O SISTEMA DE SAÚDE NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA.



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Transcrição:

O SISTEMA DE SAÚDE NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA. Autor (a) Ana Paula Andreotti Pegoraro, UNICAMP - CAPES peganapaula@gmail.com

O SISTEMA DE SAÚDE NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA. Ana Paula Andreotti Pegoraro 1 Tendo em vista a essencialidade da proteção social e o papel fundamental desempenhado pela saúde na melhoria da qualidade de vida e no bem estar da sociedade, este trabalho tem como objetivo comparar os sistemas de saúde do Brasil e dos Estados Unidos. Foram selecionados alguns aspectos no que tange o sistema de saúde para um suporte teórico à comparação, tais como levantamentos do perfil socioeconômico, do histórico dos sistemas de saúde e de dados sobre o padrão de financiamento e acesso aos serviços de ambos os países. São destacadas as principais especificidades de cada sistema e suas principais fragilidades. No caso dos Estados Unidos destaca-se a forte presença do setor privado e no Brasil a insuficiência de recursos para a garantia de um sistema universal. PALAVRAS-CHAVE: Sistema de Saúde, Brasil, Estados Unidos. INTRODUÇÃO Os sistemas de saúde têm desempenhado papel fundamental para a forte expansão da expectativa de vida e para o aperfeiçoamento da qualidade de vida e bem estar de milhões de homens, mulheres e crianças ao redor do mundo. Porém enormes lacunas permanecem e a diferença de resultado entre os países é ainda muito alta. Os sistemas de saúde têm falhado em oferecer serviços a todos, dessa forma centenas de milhões de pessoas no mundo estão excluídas dos serviços à saúde (World Health Report, 2000). Quando se trata de saúde é crucial a percepção de que este bem é fundamentalmente diferente, ele é um bem inalienável, o que o se assemelha com outras formas de capital humano como a educação e as habilidades pessoais. Mas, a grande e 1 UNICAMP, peganapaula@gmail.com, mestranda em Desenvolvimento Economico, área de concentração: Social e do Trabalho.

primordial diferença da saúde é ser um bem que não pode ser acumulado e está sujeito a grandes e imprevisíveis riscos Os sistemas de saúde, portanto, têm uma responsabilidade adicional: garantir que as pessoas sejam tratadas com respeito, em conformidade com os direitos humanos, protegendo assim todos os seus cidadãos de forma contínua. Encontrar um novo rumo e bem sucedido para os sistemas de saúde é, antes de tudo, uma arma poderosa na luta contra a pobreza e é também o caminho para a garantia dos direitos humanos a todos. As políticas públicas são algumas das formas de proteção social, as quais são sustentadas por quatro pilares: previdência social, assistência social, educação e saúde. Nesta introdução será abordada o conceito de proteção social e a varias formas de políticas públicas, visando traçar os principais pontos a serem discutidos ao longo do trabalho. A discussão sobre proteção social e políticas públicas de um país é de extrema importância para o desenvolvimento de uma nação e de suas principais manifestações de cidadania. Proteção social é uma das formas encontradas pela sociedade para atenuar suas necessidades, outrossim, este conceito e suas distintas interpretações sustentam as principais articulações de políticas públicas que constam num Estado Democrático pluralista. Segundo Di Giovanni (1998) as formas de dependência são inerentes às condições humanas e as políticas públicas ou privadas são capazes de satisfazer esta necessidade, o que resulta nos diversos sistemas de proteção social que são à base da estrutura da vida social moderna. Viana e Levcovitz (2005) entendem proteção social como as ações que tem como objetivo proteger e amparar a comunidade de eventuais problemas que surgem dentro da própria sociedade. Tanto Viana e Levcovitz (2005) como Di Giovanni (1998) acreditam que os sistemas de proteção social surgiram a partir da necessidade de diminuição dos riscos existentes nas sociedades, tais como infância, velhice, infortúnio, carência de alimentos, entre outros. Um aspecto importante que Di Giovanni (1998) apresenta é o fato de que, para ele, sempre houve algum tipo de esforço da sociedade em criar mecanismos de proteção social e são principalmente os critérios históricos e sociais que determinam a alocação

