MATERNIDADE MÚLTIPLA: UM SUBESTIMADO EXCESSO Ferreira Marcia Porto Novas questões vêm sendo trazidas para a Psicanálise a partir das novas configurações familiares, e mais particularmente, sobre as novas formas de gerar filhos. Sem dúvida, um grande tema que vem insistindo para afinarmos nossos ouvidos é a maternidade. Através do vertiginoso avanço da ciência nos deparamos com a frequencia com que a medicina oferece a mulheres inférteis, muitas delas diagnosticadas por E.S.C.A. (esterilidade sem causa aparente), procedimentos que têm resultado em gravidez múltipla, ou seja, no nascimento de gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos e muito mais bebês. Se, como afirma Chatel (1993/1995), as demandas recebidas pelo ginecologista concernem às questões sobre o enigma da feminilidade (p. 91) as respostas que se vem dando a ele é a onipotência materna. Parece que estamos diante de um cenário onde retorna o mito do instinto materno. O naturalizado e idealizado amor materno daria à mulher o poder e a capacidade de libidinizar sempre que parisse e simultaneamente a quantos bebês surgissem. Se a mulher tem sido alvo de variadas projeções ao longo da história, parece que a contemporaneidade está criando uma estranha figura da mulher medusa, que fascina e horroriza com seus múltiplos falosbebês. O que seria da ordem da equivalência simbólica transborda no real. Com pose de teoria sexual infantil, o desejo pela identidade mãe mulher ilimitada, toda para todos, perpassa os discursos do tecido social, do qual a Psicanálise também não escapou. Se a Psicanálise deve desconfiar até mesmo de suas próprias asserções e evitar ditar verdades conclusivas, que normatize e patologize formas inusitadas de ser, nem por isso deve deixar de provocar incômodo naquilo que tende a faltar a falta e o impossível. Grandes esforços na atualidade, portanto, devem e se tem feito para coerentemente sustentar que, para a psicanálise ser mãe e
ser mulher não é uma questão da natureza porque sobre o mito do instinto materno, a psicanálise também deu grandes tropeços. Muñoz (2009), enfaticamente aponta o que de corrosivo o discurso psicanalítico tem produzido:... a instituição psicanalítica produziu com o significante maternidade o mesmo efeito que a instituição psiquiátrica com os diagnósticos: um abuso de poder baseado na perversão do saber cujas repercussões ficaram não somente no pensamento dos psicanalistas, mas se traduziram em modalidades de tratamento, de subjetivação e de educação das mulheres como possíveis mães. 1 Em Cartografias do feminino, Birman (1999) procura escapar de uma adesividade à letra freudiana atendo se ao espírito que ela inaugura. Revela, mas também releva, alguns dos deslizes de Freud sobre o feminino. Ele conta, por exemplo, que Freud,...nos seus escritos de 20 e 30 sobre a sexualidade feminina, enunciou de forma peremptória que a figura da mulher estaria fadada à maternidade, isto é, o erotismo propriamente feminino deveria passar pelo labirinto enigmático da maternidade (p.93). Se na modernidade o discurso social construiu uma identidade mãe para as mulheres que paulatinamente foi se transformando, as reproduções assistidas tem operado como um dispositivo que faz ver que essa figura não esteja para nada ultrapassada e, mais do que isso, apresenta se reforçada. Seria um tanto radical afirmarmos que, apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. Mas, não é nada difícil encontrarmos, mesmo nas novas configurações familiares contemporâneas, uma certa nostalgia pelo modelo idealizado de família nuclear da modernidade e, em particular na figura da mãe mulher, mesmo que recalcado e altamente ambivalente. Se a maternidade em si é um devir, cabe perguntar sobre a capacidade de maternar simultaneamente vários bebês, salientando se que várias dessas gestações ocorrem em mulheres que apresentam as ditas E.S.C.A, ou seja, com significativa probabilidade de impedimentos psíquicos para serem mãe, quando ainda muitas delas encontram se cativas do próprio complexo 1 Tradução livre.
