PODER, DIREITO E DEMOCRACIA: O PAPEL DOS DIREITOS HUMANOS NA REALIZAÇÃO DO BEM COMUM. Marcelo Ribeiro Uchoa



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Transcrição:

PODER, DIREITO E DEMOCRACIA: O PAPEL DOS DIREITOS HUMANOS NA REALIZAÇÃO DO BEM COMUM Marcelo Ribeiro Uchoa

PODER, DIREITO E DEMOCRACIA: O PAPEL DOS DIREITOS HUMANOS NA REALIZAÇÃO DO BEM COMUM Marcelo Ribeiro Uchoa Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1996), Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2007) e Doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha) no programa "La regulación del mercado de trabajo". É, ainda, Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Fortaleza (1998), mesma instituição onde atualmente desempenha a função de Professor Auxiliar em regime horista, com condição de professor-pesquisador, lecionando as disciplinas de Direito Internacional e Hermenêutica Jurídica. Possui formação complementar em Administração de Empresas, tendo concluído MBA em Gestão Empresarial na Fundação Getúlio Vargas - RJ (2005). Pela Universidade de Salamanca, possui o diploma de Grado de Salamanca (2009) e, por superação parcial de seu curso de Doutorado, também é diplomado em Estudios Avanzados/DEA (2009) e Estudios Superiores/DES (2009). É advogado de trabalhadores e servidores públicos em Fortaleza - CE, sendo sócio-gerente da banca Gomes e Uchôa Advogados Associados. É autor do livro Controle do Judiciário: da expectativa à concretização (o primeiro biênio do Conselho Nacional de Justiça), publicado pela Conceito Editorial. ISBN 978-85-60826-32-2. Resumo: A Constituição Federal do Brasil de 1988 instituiu, em seu art. 1º, parágrafo único, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos que estabelece. Apesar de que o constituinte reservou ao povo a titularidade do poder do Estado, Fábio Konder Comparato, prefaciando obra de Friedrich Müller, afirmou que não existe soberania inocente, pois sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar democraticamente a minoria, em nome do interesse nacional ou em nome de outros interesses, tais como a exclusão social, a segregação, o fundamentalismo religioso, etc., de modo que

uma democracia verdadeira - que superpõe o bem comum acima dos interesses particulares - deve tomar como parâmetro de referência para seu estabelecimento os direitos humanos. A presente pesquisa pura quanto à tipologia, qualitativa quanto à abordagem e exploratória quantos aos objetivos - colabora com este debate, a partir da análise histórica das relações Poder vs Direito, bem como da teoria do poder constituinte. Conclui que para a realização de uma democracia plena é necessário que o povo seja colocado no epicentro do Estado para que, de fato, reconheça-se capaz de irradiar à estrutura estatal sua vontade normativa, por sua vez, arquitetada pelos direitos humanos e orientada para o bem comum. Conclui, também, que isto só será possível se realizado dialogicamente, e desde que a cidadania seja, ao máximo, ampliada. Por isso, defende que o Brasil, que já possui arcabouço normativo voltado para o bem comum, busque a efetiva concretização dos direitos fundamentais, projetando-se cada vez mais à municipalização do poder e à abertura de tantos quanto possíveis canais de participação popular (na produção normativa e na ação estatal), sem perder de vista que a soberania do povo não prescinde de limites a serem definidos pelos direitos humanos. Sumário: 1. Introdução. 2. O poder e o direito no tempo. 3. O princípio democrático, os direitos fundamentais e o Estado brasileiro. 4. A concretização constitucional do princípio democrático. 5. A teoria do poder constituinte. 6. Os valores que fazem a vida humana digna de ser vivida. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas. 1. INTRODUÇÃO A Constituição Federal do Brasil de 1988 instituiu, em seu art. 1º, parágrafo único, que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos que