de recursos focados na proteção da sociedade, os quais abrangem também uma conotação de poder. O autor inclui a questão das formas seletivas de distribuição dos recursos e os fundamentos reguladores e normativos inerentes à sociedade, ambos com a finalidade de proteção social. No que tange a cobertura, é significante a divergência entre seguro e seguridade. Enquanto o seguro se configura como uma cobertura apenas ao contribuinte, a seguridade é um tipo de intervenção mais abrangente, já que há cobertura universal, e, portanto, abarca o conceito de cidadania. Os modernos sistemas de proteção social, no âmbito da saúde, se responsabilizam pelo risco social de um individuo enfermar-se. Cabe ressaltar que o Estado que pratica a cidadania deve oferecer tais direitos a toda a população de forma irrestrita, isto é, o risco de um individuo é responsabilidade coletiva e dever de toda sociedade, mas também direito do cidadão. Em contraposição ao conceito de cidadania, tem-se o de contribuinte, que é o individuo que tem acesso a determinados serviços mediante o pagamento de uma contribuição a instituição responsável pela prestação de serviço. Neste sentido, a prestação de serviço para o seguro é redistributivo de acordo com uma lógica de seletividade, isto é, os indivíduos contribuem com certa quantia e a instituição redistribui os recursos em forma de serviços apenas para os contribuintes. Enquanto a seguridade se dá de forma homogênea de soma fixa, isto é, a instituição oferece o serviço a toda população de forma homogênea não levando em consideração o pagamento de contribuição, a qual é feita por toda a sociedade segundo critérios diferentes. O papel do Estado, diante da estruturação de proteção social de um país, se dá institucionalmente através de políticas públicas, as quais têm como objetivo a definição e execução de normas. O Estado exerce o poder de determinar decisões, objetivos, e grupo de beneficiários, por meio de um complexo relacionamento com outros agentes de forças envolvidas. Em função das divergências nas condições históricas complexas de cada país e, principalmente, na estrutura e dinâmica no campo dos conflitos sociais, uma análise comparativa entre os sistemas de proteção social de diferentes países deve levar em consideração lógicas distintas de formação e consolidação de sistemas de proteção

social, os quais resultam em variações nas relações de inclusão/exclusão, de redistribuição e com o sistema político (Aureliano e Draibe, 1989). Os modernos sistemas de saúde são o resultado da complexa interação de três principais forças: proteção social, econômico-industrial e política, as quais impulsionam a criação de políticas públicas. A saúde cumpre um papel fundamental nas interações sociais e nas articulações políticas e industriais, de tal forma que este debate se mostra relevante por apontar como as forças atuam nas decisões de assistência a saúde pelo setor público e privado. O objetivo deste trabalho é comparar dois sistemas de saúde inseridos em realidades distintas e analisar suas especificidades. Os países escolhidos foram o Brasil e os Estados Unidos.Comparar dois sistemas de saúde é, acima de tudo, entender como a sociedade se relaciona com as políticas sociais e como esta relação garante os direitos humanos. Os dados de um sistema de saúde, tais como receitas, despesas, grau de acesso não são suficientes para defini-lo, é necessário entender sua história, definindo os principais obstáculos enfrentados, e a sociedade no qual ele está inserido. Nesta lógica, o segundo item mostrará as principais caracteristicas de cada sistema em uma visão histórica, além da descrição do perfil socioeconômico de cada país e além de uma breve descrição do padrão de financiamento e gasto e de indicadores sobre o grau de acesso dos sistemas de saúde. O terceiro item tem um caráter conclusivo com a finalidade de comparar os sistemas de saúde brasileiro e norte americano, em uma análise conjunta das informações apresentadas nesta introdução com os dados do segundo item, fazendo assim uma comparação que terá tanto embasamento teórico como dados empíricos. A contribuição deste trabalho para um debate amplo sobre os rumos das sociedades capitalistas está relacionada com o fato de o trabalho levar em conta tanto aspectos teóricos quanto práticos dos sistemas de saúde brasileiro e norte americano, além de considerar também a sua relação com a sociedade em que estão inseridos.

AMERICANO COMPARAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS DE SAÚDE BRASILEIRO E NORTE O objetivo deste item é caracterizar os Sistemas de Saúde brasileiro e norte americano, e o caminho traçado para tal meta é a de, num primeiro momento, apontar os principais determinantes e marcos históricos definidos, através da história, e as especificidades dos sistemas de cada país. Na segunda parte será feito um levantamento das principais características sociais e econômicas do Brasil e dos Estados Unidos como proposta em definir, de forma geral, o perfil da sociedade e da economia no qual estão estruturados seus sistemas de saúde. Na terceira parte serão apresentadas informações relacionadas ao padrão de financiamento e de indicadores sobre o grau de cobertura e acesso dos sistemas de saúde. O levantamento de marcos históricos relacionados à criação e modificação do sistema de saúde é bastante relevante, uma vez que são eles que determinam as características do atual sistema e como é dado o processo evolutivo de atuação e intervenção do Estado no país. Além disso, os limites e obstáculos encontrados na estruturação e financiamento do sistema se evidenciam de acordo com determinados marcos históricos. Histórico do Sistema de Saúde do Brasil O atual modelo de política de saúde no Brasil é resultante de um processo histórico iniciado nos anos 1930, marcado pela Reforma Sanitária, que ganhou força a partir dos anos 1970, e definido na Constituição de 1988. Mesquita (2008) também afirma que, durante o período de 1910 a 1980, as características determinantes do padrão de proteção social no âmbito da saúde no Brasil são: forte centralização das decisões no governo federal; segmentação das ações, seletividade institucional entre saúde pública e assistência médico-hospitalar, cobertura seletiva e forte presença do setor privado na oferta de serviços de saúde. A política nacional de saúde era marcada por uma separação institucional: por um lado havia a atuação de saúde coletiva, em que as ações eram organizadas e prestadas por instituições estatais a toda a população, e do outro, a assistência médica previdenciária, em que os serviços eram prestados de forma restrita a alguns trabalhadores urbanos.

