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Transcrição:

1) Soneto: Enquanto quis Fortuna que tivesse Enquanto quis Fortuna que tivesse Esperança de algum contentamento, O gosto de um suave pensamento Me fez que seus versos escrevesse. Porém, temendo Amor que aviso desse Minha escritura a algum juízo isento, Escureceu-me o engenho co tormento, Para que seus enganos não dissesse. Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos A diversas vontades! Quando lerdes Num breve livro casos tão diversos, Verdades puras são, e não defeitos... E sabei que, segundo o amor tiverdes, Tereis o entendimento de meus versos! Na 1ª estrofe, a Fortuna (destino ou entidade mítica) espera que o poeta escreva os efeitos dela: a esperança de algum contentamento e o o gosto de um suave pensamento. Porém, na 2ª estrofe, a voz poética introduz outra entidade mítica: o Amor. Este busca impedir o eu-lírico de advertir aqueles que não amam, sobre os perigos desse sentimento. Nas 3ª e 4ª estrofes, mostra a força do Amor que submete os amantes a seu domínio. E quando os amantes lerem sobre casos de amor, entenderão os versos do eu poemático de acordo com o tipo de amor a que estão submetidos. O soneto faz uma reflexão sobre os efeitos avassaladores do Amor.

2) Soneto: Amor é fogo que arde sem se ver Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor? Nas estrofes 1, 2 e 3, define-se a natureza paradoxal do Amor, revelando ser um sentimento contraditório. Na 1ª estrofe, há os efeitos corporais da paixão. Já na 2ª, as sensações que o Amor desperta na alma do ser humano. E na 3ª, os dramas em que vivem os apaixonados: presos, dominados e mortos pelo Amor. No final, as afirmações expressas nas estrofes anteriores se deparam com uma dúvida: como o Amor pode despertar nos seres a amizade, se ele é contrário a si mesmo?

3) Soneto: Busque Amor novas artes, novo engenho, Busque Amor novas artes, novo engenho, para matar-me, e novas esquivanças; que não pode tirar-me as esperanças, que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, conquanto não pode haver desgosto Onde a esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê. Que dias há que n alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê. Este é um dos mais belos e conhecidos sonetos camonianos. Na 1ª estrofe, o Amor é visto como uma força poderosa, que causa sofrimento; porém o eu-poemático se mostra indiferente, já que lhe faltam esperanças. Se não as tem, para que sofrer? Na estrofe seguinte, reforça a indiferença, alegando não temer os contratempos e as mudanças das coisas. Afinal vive as perigosas seguranças, paradoxo que a vida lhe impõe. Assim anda pelo mundo como se estivesse num mar muito bravo e sem remo. Não há saída. Entretanto sua indiferença, introduzida pelo verbo não temo contrastes nem mudanças, é quebrada pela conjunção adversativa mas. A partir daí reconhece que o Amor é maléfico ( um mal ), mortal ( que mata ), invisível ( não se vê ), indefinível ( um não sei quê ), de origem desconhecida, inevitável ( vem não sei como ) e incompreensível ( dói nao sei porquê ).

4) Soneto: Está o lascivo e doce passarinho Está o lascivo¹ e doce passarinho Com o biquinho as penas ordenando, O verso sem medida, alegre e brando, Expedindo no rústico raminho. ¹ brincalhão,travesso O cruel caçador, que do caminho Se vem calado e manso desviando, Na pronta vista a seta endireitando, Lhe dá no Estígio² lago eterno ninho. ² refere-se ao lago Estígio, que os mortos deveriam atravessar Destarte³ o coração, que livre andava, ³ dessa forma (Posto que já de longe destinado), Onde menos temia, foi ferido. Porque o Frecheiro cego me esperava, Para que me tomasse descuidado, Em vossos claros olhos escondido. Mais um soneto em que Camões fala da força poderosa do Amor. Na 1º estrofe, vemos o passarinho, num ramo, colocando em ordem as penas e na 2ª o caçador cruel, vindo devagar e mirando com sua seta o bichinho para matá-lo. Observem que não se usa o verbo morrer, mas o verso Lhe dá no Estígio lago eterno ninho deixa clara a intenção, pois quer fazer desse lago a morada do animal. A partir de destarte (dessa forma), constatamos que o passarinho e o caçador representam duas metáforas. A primeira é o coração e a outra, o deus do Amor (Cupido). Assim o coração, livre como um passarinho, foi ferido onde temia menos, pelo frecheiro (aquele que manuseia flechas), num momento de descuido em que olhava para os olhos da amada. Era nesses olhos claros que o Amor estava escondido. Lindíssimo!!!!!!!!!!!!!!!!

5) Soneto: Alma minha gentil, que te partiste Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida, descontente, Repousa lá no Céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. É um dos meus sonetos predileto. Tenho cá guardado no peito e na memória. Logo na 1ª estrofe estabelece-se a oposição entre o eu-poemático e a amada. Ela está morta (alma minha) e descansa no Céu (o mundo inteligível) e ele, sempre entristecido, habita a terra (mundo sensível). De um lado, o mundo da perfeição e do outro, o mundo das imperfeições, conforme a filosofia platônica. Na 2ª estrofe, o eu-lírico pede à amada que não esqueça o amor ardente que ela viu tão puro nos olhos dele, se lá no Céu (assento etéreo) for possível lembrar. Na 3ª estrofe, colocando o seu amor à prova, já que a perda da amada lhe causou mágoa, sem remédio, pede que ela rogue a Deus, que a levou tão cedo, que o leve também. Só assim as almas se unirão. Apesar das antíteses alma/corpo, lá/cá, Céu/terra, amor carnal (ardente)/amor espiritual (puro), que colocaria o poema na lista dos maneiristas, no final há uma síntese hamônica, portanto clássica.