estabelece. Da leitura deste dispositivo fica fácil deduzir que o constituinte reservou ao povo a titularidade do poder do Estado, inferindo-se daí que toda atuação estatal deve se dar em função e em nome do povo, já que é este o grande legitimador de sua atuação. Mas apesar da clareza do parágrafo único do primeiro artigo constitucional FÁBIO KONDER COMPARATO, ao prefaciar obra de FRIEDRICH MÜLLER[1], afirmou que não existe soberania inocente, pois sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar democraticamente a minoria, em nome do interesse nacional ou em nome de outros interesses, tais como a exclusão social, a segregação, o fundamentalismo religioso, etc., de modo que uma democracia considerada verdadeiramente justa - que superpõe o bem comum acima dos interesses particulares - deve tomar como parâmetro de referência os direitos humanos[2]. A assertiva inaugura interessante discussão no entorno da titularidade do poder do povo, se ilimitado ou se suscetível de receber limitações. O presente artigo pretende colaborar com este debate, tomando como perspectiva o Estado brasileiro. 2. O PODER E O DIREITO NO TEMPO Ao pensar-se em poder, imediatamente se faz uma associação com o termo força. De fato, qualquer que seja a espécie de poder, ainda que ele não precise se justificar permanentemente pela força, deverá estar representado numa idéia mínima de superioridade que lhe permita cobrar de um mais fraco, inferior, obediência aos regramentos que estabelecer. Por isso, numa perspectiva filosóficojurídica, tem-se dito que o Poder é soberano. Consoante ensina GREGORIO PECES-BARBA[3], quando se estuda a relação entre o Poder e o Direito, do ponto de vista histórico, logo se observa uma íntima relação entre ambos os

fenômenos, costumando-se atribuir ao Poder, como conseqüência de sua soberania, a supremacia da produção normativa estatal. Apesar de que a assertiva goza, hoje, de certa unanimidade doutrinária, o mesmo não se pode dizer acerca da problemática da titularidade do Poder, que sempre reservou à Filosofia do Direito e à Ciência Política intensas oscilações de posições, de acordo com os interesses ideológicos dominantes às mais diferentes épocas. Segundo explica citado mestre espanhol[4], as correntes filosóficas que dominaram o pensamento humano da Antigüidade clássica até fins do século XV atribuíam ao Poder uma origem exterior ao ser humano. A visão jusnaturalista (necessariamente dual) que imperou sobre o conhecimento naquele vasto período, se no período helênico concebia ao Poder uma origem cosmológica, a partir dali e até o final dos tempos medievais a ele atribuiu origem divina. Somente com o advento do racionalismo é que a origem sobrenatural do Poder passou a ser questionada. O jusnaturalismo, apesar de manter-se fidedigno à dualidade jurídica, passou a conceber à dimensão natural conotações axiológicas, ou seja, valorativas, não propriamente exteriores ao homem. Tanto assim que HOBBES, tomado por muitos como o grande legitimador dos Estados absolutistas monárquicos[5], dando seqüência à matriz intelectual de JEAN BODIN, atribuía aos cidadãos a soberania do Poder, Poder este que depois de consentidamente transformado em Estado ( o enorme Leviatã ) seria repassado ao monarca. Verbis: A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios comuneiros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio trabalho e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades por pluralidade de votos, a uma só vontade.

Isso equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante deles próprios, considerando-se e reconhecendo-se a cada um como autor de todos os atos que aquele que os representa praticar ou vier a realizar, em tudo o que disser respeito à paz, e segurança comuns. Isso é mais do que um consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem como todos os homens de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes com toda reverência daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado é-lhe atribuído o uso do gigantesco poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no domínio da paz em seu próprio país, e da ajuda contra os inimigos estrangeiros. (...) Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz possuir poder absoluto. Todos os outros são súditos [6]. (grifos do autor) A consolidação do ideário contratualista que regeu o jusnaturalismo moderno e que sucedeu ao absolutismo também esteve longe de dissociar as idéias de Poder e Direito, e tampouco de desacreditar na idéia de Poder soberano, embora tenha deslocado a titularidade do poder do Estado para o povo em conjunto, ou melhor, para sua vontade geral[7]: Como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, dá o pacto social ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania. (...)