Foi a partir dos anos 1970 que surgiram críticas a desigualdade no grau de acesso aos serviços de saúde e foi criado um movimento pela reformulação do sistema nacional de saúde, o qual ficou conhecido como movimento sanitário. Este movimento, que ganhou força em 1977, defendia a universalização do acesso aos serviços, a democratização do sistema, ao caráter público e descentralizado e ao ênfase para a atenção primária. Foi em 1988, com a Assembléia Nacional Constituinte (ANC), que os brasileiros conquistaram o direito universal à saúde, definido no artigo 196: a saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, CF, 1988). Dessa forma, é responsabilidade do Estado a provisão de assistência à saúde de forma gratuita e universal. Com esta nova Constituição, surge o Sistema Único de Saúde (SUS) que inclui tanto ações de saúde coletiva, quanto de assistência médica e está calcado nos princípios da universalidade na cobertura; integralidade no cuidado; descentralização; e significativa participação social na estruturação do sistema de saúde (Mesquita, 2008). Do ponto de vista de proteção social, há, portanto, uma ruptura deste conceito no Brasil decorrente da substituição do modelo de seguro social para o modelo de seguridade social, que envolve o conceito de universalidade. Em outras palavras, a Constituição de 1988 é considerada um ponto de inflexão no padrão de proteção social no Brasil, pois deixa de ser um modelo calcado na seletividade, a cobertura ao contribuinte, e passa a ser um modelo baseado na universalidade, a cobertura ao cidadão 2. No Brasil, após a Constituição Federal o setor privado passou a ter papel complementar no sistema de saúde, sendo assim obrigação do Estado garantir assistência à saúde a todos os cidadãos brasileiros. Apesar disso, o setor privado, que já se apresentava forte, não deixou ocupar um significativo espaço no sistema de saúde brasileiro. 2 Este ponto é de extrema importância para a comparação do sistema de saúde do Brasil com o dos Estados Unidos. Portanto, cabe enfatizar que o sistema de saúde brasileiro, a partir de 1988 é comporto por políticas de caráter universal, que inclui o conceito de cidadania, isto é, de seguridade social.

Nos anos seguintes à Constituição Federal, houve um processo de reordenamento institucional relacionado ao comando nacional do SUS não linear. Apesar de haver significativos avanços na reforma do setor saúde, eram aparentes grandes obstáculos para a construção do SUS, em especial a presença forte do setor privado conjuntamente com o caráter suplementar de tais serviços e, principalmente, o contexto de pífio desempenho econômico e ajuste liberal. O contexto econômico e político que deveriam ser um apoio de extrema importância para o sucesso na estruturação do SUS apresentava sinais profundos de crise, dada a esavziamento do papel do Estado através de políticas de viés neoliberal, o que se tornou um grande desafio para a concretização da Reforma Sanitária, em efeito, o que se observa é um sistema de saúde incompleto. Ao mesmo tempo em que o Brasil tentava construir um sistema de saúde universal, o movimento neoliberal impunha um ajuste fiscal com corte de despesas e redução da rigidez orçamentária, criando grandes obstáculos para a construção do SUS. Histórico do Sistema de Saúde dos Estados Unidos No caso do sistema de saúde norte americano, sua história é marcada principalmente por iniciativas locais, financiadas com recursos privados e houve sempre uma luta para manter um sistema não governamental e não universal apesar de haver marcos de regulamentação e subsídios ao sistema (Costa et al, 2005). Os Estados Unidos apresentam um sistema de saúde com os maiores gastos em relação ao PIB e em termos per capita dentre os países da OCDE 3 e, ao mesmo tempo, as menores taxas de cobertura 4, as quais apresentam significa desigualdade no que tange ao acesso dos serviços dentre a população coberta, e ainda os piores indicadores epidemiológicos (Noronha e Ugá, 1995). Segundo Silva (2003), deve-se destacar que o sistema de saúde norte americano apresenta predominantemente mecanismos privados de acesso aos serviços de 3 Em 2006, os Estados Unidos apresentaram gasto total per capita com saúde, em dólar, de 6719, mais de 1000 a mais que a Suiça, segundo país com maior gasto total per capita com saúde (5660). Fonte: The World Health Report 2006 (Organização Mundial da Saúde). Tal assunto será melhor discutido no item 2.3. 4 Em 2008, 15,4% da população não tinha nenhum tipo de cobertura, fonte: Kaiser Family Foundation. Tal assunto será melhor discutido no item 2.3.

