IMAGENS PSICANALÍTICAS EM A PEDRA DA BRUXA DE LYA LUFT



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Transcrição:

1 IMAGENS PSICANALÍTICAS EM A PEDRA DA BRUXA DE LYA LUFT Leiri Dayana Barbosa Silva Lisboa (FJAV) 1 Maria da Piedade Silva Santana (FJAV) 2 O presente trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise das personagens do Conto A Pedra da Bruxa, inserto na obra O Silêncio dos Amantes de Lya Luft. Personagens que conduzem a uma reflexão sobre a condição do ser humano e da sua consciência que aflora como atributo humano paradoxal. Em meio aos conceitos e análise das imagens míticas existentes na história, ressalta-se aqui o mito do ponto de vista psicanalítico ao revelar pontos em comum dos seres humanos que contribuíram para o desenvolvimento individual e colectivo, permitindo uma visão consciente da vida instintiva, gerando, muitas vezes, padrões de comportamento que garantem a evolução psicossocial. Desta forma, tenta-se explanar além da óbvia denúncia da miséria humana, uma possibilidade de reconhecer as causas e os arquétipos de ordem psíquica, responsáveis em primeira instância por essa miséria, com base na fundamentação de C.G. Jung. Em vista dessa explanação, tem-se o intuito de acrescentar sentidos novos ao texto literário a partir das noções psicanalíticas, porque se sabe que o ato imaginário da criação artística está atrelado a 1 Leiri Dayana Barbosa Silva Lisboa graduada em Letras Português/Inglês, Pós-graduanda em Estudos Literários e Lingüísticos aplicados ao ensino da Língua Portuguesa pela Faculdade José Augusto Vieira FJAV. Professora de Língua Portuguesa (ensino médio), em colégios da rede particular de ensino, de Lagarto-SE. 2 Maria da Piedade Silva Santana graduada em Letras Português/Inglês, Pós-graduanda em Estudos Literários e Lingüísticos aplicados ao ensino da Língua Portuguesa pela Faculdade José Augusto Vieira FJAV. Professora de Língua Inglesa nas escolas da mesma instituição.

2 uma realidade primordial preexistente nas camadas profundas da psique. Não se olvidando de que há uma essência mítica na gênese do texto literário que alimenta a imaginação poética e que fornece imagens simbólicas, anteriores até mesmo ao mundo dos símbolos, uma vez que na história da humanidade os mitos sempre estiveram presentes e foram preservados e transmitidos de geração a geração. Os mitos podem ser vistos como explicação sobre as origens do homem e do mundo, traduzem por símbolos o modo como um povo ou civilização entende e interpreta a existência. E na obra de Lya Luft nota-se uma produção de imagens em sua dinâmica o imaginário uma associação esquemática do mito e motivações psicológicas, o que oportuniza observar o mito e a condição humana na contemporaneidade. Sua literatura irrompe do inconsciente coletivo e pessoal e se instaura como força demiúrgica da criação, conforme ela mesma declara: escuto o meu interior, onde personagens e narrativas aguardam que eu lhes sopre verossimilhança ou lhes confira realidade. Não falo de literatura apenas, mas da consciência que procura motivo e significado (LUFT, 2000, p.14). Ao mergulhar a alma humana, resultam imagens arquetípicas (arquétipos, mitos e símbolos), fonte da tradição literária onde bebe todo escritor, mesmo que de formas diferentes, com consciência crítica ou em busca de verdades existenciais. A literatura é por excelência uma criação da alma - não se pode negar - sua essência consiste em elevar-se muito acima do aspecto pessoal, ela fala ao espírito e ao coração da humanidade. E ao analisar as personagens do conto, são evidenciadas raízes psíquicas comuns a todos os homens que se adequam às teorias do psicanalítico suíço Jung, referência primordial neste artigo.