No instante em que o povo está legitimamente reunido em corpo soberano, cessa toda e qualquer jurisdição do governo, o poder executivo fica suspenso, e a pessoa do último dos cidadãos é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro magistrado, porque onde se encontra o representado deixa de haver o representantes. (...) A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral de modo algum se representa; ou é a mesma ou é outra; não há nisso meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são, quando muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente. São nulas todas as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis. O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos membros do Paramento; tão logo estejam estes eleitos, é de novo escravo, não é nada. Pelo uso que faz da liberdade, nos curtos momentos que lhe é dado desfrutá-la, bem merece perdê-la. (...)... não existe o Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem mesmo o pactos social; porque, se todos os cidadãos se reunissem com o fim de romper esse pacto, ninguém poderia duvidar de que tal rompimento não fosse legitimo.[8]. (grifos do autor) Desde então, consoante afirma PECES-BARBA: Toda la cultura jurídica, a partir del tránsito a la modernidad, tendrá que tomar posición ante ese tema central en la filosofía jurídica y política. Para nosotros, como veremos, es un elemento irrescindible para explicar el proceso de positivación de los derechos fundamentales, y el paso de la moralidad al la juridicidad de los mismo. La moralidad de los derechos, lo que ese ámbito suponen pretensiones morales justificadas son anteriores al Poder, pero, como hemos señalado, estas pretensiones, no son plenamente derechos fundamentales sin la positivación de éstos. De ahí la importancia del Poder como mediador entre esa moralidad previa y los derechos fundamentales incorporados al Derecho positivo [9].

E prossegue o constitucionalista espanhol ensinando que, ao longo dos tempos, a relação entre Poder e Direito oscilou numa variável em que se pode enumerar os seguintes modelos: a) supremacia do Poder sobre o Direito (p.ex, no ideal platônico do Filósfo-Rei, nos ideais jurídicos de Roma expressados por Ulpiano, nas idéias de Jean Bodin, Hobbes, Spinoza, e, por último, Carl Shmitt); b) supremacia do Direito sobre o Poder (p. ex, nas concepções tomistas clássicas de Aristóteles, para quem o Direito positivo deve estar em conformidade com o Direito natural, de ordem superior); c) identificação entre Direito e Poder (p.ex, de Maquiavel em diante, destacando-se o formalismo kelseniano, afinal, Un positivismo sin poder es como dice H. Heller un virtuosísimo lógico que no sirve para explicar las tres dimensiones, ética, política y jurídica, en que se mueve el concepto de derechos fundamentales [10]); d) separação entre Poder e Direito (em que o Direito atua à margem do Poder, sem nenhum ponto de contato, p. ex., na ilha de Robsinson Crusoé, porque o mundo jurídico é um mundo relacional de onde se necessitam de duas ou mais pessoas e se necessita um acordo e uma igualdade mínima mientras que el poder del personaje de Daniel Defoe, lo es respecto a los animales y a las cosas, ya que no tiene un sujeto correlativo que permita hablar de una relación jurídica [11]; e) por fim, equilíbrio entre Poder e Direito, citado por PECES-BARBA como modelo de relação mais adequado, já que o Direito não pode ser entendido sem o Poder e este se configura, cristaliza y se racionaliza o se frena y se limita[12] por meio do Direito. Para o professor: Desde el punto de vista interno será el Derecho el que influya el Poder, a través de la regulación jurídica del uso de la fuerza. ( ) Así el Poder que es fuerza mas consenso en unos valores que asume y recibe de la moralidad, crea y sostiene un sistema normativo, al que transmite una dimensión coactiva con la fuerza para que sea eficaz, y una dimensión de aceptación colectiva, con el consenso en los valores políticos que a través de los principios de organización y de los derechos fundamentales transforma en valores jurídicos. A su vez, el Derecho,