assistência à saúde, sendo que existem apenas dois programas públicos de assistência médica os quais atendem segmentos específicos da população, idosos e população de baixa renda. De acordo com Silva (2003), este predomínio do setor privado na assistência da saúde é decorrente, de forma geral, da cultura dos Estados Unidos. Por isso, uma reforma estrutural no sistema de saúde é encarada por parte significativa da população como desnecessária. Neste sentido, o autor destaca três características fundamentais da sociedade norte-americana que explicam a cultura dos Estados Unidos no que diz respeito à saúde, são elas: 1. Os norte americanos encaram a atenção à saúde, assim como outros tipos de proteção social, como um problema de natureza individual, portanto todos os indivíduos são capazes de competir no mercado e assim pagar por assistência à saúde. O Estado não tem obrigação de garantir o acesso aos serviços de saúde e o que prevalece nesta sociedade é a liberdade de escolha de acordo com suas preferências e restrição orçamentária. 2. A sociedade norte-americana prioriza organizações que oferecem maior eficiência econômica para o sistema em detrimento de organizações preocupadas com equidade do acesso, solidariedade e a justiça social 5. 3. Faz parte da cultura de parte significativa da população norte-americana a aceitação do sistema meritocrático-particularista. A partir destas características, fica evidente que foi este modo de encarar a atenção à saúde e as demais políticas públicas, que implicou no atual sistema de saúde, predominantemente privado e com apenas dois programas públicos que atendem a grupos específicos da população, os quais são considerados indivíduos incapazes de competir no mercado e, portanto, necessitam de proteção do governo. Apesar de existir apenas dois programas sociais de atenção a saúde e para grupos específicos da população, a quantidade de indivíduos assistidos e o volume de recursos 5 O conceito de cidadania discutido no item 1.1., de que um Estado, que pratica a cidadania, define certos deveres e direitos, civis, políticos e sociais, à população e se preocupa com a solidariedade e com a justiça social. Portanto, fica evidente que a cultura norte-americana não exerce cidadania conforme estudado.

são significativos, isto é, atenderam em 2008 a 27,7% da população 6 e, em 2007, as despesas com programas públicos chegou a um montante de 45,5% do total de despesas em saúde 7. A interpretação da Constituição foi outro obstáculo para a criação de um sistema nacional de saúde, isto porque interpreta-se que as funções não expressamente atribuídas ao governo federal é responsabilidade dos estados, logo a assistência à saúde é responsabilidade de cada estado individualmente (Costa et al, 2005). Cabe ainda destacar outras questões, discutidas por Silva (2003), relacionadas à cultura norte-americana que, de certa forma, determinaram a forma do atual sistema de saúde, são elas: a elevada autonomia dos estados frente à União; diversidade étnica e cultural; baixa participação política da sociedade e forte influência de grupos de lobby. Segundo Silva (2003), as primeiras organizações empresariais no setor médicohospitalar começaram a surgir no final do século XIX e início do século XX. Essas organizações ofereciam planos de saúde a indústrias, empresas comerciais de maior porte, sindicatos e associações de consumidores. Neste período, o sistema de saúde norte americano era caracterizado pela divisão em camadas. Apesar de apresentar este impulso no início do século XX, as organizações empresariais não se desenvolveram de forma expressiva até o final deste século, já que nem os profissionais, que recebiam baixos salários, nem os consumidores, que não tinham liberdade de escolha, estavam satisfeitos com os planos. Em 1926, surge a Comissão de Custos de Atenção à Saúde, composta por médicos, economistas e defensores da saúde pública, em estudo foi detectado que o sistema organizado era ineficiente e prejudicava o cuidado à saúde. Apesar de esforços para uma reforma estrutural, foram feitos pequenos ajustes incrementais que acabou por dividir ainda mais pacientes, instituições, provedores e financiadores (Kirkman-Liff, 1997). Foi a partir da Grande Depressão dos anos 1930 que surgiram os planos de assistência hospitalar que ofereciam prestação direta de serviços com pagamento antecipado de um valor fixo mensal, com maior liberdade de escolha e novos mecanismos de gestão financeira (Silva, 2005). Deve-se destacar também que a crise 6 Kaiser Family Foundation, 2008. 7 World Health Statistics, 2010.

gerou uma classe social intermediária, que não era pobre o suficiente para utilizar os serviços públicos tampouco rico para pagar por serviços à saúde. Esta classe, portanto, passa a ser uma clientela potencial dos planos de pré-pagamento. O período de entre - guerras foi marcado pelo estabelecimento de um sistema privado de seguro saúde fundamentado em planos de medicina de grupo e também pela adoção de taxas uniformes. O autor destaca que as organizações empresariais se encaixavam no setor de seguro tradicional e estavam submetidos à legislação específica de cada estado. A fim de atenuar as restrições legais na prestação de serviços de saúde os grupos hospitalares criaram uma rede de empresas de natureza sem fins lucrativos vinculadas ao setor hospitalar, o Blue Cross. Tanto a atuação dessa rede de empresas quanto sua regulação se manteve no âmbito estadual. Durante a Segunda Guerra Mundial, houve mais esforços a fim de implementar um sistema de saúde universal, mas os trabalhadores preferiram negociar com os empresários pelos benefícios de saúde, já que acreditavam que o sistema universal acarretaria no fim dos benefícios já garantidos. Neste mesmo sentido, os empresários também foram contra, pois preferiam prover benefícios a seus funcionários a pagar taxas gerais para um beneficio para todos os cidadãos (Kirkman-Liff, 1997). Com este movimento contra, a reforma inclui a classe trabalhadora formal na cobertura, criando mais um obstáculo para uma reforma estrutural. O sucesso dos planos de saúde deixou evidente a existência de um amplo mercado potencial, o de seguros de saúde, e foi no período pós-guerra então que surgiram as primeiras empresas especializadas na comercialização de seguro de saúde. A inovação dessas empresas estava na substituição da oferta direta de serviços pela oferta de planos de reembolso de gastos com assistência médica-hospitalar, que oferecia uma maior variedade de planos de seguro saúde e seus respectivos valores, ampliando os segmentos da população que estavam dispostos a pagar (Noronha e Ugá, 1995). Apesar de haver neste período um grande crescimento dos planos de seguro saúde, ainda havia um segmento significativo da população que não tinha acesso aos serviços de saúde disponibilizados pelo setor privado. Isso levou a intensificação do debate no inicio dos anos 1960 para uma reforma do sistema visando ampliar o acesso aos serviços a toda população.

