas de guerrilha perto da virada do ano 2000 (JANES, 2009, p.83). Outra Empresa Militar Privada que participou também dos treinamentos e aperfeiçoamento de doutrina e táticas, foi a Military Professional Resources Inc (MPRI), som sede nos Estados Unidos, que seguiu a mesma linha que a EO praticava até 2002 (JANES, p.51). Entretanto, existem limites para a atuação das EMPs em RSS. Um desses limites reside no fato que as EMPs não têm competências para doutrinar um exército inteiro em todas as sua complexidade. No caso angolano, a EO só treinou parte de alguns batalhões, enquanto reformas mais amplas ocorriam direcionadas pelo Estado angolano com parceria de forças estrangeiras. O caso das RSS na República Democrática do Congo demonstra como este modelo não é necessariamente favorável à capacitação das forças nacionais, sobretudo quando está ausente um projeto mais amplo de reformulação doutrinária e de estabelecimento de um sistema efetivo de comando e controle (CASTELLANO, 2014, 163-164). Outro limite que as EMPs enfrentam quando participam de projetos de RSS é a capacidade que burlar o sigilo de aspectos do emprego de força. Os exércitos, sobretudo de países em desenvolvimento, que passam por processos de RSS correm o risco de uma empresa privada obter informações sobre sua doutrina e procedimentos, fato que pode incrementar a sua vulnerabilidade. Enfim, as EMPs podem, com apoio e controle adequados, gerenciar programas de RSS mais específicos. Também é visto que é necessário que a Reforma no Setor de Segurança desses países seja de forma holística, ou seja, que abranja todos os pontos para melhorar a segurança e consequentemente o desenvolvimento do país. Por fim, é necessário que se entendam os limites dessa atuação se ela quiser manter seu objetivo que é o desenvolvimento de países desestabilizados. Conclusão do capítulo Este capítulo abordou várias formas de atuação das Empresas Militares Privadas. Primeiramente, tratou-se da atuação dessas empresas em conflitos armados, de forma direta como no caso de Serra Leoa e de forma indireta como na Guerra do Iraque. Posteriormente, evidenciou-se que a atuação das EMPs na resolução dos conflitos, em missões de paz e nos projetos de Reforma no Setor de Segurança. No próximo capítulo serão debatidos os dilemas envolvidos na atuação das Empresas Militares Privadas. 43

44 3. PRINCIPAIS DEBATES SOBRE O USO DE EMPRESAS MILITARES PRIVADAS Dando continuidade as explicações sobre as Empresas Militares Privadas, se faz necessário, definir, classificar e apresentar os serviços de tais empresas a fim de verificar a sua forma de atuação no mercado de trabalho. Primeiramente, será exposta a localização geográfica das empresas e, posteriormente, a relação dos seus fundadores com os governos e com a opinião pública. Na segunda seção do capítulo será explanada casos de abusos de direitos humanos por parte dos contractors. Ainda nesta parte cerceará pontos sobre a legalidade das empresas. Informará, também, dentre os países que mais possuem EMPs e os que mais receberam sua atuação que tipo de legislação possuem sobre as Empresas Militares Privadas. Seguindo essa seção serão evidenciadas algumas iniciativas internacionais como o estabelecimento de parâmetros de controle e qualidade, e iniciativas internacionais sobre o regulamento das EMPs por parte dos Estados. Por fim, sucede-se um balanço sobre a utilização incluindo os positivos e negativos das Empresas Militares Privadas. 3.1 A geografia das Empresas Militares Privadas Ter acesso a um banco de dados sobre as Empresas Militares Privadas é dificultoso, principalmente pelos parâmetros que cada censo é realizado e por ser um mercado muito fechado. Geralmente, as pesquisas são sobre um acontecimento mais especifico como o levantamento realizado pelo Congresso estadunidense, da atuação das EMPs nos conflitos do Iraque e Afeganistão. Apesar disso, para mostrar como as Empresas Militares Privadas estão dispostas geograficamente foi utilizado o estudo de Dunar, Mitchell e Robbins em 2007. Nesse trabalho os autores apresentam dados sobre as Empresas Militares Privadas. Escolheu-se a pesquisa mencionada pela quantidade de dados obtida. Em relação ao posicionamento geográfico das Empresas Militares Privadas espalhadas pelo globo é interessante notar que quase metade das 486 pesquisadas tem suas bases principais instaladas nos Estados Unidos com a porcentagem de 46%. Os números seguem os do Reino Unidos com 19% e África do Sul e Europa com 6% cada. Figura 4: Origem das Empresas Militares Privadas por país.

45 Localização das EMP por país Estados Unidos (46%) Reino Unido (19%) África do Sul (6%) Europa (sem Reino Unido) (6%) Oriente Médio (5%) África (1%) Outros (5%) Desconhecido (12%) Fonte: DUNAR, MITCHELL, ROBBINS, 2007, p. 16 Adaptação: PEREIRA, 2014. Apesar da maioria das EMPs aturem mais em Estados fracos, suas bases se encontram nos países centrais. Muito desse fato, mostra a necessidade dos exércitos desses países na privatização de características antes feitas por militares. Em alguns casos reside no fato destes países possuírem um histórico de atividades mercenárias, como a África do Sul e Reino Unido. Outra análise interessante que Dunar, Mitchell e Robbins (2007) trazem é a origem dos fundadores dessas Empresas Militares Privadas. Essa informação é um indicador de como essas empresas podem se relacionar com seus governos. Caso os seus fundadores tenham advindo do exército ou de agências de inteligência, por exemplo, isso pode gerar a companhia vantagens perante as outras empresas em virtude de alguma conexão que obtiveram no meio público. Segundo Dunar, Mitchell e Robbins 86% das empresas tiveram seus fundadores militares aposentados, ex-agentes oficiais de defesa, inteligência ou segurança. Figura 5: Histórico dos fundadores das EMPs

46 Histórico dos Fundadores das EMP Ex militares, CIA, FBI, Serviço Secreto e ex-policias (86%) Sem ter passado por algum ambiente militar ou político (14%) Fonte: DUNAR, MITCHELL, ROBBINS, 2007, p. 14 Autor: PEREIRA, 2014. Outro fator que evidencia o arranjo global das Empresas Militares Privadas relaciona-se às capacidades quanto ao exercício de suas atividades. Assim, baseado na classificação de Avant (2005) percebe-se que as empresas têm um escopo bastante diversificado quanto as suas capacidades profissionais. Figura 6: Capacidades Dominantes das Empresas Militares Privadas (Baseado na classificação de Avant) Capacidades Dominantes Suporte Logístico (172) Treinamento e Aconselhamento Militar (113) Segurança Pessoal e de Instalações (40) Suporte Operacional (15) Prevenção de Crime e Inteligência (4) Sem uma Capacidade Dominante (55) Fonte: DUNAR, MITCHELL, ROBBINS, 2007, p.28 Autor: PEREIRA, 2014.