con esos contenidos utiliza, en gran parte, su capacidad normativa, para regular el uso de la fuerza que es una de las dos vertientes del Poder. También regulará los efectos jurídico de esos valores políticos, convirtiéndolos en valores jurídicos y norma básica material del Ordenamiento, y se beneficiará del consenso que sostiene al Poder, para facilitar y favorecer el consenso en el Derecho que produce su eficacia. Aquí tiene sentido señalar que la estabilidad de un sistema político que yo preferiría denominar <<efectividad>>, se produce con el buen funcionamiento de la relación. La legitimidad de sistema, deriva de sus contenidos éticos políticos incorporados al Poder ya su Derecho, favorece la estabilidad de ese mismo Poder y hace posible la justicia del derecho, su eficacia, y cuando el sistema se analiza en su conjunto, su validez. La relación Poder-Derecho, es estable y bilateral en la dimensión de la fuerza que sostiene la validez y la eficacia del Derecho [13]. (grifos do autor) Em resumo, sendo o Direito expressão de norma, e Poder expressão de vontade (relacionada a valores), por óbvio que não se conflitam, ao contrário, se completam. Em última instância, o Poder cria o Direito, mas o Direito dá ao Poder status jurídico, arquitetandolhe e sistematizando-lhe, e, ainda, impondo-lhe limites. As normas morais às quais se submetiam o Poder passam a influenciar o ordenamento jurídico, de modo que os valores que lhes são inerentes acabam por influenciar na Norma Fundamental do Estado[14]. Observe que este comentário vai de encontro ao que afirma JORGE MIRANDA, emérito constitucionalista de Coimbra: O Estado surge em virtude de se instruir um poder que transforma uma coletividade em povo. Esta instituição é, como dissemos, um fenômeno jurídico ainda quando nasce à margem de acto previsto em normas ordenadas a esse resultado; a própria criação revolucionária do poder é portador de juridicidade plena, pois que não só define relações jurídicas entre os cidadãos como se funda no Direito natural ou, se

preferir, na idéia do Direito dominantes na colectividade. Constituir o Estado equivale dar-lhe a sua primeira Constituição, a lançar as bases de sua ordem jurídica, a dispor por um estatuto geral de governantes e governados (...) O poder político é, por conseqüência, um poder constitucional enquanto molda o Estado segunda uma idéia, um projecto, um fim de organização.[15] (grifos do autor) Um Estado de Direito considerado democrático[16], isto é, alicerçado sobre as bases dos direitos fundamentais, deverá equilibrar Direito e Poder, de modo que aquele influencie neste regulando-lhe a força tão suficientemente para conduzir o Estado segundo os fins para os quais foi instituído, e, jamais, arbitrariamente. Assim PECES-BARBA finaliza seu raciocínio: En este equilibrio entre el Derecho y el Poder se encuentra la clave de esta relación, de la que surge, la forma de implantarse los derechos fundamentales en la cultura jurídica moderna: una moralidad que no actúa aisladamente, en una hegemonía que absorba al Derecho y al poder; sino que se realiza en un sistema jurídico impulsado por un Poder que es un hecho en un echo fundante básico, un poder que no es amoral, sino que sume una moralidad y se sujeta al Derecho que crea y sostiene, y un Derecho que realiza en su sistema de normas la moralidad que el Poder sume [17]. (grifo do autor) 3. O princípio democrático, OS direitos FUNDAMENTAIS E O ESTADO BRASILEIRO Sem delongas, explicita JORGE MIRANDA: I O poder é qualidade ou atributo do Estado. Condição de existência do Estado, ele aparece simultaneamente como a mais marcante de suas