Em 1963, o Congresso aprovou dois programas públicos de acesso à saúde, com diferentes graus de acesso e diferentes formas de financiamento, Medicare e Medicaid. Apesar de ambos serem programas públicos, representam formas distintas de proteção social. O Medicare e os planos de saúde privados configuram-se por seguro social enquanto o Medicaid tem o formato de política assistencialista, já que seu acesso é restrito aos indivíduos com atestado de pobreza. Além disso, mais uma vez o governo não conseguiu impor uma reforma estrutural, a criação destes programas foi apenas uma reforma incremental de maior profundidade (Kirkman-Liff, 1997). O Medicare é um programa nacional e o Governo Federal é o responsável por sua administração, a qual envolve a gestão e pagamento de contratos das empresas privadas prestadoras de serviços e da definição de critérios padronizados de elegibilidade, e por sua regulamentação. O acesso aos serviços do Medicare é restrito a população com mais de 65 anos e seus dependentes e portadores de doença renal terminal. Atualmente, as funções dos setores público e privado são distintas no que diz respeito a provisão de serviços ao sistema de saúde norte-americano. O setor público é responsável pelo controle e vigilância epidemiológica e sanitária e gestão da provisão de serviços de saúde aos aposentados e à população de baixa renda. Enquanto que o setor privado é responsável por grande parte da prestação de serviço, direta ou indiretamente. Segundo Noronha e Ugá (1995), os principais problemas existentes no sistema de saúde norte-americano é o fato de que este está baseado no provimento de serviços pelo setor privado, já que isto implica que parte significante da população está sem cobertura (15% 8 aproximadamente), há graus de cobertura e acesso muito diferenciados, obsessão por tecnologia, especialização, intervenção médica profunda, negligencia com atenção primária, elevação de custos, necessidade constante de controle, diversidade e discriminação. Conclui-se que os Estados Unidos, apesar de ser um país desenvolvido, não oferecem cobertura universal a seus cidadãos e deixam claro que as forças de mercado em um ambiente de pouca regulação não são capazes de garantir maior eficiência econômica do sistema por meio de preços baixos e alto grau de cobertura. 8 Será discutido no próximo item.

de saúde. Perfil socioeconômico do Brasil e dos Estados Unidos sob a ótica dos sistemas O levantamento do volume da população do Brasil e dos Estados Unidos é uma forma de mostrar o tamanho dos países em estudo e, por conseguinte os desafios que eles enfrentam na administração de um sistema de saúde, isto porque, o volume da população representa o tamanho da necessidade de proteção social e, por conseguinte, de provisão de serviços à saúde. No caso estudado, ambos se tratam de países com um tamanho elevado da população, sendo que os Estados Unidos apresentam um número ainda maior. O estudo do sistema de saúde deve levar em consideração, portanto, uma população bastante elevada, são 195 milhões de brasileiros e 310 milhões de norte americanos que, em 2010, de alguma forma precisam utilizar os serviços de saúde, seja ele público ou privado 9. No caso do Brasil, onde o sistema de saúde é universal, o total da população já indica o potencial de demanda, já que todos os indivíduos são considerados cidadãos que tem direito ao acesso a saúde, e isso nos mostra, portanto, que o Brasil tem o desafio de garantir o acesso a uma população de quase 200 milhões de pessoas. Então, uma análise do perfil demográfico mostra a necessidade de gasto do sistema levando em consideração, por exemplo, que idosos e crianças gastam mais com saúde, mas não exclui uma parte da população. A renda da população é uma forma de mensurar a capacidade de financiamento do sistema e de qualificar a demanda por meio da capacidade de pagamento da mesma. No ano de 2008, segundo a OCDE, o PIB dos Estados Unidos foi de 14.369,4 bilhões de dólares e o do Brasil foi de 1.984,4 bilhões de dólares, o que representa que a economia brasileira é aproximadamente sete vezes menor do que a norte americana. No que tange a capacidade de financiamento do sistema de saúde, dada a dimensão de riquezas produzidas no país, os Estados Unidos apresentam um potencial de financiamento muito maior do que o Brasil. 9 OCDE (www.oecd.org)