filial e/ou demasiadamente atentas aos ruídos sobre a identidade mãe mulher que ainda reverbera no social. Ao modo freudiano de se permitir fazer especulações sobre esboços de teorizações, evitando generalizações apressadas, podemos tecer algumas conjecturas sobre o que pode estar em jogo na relação mãe gêmeos. Na escassíssima bibliografia sobre o tema, encontramos as seguintes assertivas winnicottianas: A mãe de gêmeos tem uma tarefa extra, acima de todas as outras, que é dar se toda a dois bebês ao mesmo tempo (p.156)... É impossível à mãe satisfazer simultaneamente as necessidades imediatas de dois bebês (p.158). Essas afirmações sugerem pensar que a narcisização materna pode escassear também pelo excesso que o cenário gemelar acarreta, obviamente, não de forma genérica. Se a busca pela maternidade for movida predominantemente pela pergunta sobre o que é a mulher, a resposta gêmeos pode ser vivida como uma exaustiva servidão, adicional ao trabalho físico e psíquico que naturalmente demandam. Seja como for, a libidinização, para além dos cuidados básicos necessários, é um processo complexo que remete aos fantasmas infantis maternos que precisam estar minimamente elaborados para operar. Dentre eles, pode ocorrer que os gêmeos se apresentem para o olhar materno sob o signo do estranhamente familiar (umheilich): a apresentação do que deveria estar oculto, no caso, a plenitude, a indiferenciação. Da ordem do retorno do recalcado ou do retorno do real, os gêmeos podem significar para a mãe um excesso dificilmente metabolizável. Talvez, em conseqüência mesmo desta retirada materna, os gêmeos acabem por se buscarem para fazer espelho. Mas, o inverso também poderemos escutar sobre o que faz com que uma mãe veja e, por vezes, vista, como iguais seus dois, tres, quatro filhos gêmeos. Pode ocorrer que o desejo materno seja o da recusa da castração, onde o idêntico borra a falta da diferença. A realização de identidades absolutas e onipotentes responderiam ao infantil desejo materno de fusão, de completude alienante. As crianças responderiam ao desejo materno mantendose alienadas entre si. A função paterna, então, parece se complexizar, porque exigiria uma operância vigorosa tanto na relação entre mãe gêmeos, como entre eles, considerando que em alguns casos de esterilidade
materna, o silêncio do corpo esteve justamente a serviço de perpetuar a ilusão de completude mãe filha. Função paterna e materna, vale salientar, referem se à funções que podem ser encarnadas por vários outros. Nesse sentido, inclui se o tecido social que se fascina e se horroriza com os idênticos e convoca os gêmeos à permanente igualdade. E furar o mandato de todo um entorno não há de ser simples para pais e filhos. Em consonância com a proposta freudiana de levar a peste psicanalítica a paragens onde tende se a tamponar o desassossego humano, interrogarmos sobre o que do inconsciente pode estar revelando sobre o desejo (por vezes, a vontade) de ter filhos que não se cumpre é uma das muitas questões que a psicanálise tem se debruçado, na tentativa de sustentar e resgatar o caráter enigmático do humano, já que, atualmente, tende se a buscar e a oferecer imediatas respostas objetivas antes que as perguntas sobre suas incógnitas se coloquem. Sobre as demandas de gerar filhos dirigidas à Medicina, portanto, muito se pode escutar para além do desejo de filho. Diferentemente do hegemônico discurso médico, desconstruimos a equiparação entre corpo e organismo, olhando para um corpo biológico que trai e cumpre desejos insuspeitados, já que é de um corpo erótico que se trata, considerando a linguagem singular do caso a caso. BIBLIOGRAFIA AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de; Braga, Maria da Graça Reis. Reflexões acerca das novas formas de parentalidade e suas possíveis vicissitudes culturais e subjetivas. Acesso pela internet em julho de 2009 no site http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s1516 14982006000200002&lng=pt&nrm=iso&userID= 2 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1980. BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Editora 34. 1999.
CHATEL, M. M,. Mal estar na procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico. 1995. LABAKI, Maria Elisa Pessôa. Ter filhos é o mesmo que ser mãe? Jornal de Psicanálise. v. 40. no. 42. São Paulo. 2007. MUÑOZ, A (2009). Maternidad: significante naturalizado y paradojal: desde el psicoanálisis hasta el feminismo. Revista Psicologías, Vol.1. Disponible en http://psicologias.uprrp.edu/articulos/maternidad.pdf. SIGAL, Ana Maria. Escritos metapsicológicos. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2009. Souza, Maurício Rodrigues de. Experiência do outro, estranhamento de si: dimensões da alteridade em antropologia e psicanálise. Tese de doutorado Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. WINNICOTT, D. W. A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: LTC, 1982.