manifestações e encontra-se-lhe ligado por um nexo de pertença. No plano sociológico, contudo, o poder não é tanto a comunidade estadual quanto do aparelho de órgãos e serviços que dentro desta estrutura se salientam. Existindo, embora, na e para a comunidade, o poder vai exercer-se e agir, unificando-a, orientando-a. No plano jurídico, pelo contrário, não é admissível separar inteiramente a titularidade do poder da própria comunidade. Pelo menos em três aspectos: a) A pessoa colectiva Estado tem por substracto a comunidade...; b) Os titulares dos órgãos e agentes detentores das faculdades ou parcelas de poder político provêm da comunidade...; c) O poder constituinte como poder de autoorganização originária é um poder da comunidade... II Não quer dizer que todo Estado tenha de ser, em pura lógica, democrático. A história antiga e contemporânea prova-o à saciedade. (...)... uma coisa é a titularidade do poder no Estado, descrito como comunidade, organização e pessoa colectiva e poder esse necessariamente exercido por órgãos...; outra coisa é a titularidade do poder no povo, conjunto de cidadãos dotados de participação activa na vida pública (os direitos políticos). Para lá da criação do Estado, só se deve falar em princípio democrático (distinto, por exemplo, do princípio monárquico) quando o poder é o titular do poder constituinte como poder de fazer, decretar, alterar a Constituição positiva do Estado. E só se deve falar-se em governo democrático, soberania do povo, soberania nacional ou soberania popular, quando o povo tem meios actuais e efectivos de determinar ou influir nas directrizes políticas dos órgãos das varoas funções estatais (legislativa, administrativa, etc.); ou seja, quando o povo é o titular (ou o titular último) os poderes constituídos. (...)... a titularidade do poder do povo em democracia implica exercício de poder, pelo menos o exercício do poder de escolher todos ou alguns dos governantes através de qualquer forma de eleição.[18] (grifos do autor)

JORGE MIRANDA considera democrático aquele Estado fundado sobre a soberania popular, cuja força se expressa na possibilidade de eleger seus representantes. Em linguagem suplementar, o constitucionalismo moderno não descuida de considerar, dentro dos traços de caracterização de um Estado democrático, a influência dos direitos humanos sobre o sistema jurídico. Em linha distinta de seu colega, J. J. G. CANOTILHO leciona que assim como estão à base do Estado de Direito os direitos humanos (que ele chama de fundamentais) também são estruturas essenciais à realização do princípio democrático:... os direitos fundamentais como direitos subjectivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício do poder antidemocrático, e como direitos legitimadores de um domínio democrático asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica, direitos eleitoral). Por fim, como direitos subjectivos a prestações sociais, económicas e culturais, os direitos fundamentais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco, através do legislador democrático, desses direitos [19]. (grifos do autor) O Estado Brasileiro é, inegavelmente, um exemplo de Estado constitucional adepto do princípio democrático. Afinal, a Constituição Federal de 1988, no preâmbulo e no art. 1º, apresenta-lhe como destinado à busca do bem comum, a partir da promoção e tutela dos direitos derivados da dignidade humana (no plano constitucional, os direitos fundamentais): CF/88 Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...

Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I a soberania, II a cidadania, III a dignidade da pessoa humana, IV o os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, V o pluralismo político (grifos do autor) Na linha do novo constitucionalismo brasileiro, destaca INGO WOLFGANG SARLET: (...) não nos parece impertinente a idéia de que na sua essência, todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida, liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa. [20] (grifos do autor) As colocações do doutrinador brasileiro encontram eco junto ao pensamento de ANTONIO ENRIQUE PEREZ LUÑO, consoante se lê do seguinte pronunciamento: Los derechos fundamentales constituyen la principal garantía con que cuentan los ciudadanos de un Estado de Derecho de que el sistema jurídico y político en su conjunto se orientará hacia el respecto y la promoción de la persona humana; en su estricta dimensión individual (Estado liberal de Derecho), o conjugando ésta con la exigencia de solidariedad corolario de la componente social y colectiva de la vida humana (Estado social de Derecho).[21] Por outro lado, ao prescrever que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,..., o parágrafo único do art. 1º da Constituição brasileira também esclarece que a legitimação Estatal tem origem em seu povo[22]: Assim, resta assente que o Brasil possui como base e fundamento a promoção e tutela dos direitos fundamentais (por derivação da dignidade da pessoa humana), que conforme expressado por H.-P. SHNEIDER[23] é conditio sine qua non do