Os Estados Unidos, além de apresentarem uma renda significantemente maior que a do Brasil ela está melhor distribuída entre sua população, portanto, a população norte americana apresenta maior capacidade de pagamento de serviços à saúde. Porém, cabe destacar que ambas as sociedades apresentam índices de distribuição de renda fortemente desiguais. Para a definição do perfil da economia e sociedade assistida pelos sistemas de saúde do Brasil e dos Estados Unidos, a discussão sobre a questão fiscal tem o objetivo de mostrar o potencial de gasto do Estado através da carga tributária dos países em comparação com as despesas públicas em saúde. Em 2008, a carga tributária dos Estados Unidos representava 25,86 % do PIB norte americano enquanto que a do Brasil representava 35,90% de seu PIB 10. Isso mostra que o governo brasileiro tem um potencial maior de gasto em relação a sua renda. Uma carga tributária significativamente maior, por definição, leva a discussão de que o gasto público com saúde do Brasil deveria ser maior do que o dos Estados Unidos. Porém, os dados mostram que, em 2007, as despesas públicas com saúde per capita totalizaram 3.317 (PPP $) nos Estados Unidos e 348 (PPP $) no Brasil 11. Os dados per capita em PPP $ são importantes, pois mostram uma significativa diferença no que se refere aos gastos, 10 vezes maior nos Estados Unidos. Porém, como são países de rendas bastante discrepantes, cabe mostrar que em porcentagem do PIB, o total de despesas com saúde foi de 15,7 nos Estados Unidos e 8,4 no Brasil 12,o que significa que mesmo eliminando a variável do PIB o gasto do primeiro país ainda é bem maior que o segundo. Isso mostra que apesar de o governo brasileiro ter maior potencial para gastar com saúde por causa de sua alta carga tributária, do total arrecadado pouco se destina a pagamento de serviços à saúde, e o inverso acontece nos Estados Unidos. Até aqui, a conclusão é de que a carga tributária em si pouco mostra sobre os sistemas, já que não há uma relação positiva com as despesas públicas em saúde. Há uma contradição, pois os Estados Unidos apresentam um gasto significantemente maior 10 OCDE. 11 World Health Statistics, 2010 12 World Health Statistics, 2010

que o do Brasil, eliminando a lógica de que um país com sistema de saúde universal gastaria mais que um meritocrático particularista. Contudo, é exatamente neste ponto que a contradição é ainda maior, já que os dados de acesso ao sistema indicam que em 2008, dentre a população norte americana apenas 27,7% 13 tem acesso aos serviços públicos de saúde (Medicare, Medicaid e outros programas) enquanto que no Brasil 100% da população tem direito a ter acesso ao sistema de saúde, dos quais apenas 25,9% usam de forma complementar o sistema de saúde privado. A conclusão da questão fiscal paira sobre duas grandes contradições, a primeira é de que apenas uma pequena parte da alta carga tributária do Brasil é destinada à serviços de saúde enquanto que, apesar de ter uma carga tributária 1/3 menor, os Estados Unidos destinam relativamente mais recursos para os serviços à saúde. A segunda contradição abrange o fato de maiores gastos não representarem maior grau de acesso ao sistema, ao invés disso, dos recursos do governo brasileiro, o pouco destinado a saúde garante acesso a todos os indivíduos. Enquanto que, da população americana, apenas grupos específicos (idosos, crianças e pobres) recebem um amplo montante de recursos, os quais representam significativa parte do total arrecadado. A discussão até aqui evidenciou a questão do financiamento e das despesas do sistema de saúde como um dos maiores desafios para o processo de implementação do SUS. Outrossim, o padrão de financiamento, além de mostrar como se dá a institucionalização do Estado para centralização de recursos, é fundamental para a implementação de uma política pública de cunho universal como o SUS. No caso dos Estados Unidos, como já foi abordado, o sistema de saúde é marcado pelo predomínio do setor privado na assistência a saúde da população e existem apenas dois programas públicos que oferecem serviços a segmentos específicos da população. Contudo, levando em consideração o histórico de tentativas de reformas no sistema, o padrão de financiamento se torna um aspecto de comparação importante já que ele é um dos desafios de implementação de políticas públicas. No caso do Brasil, deve ser destacado que a partir de 1988, com a Constituição Federal, houve mudanças na estrutura de financiamento da área social através da 13 Kaiser Family Foundation.