3 Em análises feitas em seus pacientes, Jung percebeu que além das memórias pessoais, sempre estiveram presentes no inconsciente de cada homem outros tipos de fantasias, existiam as constituintes das possibilidades herdadas da imaginação humana. Estruturas, consideradas por ele inatas e capazes de formar ideias mitológicas, estas denominadas de arquétipos - formas preexistentes, tipos arcaicos, primordiais portanto, imagens eternas e idênticas em todos os seres humanos, padrões de comportamento, existentes desde os tempos mais remotos e presentes em todo tempo e lugar em todo homem. Desse modo, pode-se afirmar que o homem é guiado, queira ou não, por arquétipos, pois todos possuem uma predisposição arquetípica para desempenhar papéis (mãe, pai, filho, irmão, amigo professor, etc.) e, impulsionado por eles, faz escolhas, cria, enfrenta heroicamente ou covardemente as mais diversas situações que passa pela vida. Os arquétipos, sob a ótica empírica, mais caracterizados são aqueles que frequentemente afetam o ego; grande Mãe, Pai, Persona, Sombra, Anima, Animus, Herói e Self (ou si mesmo). Frise-se que todos eles são estruturas bipolares, que apresentam aspectos negativos, positivos e às vezes destruidores. E dentre estes arquétipos salienta-se, a propósito, o arquétipo materno o mais evidenciado no conto em análise. Observa-se em A Pedra da Bruxa uma família bem tradicional e organizada que supostamente demonstra um ambiente, a princípio, propício à saúde psíquica e afetiva com todos os seus componentes. Pai e mãe formam um casal unido, o filho mais velho totalmente equilibrado, que e caminha a passos decididos para a realização social e pessoal. Porém, o filho mais novo não era um bebê tranqüilo (sic). Não parecia contente no meu colo, só dormia quando eu o deixava sozinho no berço. Era uma criança quase sombria, comparando ao irmão mais velho, um menino forte

4 e alegre. (LUFT, 2008, p 13 e 14). Percebendo a diferença de seu filho caçula, a mãe, narradora em primeira pessoa da história, passa a se dedicar com maior atenção àquele filho como deixa bem claro o seguinte trecho da narração: Na escola não fazia amigos, batia nos outros e os mordia, ou era objeto de pancada. O pai não tinha a menor paciência, e se dedicava ao outro. Do mais novo eu imaginava ser a melhor amiga. (LUFT, 2008, p 13 e 14). A narrativa relata o todo o crescimento desta criança que se revela de difícil convívio social e que experimenta o aborrecimento do pai e a superproteção da mãe. Os comportamentos distintos e específicos de pai e mãe talvez venham a ser por si sós causas suficientes para o desequilíbrio psíquico, levando o garoto cedo à tragédia. Porém, veremos a partir de Jung, que há também no comportamento desajustado do garoto um viés inconsciente hereditário, não herdado de sua família, mas que vagueia ao longo dos tempos e em todos os lugares coletivamente na natureza humana. O menino cresceu até a adolescência e tinha como maior prazer as viagens da família a uma casa que possuía nas montanhas. Na montanha, ele adorava ficar longo tempo sentado em um platô que ficava à beira de um precipício, no fundo do qual passava um rio de águas profundas. O platô era conhecido nas vizinhanças como A Pedra da Bruxa e foi justamente lá o local onde foi visto pela última vez, de onde provavelmente se lançou no precipício e seu corpo sumiu para sempre nas águas profundas do rio. É interessante frisar que antes de partir para o suposto suicídio, o adolescente primeiro tentou falar com o pai para desabafar, mas o pai alegou ter compromissos inadiáveis, protelando a conversa para outra ocasião. Da mesma maneira, o adolescente também tentou conversar com seu irmão mais velho, mas este, de igual modo, arrumou uma desculpa e não o ouviu. Estranhamente o garoto não procurou a mãe,