Estado constitucional democrático, tendo como elemento legitimador o povo brasileiro. PEREZ LUÑO leciona que: De ahí que la vigencia del Estado de Derecho en la actualidad debe buscarse, más que en plano de la consideración semántica de sus técnicas de funcionamiento, en el esfuerzo pragmático en el que la lucha por la verdad del Estado de Derecho asume el significado de una lucha por su verdad democrática [24]. Sobre a relação entre democracia e o axioma todo poder emana do povo e em seu nome será exercido GOFFREDO TELLES JÚNIOR ensina que: O que, em verdade, o axioma prenuncia é que o poder dos Governos, quando não emanado do povo, não é poder: é força, força armada; e, neste caso, o regime não tem o caráter de uma Democracia verdadeira. De acordo com o célebre princípio, o Governo em regime democrático, só é legitimo, quando seu poder emana do povo [25]. (grifos do autor) Vale mencionar que para proteger os bens sob quais se ancora o Brasil, o constituinte originário concedeu-lhes imunidade contra eventuais emendas constitucionais. Verbis: CF/88 - Art. 60, 4º: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I a forma federativa de Estado; II o voto direto, secreto, universal e periódico; III a separação dos Poderes; IV os direitos e garantias individuais. (grifos do autor) Assim, resta inconteste que não bastasse o dever de promover a realização e tutela dos bens decorrentes da dignidade da pessoa humana, o Estado brasileiro comporta à sua base o princípio democrático, que vincula a legitimação de toda sua atuação ao bem comum.

4. A Concretização constitucional do princípio democrático J. J. G. CANOTILHO aponta quatro subprincípios fundamentais à concretização do princípio democrático no Estado contemporâneo: o princípio da soberania popular, o princípio da representação popular, o princípio da democracia semidireta, o princípio da participação. Apesar de se reconhecer a importância dos três últimos subprincípios enumerados, não há como negar que todos estes convergem para o primeiro, o princípio da soberania popular. Sobre o mesmo, afirma CANOTILHO: O princípio da soberania popular transporta sempre várias dimensões historicamente sedimentadas: (1) o domínio político o domínio de homens sobre homens não é um domínio pressuposto e aceite; carece de uma justificação quanto à sua origem isto é, precisa de legitimação; (2) a legitimação do domínio político só pode derivar do próprio povo e não de qualquer outra instância <fora> do povo real (ordem divina, ordem natural, ordem hereditária, ordem democrática); (3) o povo é, ele mesmo, o titular da soberania ou do poder, o que significa: (i) de forma negativa, o poder do povo distingue-se de outras formas de domínio <<não populares>> (monarca, classe, casta); (ii) de forma positiva, a necessidade de uma legitimação democrática efectiva para o exercício do poder (o poder e exercício do poder derivam concretamente do povo), pois o povo é o titular e o ponto de referência dessa mesma legitimação ela vem do povo e a este se deve reconduzir; (4) a soberania popular o povo, a vontade do povo e a formação da vontade política do povo existe, é eficaz e vinculativa no âmbito de uma ordem constitucional materialmente informada pelos princípio da liberdade política, da igualdade dos cidadãos, de organização plural de interesses politicamente relevantes, e procedimentalmente dotada de instrumentos garantidores da operacionalidade prática deste princípio [26]. (grifos do autor) Importa ressaltar que a aplicação do princípio democrático inter-relaciona-se, intimamente, com o princípio majoritário. Sobre o tema, J. J. G. CANOTILHO ensina que existe uma conexão intrínseca