definição do acréscimo e diversificação dos recursos vinculados diretamente com as áreas sociais, estabelecendo assim melhores condições materiais para a efetivação e preservação dos direitos derivados da idéia de seguridade social (Salvador, 2008). Portanto, o padrão de financiamento do sistema de saúde público do Brasil foi definido em 1988, desde então a fonte de recursos é constituída por diversas contribuições.sobre a Constituição Federal de 1988, deve ser amplamente destacado a vinculação de recursos que foi a medida encontrada para impedir que os recursos destinados aos serviços sociais fossem usados como variável de ajuste fiscal. Portanto, o sistema de saúde brasileiro é financiado através de recursos fiscais, predominantemente na forma de contribuições. Como discutido no item 2.1., na década de 1990, o Plano Real, que tinha o objetivo de estabilização monetária e era fortemente calcado no ideário liberal, adotou uma medida para desvinculação de parte dos recursos destinados à seguridade social. No caso dos Estados Unidos, os programas públicos mais importantes, Medicare e Medicaid, têm padrões de financiamento bastante peculiares. O financiamento do Medicare é feito por uma combinação de taxas, as quais estão vinculadas com o que o programa oferece. Já o Medicaid, por seu caráter assistencial, é restrito a população de baixa renda com atestado e é administrado pelos governos estaduais, os quais têm certa autonomia para decidir o grau de acesso e a forma de financiamento do sistema. Mas de forma geral, o financiamento se dá por recursos fiscais da esfera estadual e transferências da esfera federal proporcional ao nível de pobreza (Noronha e Ugá, 1995). Teoricamente, a estrutura padrão de financiamento de sistemas de saúde públicos e universais (como por exemplo, o brasileiro e o inglês) deveria apresentar uma porcentagem de gasto público maior do que a privada. Já em países onde o Estado tem papel complementar ou mínimo, a porcentagem com gasto privado é significantemente maior do que a porcentagem de gasto público. O Brasil, por garantir um sistema de saúde universal, deveria apresentar uma porcentagem maior de gastos público em comparação aos gastos privados. Enquanto que os Estados Unidos deveriam seguir a lógica inversa, em que os gastos privados fossem maiores que os públicos.

Na Constituição Federal de 1988 ficou definido que o setor privado seria apenas complementar ao setor público, portanto a responsabilidade de acesso ao sistema é do Estado, assim o gasto privado deveria ser reduzido. Com 52,1 % do gasto total, o setor privado certamente não apresenta uma posição apenas complementar e isso indica a insuficiência do setor público com seus compromissos definidos em 1988. Seja por problemas como a enorme demanda, a gestão ineficiente ou os recursos escassos, o que se observa é que o SUS, constituído em 1988, ainda não consegue oferecer aos cidadãos brasileiros o que foi proposto: a universalização do acesso. No caso brasileiro, há ainda que ressaltar que o gasto total com saúde como porcentagem do PIB é pequeno em relação aos demais países com o mesmo perfil de sistema de saúde. Em segundo lugar, tem-se a situação dos Estados Unidos, que dois pontos são relevantes. O primeiro ponto é o fato de o gasto público ser tão alto quanto o público, como apontado na Tabela 7, como o Estado tem papel apenas complementar no sistema de saúde norte americano o gasto público deveria ser reduzido. O segundo ponto esta relacionado com o grau de cobertura, já que a Tabela 8 mostra que os Estados Unidos é o país com maior gasto total com saúde em porcentagem do PIB, porém 15,4% 14 dos norte americanos não tem nenhum tipo de acesso ao sistema de saúde. Ao contrário do padrão de financiamento, que mostra os principais desafios enfrentados para a implementação dos sistemas de saúde, tal como para o bom funcionamento dos mesmos, o grau de cobertura e acesso aos sistemas mostram os pontos fortes e fracos do sistema, possibilitando assim uma classificação qualitativa. No caso do Brasil, a discussão sobre o grau de cobertura está relacionada com a quantidade de pessoas que estão cobertas por seguro de saúde privado, em suas variadas modalidades, já que, como visto anteriormente, desde 1988 com a nova Constituição Federal, o governo brasileiro adota política universal a saúde. Segundo o PNAD, em 2008, 25,9% da população brasileira era coberta por pelo menos um plano de saúde. Deste total, 77,5% dispunha de planos de empresas privadas 14 Ver mais no gráfico 2, página seguinte.

e 22,5% estavam vinculadas a planos de assistência ao servidor público, como mostra o Gráfico 1. De acordo com a pesquisa da PNAD (2008), da população que dispunha de planos de empresas privadas, estes apresentam três formas de acesso, diretamente ao plano de saúde, através do trabalho (como forma de salário indireto) e outros. Apesar das fragilidades do SUS, ele dava acesso a 74,1 % da população brasileira no ano de 2008. Cabe enfatizar aqui que, apesar de ser um sistema com sérios problemas de financiamento e fraquezas no que diz respeito à articulação política, o sistema público de saúde brasileiro atende a toda população, por isso não há uma parcela da população sem cobertura 15. No caso dos Estados Unidos, o grau de cobertura é um assunto que merece certo destaque, já que este país, em comparação com outros países, apresenta o maior gasto total per capital com saúde em dólar 16 e, portanto deveria apresentar alto grau de cobertura do sistema. Primeiramente, cabe ressaltar que o sistema de saúde dos Estados Unidos é caracterizado pelo predomínio do setor privado e da presença cada vez mais forte de organizações gerenciadoras a partir dos anos 1990. Além disso, o Estado oferece dois programas de assistência a grupos específicos da população, idosos e população de baixa renda. Apesar disso, 15,4% da população norte-americana não é coberta por algum tipo de serviço, as razão para isso é que este grupo não tem renda suficiente para pagar um plano oferecido pelas empresas privada e ao mesmo tempo não se inclui no padrão de elegibilidade dos programas públicos (Medicare e Medicaid). O artigo de Costa et al (2005) confirma tal discussão, já que de acordo com este estudo no período de 1965, quando os programas públicos foram criados, até 2005, houve um significativo crescimento sendo capazes de oferecer cobertura para a maioria dos idosos e da população de baixa renda. Porém, tanto o Medicare quanto o Medicaid apresentam deficiências importantes em relação à cobertura e elegibilidade, além disso, eles se mostram potencialmente insustentáveis financeiramente no futuro. 15 Tal característica será critério de comparação entre os sistemas de saúde do Brasil com os Estados Unidos. 16 De acordo com The World Health Report 2006