5 justamente aquela que tinha para com ele toda preocupação e atenção. E é justamente no platô onde havia a imagem de uma Bruxa, diante de um abismo e das profundezas da água, que o garoto cometeu o suposto suicídio, e sobre isto Jung assevera que só quando todas as muletas e arrimos são quebrados e não for evidenciada nenhuma outra proteção, é oferecido ao ser humano vivenciar um arquétipo ocultado diante da falta da anima. É o arquétipo do significado e do sentido, tal como a anima é o arquétipo da vida. (Jung, 2007, p. 42). Assim, é possível afirmar que o filho mais moço desta família sofria do Complexo Materno, cuja origem se situa em imagens primordiais. Porquanto, o arquétipo da Grande Mãe é uma espécie de banco de dados de incontáveis experiências de concepção, gestação, parto e cuidados maternais registrados no inconsciente. Tudo é parte do amplo conjunto de memórias do processo evolutivo humano e como os demais arquétipos este possui aspectos positivos e negativos, como a mãe ameaçadora, dominadora ou sufocadora. Na Idade Média, por exemplo, este aspecto do arquétipo materno estava cristalizado na imagem da velha bruxa. No conto em tela, vê-se uma mãe superprotetora, com cuidados e mimos excessivos, que pode ter despertado o arquétipo materno que jazia nas profundezas do inconsciente de um garoto. Na narrativa, observa-se que o adolescente sofria das perturbações emanadas deste arquétipo desde criança, fato relatado pela mãe e enunciado nos queixumes do menino. Ao se posicionar no alto do platô denominado de A Pedra Bruxa, o garoto se imaginava saltando e alçando vôo para a liberdade. Aqui nesta alusão a uma Bruxa, tem-se outra vez uma correspondência com os arquétipos maternos em Jung: Quando os filhos de uma mãe superprotetora sonham com freqüência (sic) que ela é um animal feroz ou uma bruxa, tal vivência produz uma cisão na alma infantil e conseqüentemente a possibilidade da neurose. (JUNG, 2007, p 95, grifos

6 nossos). Então, é provável que o garoto tivesse essa ideia fixa de se atirar do alto da Pedra da Bruxa para alcançar a liberdade, ou seja, fugir para sempre daquela mãe que em seus devaneios se apresentava como uma bruxa perturbadora. Ainda sobre o complexo materno, encontra-se em Jung a referência clara ao desejo de morte por parte do filho afetado pelas imagens arquetípicas dessa natureza: Os efeitos do complexo materno sobre o filho são representados pela ideologia tipo Cibele-Átis: autocastração, loucura e morte prematura. (JUNG, 2007, p. 95). Mas, as possibilidades de ocorrência de uma psique perturbada pelo afloramento de arquétipos do inconsciente na personagem fatídica deste conto não se encerram por aí. Vale enfocar a narração de Jung a respeito de um de seus muitos casos clínicos que revelavam a natureza arquetípica de certas perturbações: Outro teólogo sonhou que avistava uma espécie de Castelo do Graal sobre uma montanha. Ele caminhava por uma estrada que parecia conduzir diretamente ao pé da montanha e à subida. Ao aproximar-se da montanha, porém, descobriu, para seu grande desaponto, que um abismo o separava da montanha, uma garganta profunda e escura onde corria, rumorejando, uma água do submundo. (JUNG, 2007, p 29) Ademais, em A Pedra da Bruxa, o adolescente que se deixa ficar por longo tempo à beira de um precipício em cuja base corre um rio, provavelmente se enquadra na mesma situação indicada por Jung em relação ao teólogo citado, que desejava chegar ao Castelo do Graal no alto da montanha. Aqui também ele almeja alcançar alturas luminosas, mas depara primeiro com a necessidade de mergulhar numa profundeza escura. (JUNG, 2007, p.29). A personagem do conto ora dissecado parece que de fato mergulha nessa profundeza escura, com a esperança de depois alcançar as alturas luminosas, por sofrer o complexo materno, em busca da libertação daquela mãe que lhe parecia opressora, conforme se pode aduzir a partir, outrossim, do seguinte trecho:

7 Subiu até o lugar que chamavam a Pedra da Bruxa: uma saliência de rocha, pequeno platô, bem no alto, [...] Era o lugar preferido dele. Eu me preocupava, achava perigoso ficar tão na beiradinha, mas ele ria: Mãe, não se preocupa, se eu cair de lá abro as asas e saio voando! dizia aludindo ao seu desejo de criança, de ser pássaro. Meu menino não voltou. Alguém o viu na beira da pedra e o chamou, mas ele pareceu não escutar. Nunca voltou. Nunca mais apareceu. Ninguém nunca mais soube dele. (LUFT, 2008, p 17). Outra ocorrência ecoada é a correspondência com a teoria do inconsciente coletivo formado por imagens arquetípicas interiores, que pode ser visualizada no fato de o garoto ficar longo tempo no alto do precipício olhando lá para o fundo, olhando lá para o rio que corria na base do platô, provavelmente buscando seu próprio reflexo no espelho d água, num espelho que não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque encobrimos com a persona, a máscara do ator. (JUNG, 2007, p 30). A este respeito, ou seja, acerca dessa necessidade psíquica que pessoas perturbadas por imagens arquetípicas têm de se auto-conhecer, como uma forma de se auto-encontrar e, por conseguinte, alcançar a paz interior e a paz com o mundo exterior, tem-se na obra de Jung um parágrafo bastante esclarecedor: O encontro consigo mesmo significa, antes de mais nada, o encontro com a própria sombra. A sombra é, no entanto, um desfiladeiro, um portal estreito cuja dolorosa exigüidade não poupa quem quer que desça ao poço profundo. Mas, para sabermos que somos, temos de conhecer-nos a nós mesmos, porque o que se segue à morte é de uma amplitude ilimitada, cheia de incertezas inauditas. (JUNG, 2007, p 31 e 32, grifo nosso). Outro fator visível é a rejeição paterna. Esta pode ser aclarada nesta passagem: - É nosso filho mais é esquisito. Nenhum outro rapaz é assim. Ele parece sempre à margem de tudo. Eu desisto. (LUFT, 2008, p.16). A comparação, com seu irmão mais velho, acentuava sobremaneira o seu jeito anormal. O comportamento do garoto era inaceitável para o pai que tinha as expectativas para

8 com o outro filho correspondidas, ele era, ao contrário, a frustração do estereótipo masculino creditado pelo pai. A busca pela perfeição é um anseio antigo que incita o confronto de dois lados, sobrepondo um deles ao outro. O jovem rapaz do conto é claramente abandonado pelo pai que desiste de compreendê-lo com suas diferenças, expressando claramente sua insatisfação. Saliente-se, por oportuno, que o abandono é uma imagem mítica, constatada em ações de épocas remotas que se agruparam no imaginário coletivo, tornando-se modelos a serem imitados através dos tempos. Na Grécia, era comum a eliminação de pessoas com deficiência, geralmente crianças, elas eram abandonadas ou atiradas do aprisco de uma cadeia de montanhas chamada Taygetos. Em Esparta, os deficientes também eram eliminados, já que os costumes espartanos eram voltados para a arte da guerra, só os perfeitos poderiam servir ao exército de Leônidas. De igual modo, Hefesto, da Ilíada de Homero, foi rejeitado pela mãe Hera e expulso do Olímpio por Zeus por ter as pernas atrofiadas. A história do hebreu Moisés, da Bíblia, é, outrossim, outra fonte de história de abandono dentro das proporções. A própria Roma antiga permitia aos pais matarem as crianças nascidas com problemas físicos ou desprezá-las em cestos no rio Tibre ou em outros locais sagrados. A propósito, a esses exemplos de abandono supramencionados soma-se o caso do célebre mito Édipo, servível também para a presente análise. Como Apolo havia predito a Laio, pai de Édipo, que se tivesse um filho este o mataria, ao nascer, Édipo, herdeiro da maldição que assolava os Labdácias, foi abandonado no monte Citerão. Édipo foi rejeitado pelo pai por ser uma ameaça que infringiria além de tudo o desejo de seus genitores, que pais aceitam de seus filhos um ato de reprovação? O filho gerado por Laio e Jocastra iria firmar o