entre o princípio democrático e o princípio maioritário... [27], porém, não descuida de ressalvar: A democracia tem como suporte ineliminável o princípio maioritário, mas isso não significa qualquer <<absolutismo da maioria>> e, muito menos, o domínio da maioria. O direito da maioria é sempre um direito em concorrência com os direitos das minorias com o conseqüente reconhecimento de estas de poderem tornar maiorias. A maioria não pode dispor de toda <<legalidade>>, ou seja, não lhe está facultado, pelo simples fato de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, p. ex., com os direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio da constitucionalidade sobrepõe-se ao princípio maioritário). Por vezes, a importância do assunto exige maioria qualificadas não só para se garantir a bondade intrínseca da decisão mas também para a proteção das minorias (cfr.arts. 109.º/30). Por último, devem referir-se os limites internos do princípio maioritário: se ele tem a seu favor a possibilidade de as suas decisões se tornarem vinculativas por serem sufragadas por um maior números de cidadãos, isso não significa que a solução maioritária seja materialmente mais justa nem a única verdadeira. O princípio maioritário não exclui, antes respeita, o <<pensar de outra maneira>>, o <<pensamento alternativo>>. Noutros termos: o princípio maioritário assenta politicamente num <<relativismo pragmático>> e não num <<fundamentalismo de maiorias>>. Para utilizarmos as palavras de um expresidente do Tribunal Constitucional Alemão: o pressuposto básico da praticabilidade do princípio maioritário é a ausência de pretensões absolutas de verdade. [28] (grifos do autor) Ora, consoante já se viu da leitura do parágrafo único do art. 1º destacado na parte anterior[29], o modelo constitucional brasileiro optou por seguir a tendência dos Estados ocidentais contemporâneos, mesclando seu modelo de democracia representativa com a participação semidireta do titular do poder (o povo, verdadeiro soberano), verbis:

CF/88. Art. 14: A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I plebiscito; II referendo; III iniciativa popular. Importante ressaltar que o Estado nacional além de adotar o princípio democrático, acolhe, também, o princípio majoritário, que se insere em seu ordenamento jurídico fundamentando a democracia e a legislação internas (vide, p.ex, a legislação eleitoral e o processo legislativo). Com efeito, importa concluir que, pelo menos do ponto de vista formal, o acolhimento de todos os princípios mencionados insere o Estado Brasileiro na linha de frente dos Estados contemporâneos comprometidos com a busca do bem comum para o seu povo. Mas apesar de toda consistência legal seria por demais falacioso, conforme já se mencionou, afirmar que o Brasil é um Estado inteiramente voltado à realização da vontade geral dos brasileiros, o que acaba por transformar em letra morta sua própria Carta Constitucional, especialmente no que tange ao preâmbulo e caput do art.1º, ambos combinados com o parágrafo único do mesmo artigo. Mas a verdade é que a dificuldade de interconectar a soberania do povo (traduzida nas ações do Estado) e os objetivos constitucionais (sobretudo o bem comum) transpõe as fronteiras nacionais e alcança todos os demais Estados democráticos[30], o que faz deduzir que, bem mais complexa do que possa inicialmente parecer, a problemática coloca-se diante da modernidade como uma contradição própria do regime democrático, que, sabendo-se das limitações que possui, ainda assim professa alcance que desde sempre conhece como inatingível.

5. A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE E A DEMOCRACIA O filósofo FRIEDRICH MÜLLER[31], lançando luzes sobre o tema, desenvolve raciocínio que acaba por situar no cerne da problemática o poder constituinte dos Estados modernos. Para ele, a idéia de representação de SIEYÈS, tida à época como única capaz de realizar o ideal democrático rousseauniano dentro de um Estado de dimensões avantajadas, acabou por desvirtuar a fidedignidade com o cumprimento da vontade geral. E o desvirtuamento do compromisso com a realização da vontade geral, por sua vez, foi imediatamente acatado pelo Estado liberal, cujos valores de orientação via de regra estão associados aos valores das classes economicamente dominantes. Por isso, MÜLLER chega a afirmar que o poder constituinte aparece na histórica com nome ideológico, como ideologia do Estado da burguesia.[32] Para ele, o que tem buscado a teoria do poder constituinte ao longo dos tempos, é legitimar juridicamente uma ordem normativa vinculada aos interesses de uma minoria dominadora, através de uma homogeneização do povo[33], justificada como se vontade geral fosse. Ensina o professor germânico que esta tentativa de homogeneizar o povo transborda os mais diferentes capítulos da história da humanidade, mas, como ninguém, o Estado liberal vem utilizando-se violentamente deste artifício, em razão dos interesses econômicos da burguesia, em tendência que se vê até mesmo na teoria de ROUSSEAU, sobretudo após a interpretação dada por SIEYES. Verbis: Um pouco diferente é a situação dos empreendimentos positivamente apresentados para a homogeneização de um povo: pela estruturação econômica apoiada da violência, na República de Platão; pela agitação politizante, no Político do mesmo; ou como no programa radical de