Uma característica que deve ser destacada é que dos 57% da população que coberta pelo sistema privado, uma parcela significativa tem acesso aos serviços por causa de benefícios concedidos pelas empresas aos funcionários como forma de salário indireto, prática que teve desenvolvimento nos anos 1990. Esta característica do sistema mostra uma fragilidade quanto ao grau de cobertura, isto é, mais da metade de toda população (52,3%) tem a cobertura do plano de saúde vinculado ao emprego, de tal forma a criar um grau de dependência do funcionário ao emprego. Além disso, isso mostra que grande parte do sistema privado de assistência a saúde está dependente do crescimento da economia e do nível de emprego. Outra característica relevante é que há um número elevado da população (15,4%) que não está assegurada por nenhum tipo de assistência a saúde. Levando em consideração o fato de os Estados Unidos serem uma das economias mais avançadas do mundo e de que seu gasto per capita em saúde é o maior do mundo, isso leva a uma discussão sobre a qualidade da alocação de recursos neste sistema. O conceito de proteção social se baseia na necessidade de diminuição dos riscos existentes nas sociedades e de satisfação das formas de dependência inerentes à condição humana. Levando em consideração este conceito é possível comparar os sistemas de saúde dos países, analisando, assim, como as sociedades se organizaram criando formas de se proteger. O sistema de saúde brasileiro apresenta políticas de cunho universais garantidas pelo Estado apesar da crescente atuação do setor privado. Já os Estados Unidos apresentam políticas focalizadas e específicas garantidas pelo Estado e o setor privado desempenha papel fundamental fornecendo serviços à saúde para quase 60% dos norte americanos. A análise através do conceito de proteção social revela que os sistemas de saúde dos países apresentam uma diferença no que diz respeito à responsabilidade das ações. No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 definiu que o acesso à saúde era direito do cidadão e dever do Estado, já no caso norte americano o acesso à saúde é encarado com um problema de natureza individual, já que, nesta concepção, todos são capazes de competir no mercado e pagar por serviços de assistência à saúde.

As modalidades de intervenção estatal definem o perfil das políticas públicas adotadas por um Estado, bem como a configuração do Estado de proteção social e sua abrangência, elas podem ser dividas em três tipos: assistência social, seguro social e seguridade social, sendo que as ações dos Estados podem ser uma combinação de mais de uma destas modalidades. O sistema de saúde norte americano, por exemplo, é caracterizado por assistência social quando se trata do programa Medicaid e por seguro social no que diz respeito ao Medicare. Mas o que deve ser destacado no que tange às modalidades de intervenção do Estado no caso dos Estados Unidos é que os programas públicos oferecem cobertura a segmentos específicos da população de acordo com certas necessidades tópicas. Está é, com certeza, a grande diferença entre os dois sistemas de saúde estudados, pois a partir de 1988, com a Constituição Federal, o Estado brasileiro deixa de atender a grupos específicos e define sua responsabilidade o acesso à saúde como um direito de todos os cidadãos. Tendo em mente a discussão de focalização e universalização, cabe destacar aqui que a Constituição Federal de 1988 garante políticas sociais universais para o Brasil enquanto que nos Estados Unidos as políticas são focalizadas para certos grupos da população. Porém, durante os anos 90, o Brasil passou por uma pressão neoliberal que impôs políticas focalizadas argumentando que as mesmas são mais eficientes, baratas e flexíveis, o que parecia muito conveniente com as políticas econômicas da época. A garantia da universalização das políticas públicas em 1988 foi considerada uma vitória para os brasileiros, já que engloba, assim, o conceito de cidadania e igualdade entre toda a população. As semelhanças com o sistema norte americano adquiridas nos anos 1990 podem ser consideradas um retrocesso do ponto de vista da garantia de direito a todos os brasileiros. O cidadão é o indivíduo que tem certos direitos e deveres definidos pelo Estado, este deve se preocupar com equidade no acesso aos serviços oferecidos, justiça social e solidariedade. Dessa forma, qualquer que seja a faixa etária, cor / raça, credo, classe social, o cidadão tem direito a ter acesso a saúde, educação, assistência social e previdência social. O Brasil considera todos os brasileiros cidadãos, garantindo assim o direito ao acesso aos serviços da seguridade social, incluindo o acesso aos serviços de saúde a