democratização de Rousseau: educação, agitação e constituição exemplar da Constituição (législateaur), costumes republicanos (moeurs). No caso mencionado por último trata de tornar o povo como sujeito político, torná-lo unitário pela politização; há aqui também aqui luares para as mulheres e os pobres.(...) Em todos esses casos a população heterogênea é uni ficada violentamente em favor dos privilegiados; o povo é fingido como constituinte pelo monopólio da linguagem e pelo poder definidos do(s) grupo(s) dominante(s). (...)[34] (...) Seria a linha de Sieyès, segundo a qual o ato constituinte não se deveria efetuar por meio de plebiscito, mas no curso de um procedimento representativo... (...) Sieyès reconhecera que a premissa de Rousseau, do povo homogêneo unido e capaz de atuação política não se coadunava com um Estado de grandes dimensões territoriais como a França, cujo povo era social e economicamente desigual, com diferenças de classe e interesses opostos [35]. (grifos do autor) Desde a concepção dos Estados modernos até os dias atuais, a teoria do poder constituinte vem sendo aplicada nos mais distintos Estados do ocidente mediante o sistema da representação, sempre se sustentando na mesma justificação de SIÈYES, ou seja, na impossibilidade do povo de conceber pessoalmente sua Constituição devido à vasta territorialidade dos Estados aliada à enorme densidade populacional dos mesmos. Assim é que FRIEDRICH MULLER crê que na atualidade em número cada vez mais reduzido de estados o povo tem chances efetivas de exercer o poder que lhe é atribuído pelos textos ideológicos bem como pelos textos jurídicos e que simultaneamente é exercido na práxis sem e contra o povo [36]. Para ele: Os povos são fraudados sempre de novo justamente na constituição de uma Constituição autoritariamente imposta com a realização mecânica de referendos cognitiva e volitivamente iliberais com vistas ao pouco que poderia ser realizado por meio de procedimentos e decisões [37]. (...)

A dominação no estado e governo de um grupo, nunca é realmente o governo de todos, quer dizer, da população sobre si mesma. No Estado Constitucional Democrático o governo é, conforme se afirma, de todos (governo do povo), mas povo não é população. O conceito de povo é seletivo em elevado grau[38]. (grifos do autor) Porém, FRIEDRICH MÜLLER não cansa de reafirmar que... Povo não deve funcionar como metáfora, o povo deve poder aparecer como sujeito empírico[39]. Até mesmo porque para o poder do Estado o povo é o ponto de partida de legitimação e simultaneamente a instância perante a qual esse poder se deve responsabilizar permanentemente.[40] Nota-se que o filósofo alemão situa a teoria do poder constituinte como principal entrave à plena realização da vontade popular. Porém, crê-se que a crítica poderia ser ampliada, pois a verdade é que o poder constituinte, o sistema representativo em geral, tudo são reflexos de um todo bem maior, o regime democrático. Apesar de sua polêmica biografia (de revolucionário do Terceiro Estado a golpista no 18 Brumário[41]) e de seu inequívoco ímpeto liberalista, não há como afirmar que SIEYÈS em seu desígnio parlamentar procurou falsear, deliberadamente, o ideário russeauniano. Analisando-se a teoria manifesta no Qu est-ce que le Tiers État? observa-se que a idéia de representação fora, na justa medida e sobretudo naqueles conturbados e imprevisíveis instantes de assembleismo, a mais adequada à realização da vontade geral. Por suas próprias palavras vê-se o quão comprometido estava com a insurgência: Que os representante do Terceiro Estado sejam escolhidos apenas entre os cidadãos que realmente pertençam ao Terceiro estado (...) Que seus deputados sejam em números igual ao da nobreza e do clero (...)