9 infortúnio da família. No entanto, a rejeição não evita a tragédia, ao invés disso, viabiliza-a: Édipo mata Laio a caminho de Tebas, decifra o enigma da esfinge e casa-se com a rainha, esposa de Laio, sua própria mãe. O abandono também foi um fator decisivo no tolhimento da estrutura psicológica do garoto deste conto. Esta desestruturação provocada pelo desequilíbrio das emoções a ele dirigidas o excesso de amor materno e a privação da atenção paterna cria o conflito interior que o faz solitário e torna-o prisioneiro de suas carências. Todo esse contexto desperta-o para o desejo de voar, o encontro do equilíbrio propriamente dito, que possibilita o ser descobrir a liberdade. Outra personagem notável no conto se espelha no excerto abaixo: Tempo depois apareceu um velho que morava em uma cabana no fundo do mato. Muitos o consideravam demenciado. Dizia que naquela época em que meu filho desaparecera, vira um rapaz sair voando do alto daquele morro, bem ali, na chamada Pedra da Bruxa. Ninguém voa, disseram, mas ele insistiu. (LUFTY, 2008, p. 20) O velho afirma com ímpeto ter visto o rapaz voar e descreve os instantes antecedentes ao acontecimento até o momento do voo, esclarece, portanto, um fato enigmático causador da incerteza sobre o que realmente poderia ter ocorrido. A informação veio como a revelação de um mistério, e esta prática não é inédita, diferente disso, ela é a repetição de um mito que vem à tona a partir do imaginário coletivo. O mito da revelação mais evidente é o oráculo, caracterizado pela comunicação entre deuses e homens, quando estes têm a necessidade de obter uma resposta geralmente a respeito de uma questão futura. Era de costume o culto oracular ser feito em um lugar específico, através do cumprimento de um rito no qual um intermediário humano, porém sagrado, transmitia a resposta dos deuses. Todavia, é preferível

10 para esta análise, que não traz uma revelação sobre o futuro, associar o ato do ancião do conto de Lya Luft à outra considerável personagem mitológica: o vidente, que na Grécia Antiga, detinha o domínio da mancia e era normalmente alguém que respeitava e praticava ritos sagrados, por isso era considerado um mortal inspirado dotado de uma capacidade divina: a adivinhação. Um dos videntes mais famosos da mitologia é Tirésias, um cego que foi levado à Tebas para revelar o segredo do assassinato de Laio, que acaba por trazer a lume a verdadeira história de Édipo. Tirésias foi consultado após o oráculo ter predito que a solução para epidemia, que assolava a região, seria a punição do assassino de Laio. Percebe-se então que o papel do vidente era desvendar um mistério, não necessariamente para uma situação futura, mas que causava consequências no presente. Assim, o velho do conto faz a revelação sobre o que havia acontecido com o garoto uma questão que fugia do conhecimento das pessoas, e só ele tinha a resposta. A demência, a ele atribuída pelas pessoas da região, pode ser, inclusive, associada a outras declarações tidas como absurdas por não terem sido comprovadas, que de certa forma aliviava a dor daquela mãe desesperada, ávida do desejo de reencontrar seu filho amado. Diante da análise deste conto, pode-se vislumbrar que a Literatura conduz o leitor do mundo da leitura à descoberta do mundo, à descoberta de um mundo interior, o que possibilita realçar a visão de Marisa Lajolo quando afirma que: a reflexão teórica, a abordagem histórica e a análise textual constituem trajetos seguros e paisagens sedutoras na tão necessária travessia do mundo da leitura à leitura do mundo. (LAJOLO, 1994, p. 8). Na análise psicanalítica da obra, não é feita certamente uma abordagem histórica, nem mesmo propriamente uma análise textual, mas

11 é realizada uma reflexão teórica, e esta por si só já se revela suficiente para promover um trajeto seguro e uma paisagem sedutora para que homens de literatura façam a travessia do mundo da leitura à leitura do mundo, visto que a Literatura é por excelência a maior criação da alma e sua essência consiste em elevar-se muito acima do aspecto pessoal, ela fala ao espírito e ao coração da humanidade e ao mergulhar a alma humana, nascem imagens arquetípicas (arquétipos, mitos e símbolos), fonte da tradição literária onde bebe todo escritor, tão evidenciada na obra de Lya Luft, o que permite se filiar às palavras de Joseph Campbell ao sustentar que os mitos são como metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida animam a vida do mundo. (1990, p. 24). Destarte, depreende-se que os mitos sobrevivem no inconsciente coletivo da humanidade e reaparecem na criação artística, quando sofrem as metamorfoses necessárias à expressão dos conflitos do homem em cada momento de sua vida, proporcionando-o a harmonia com o universo sem perder de vista o importante papel da contribuição mítica.

12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo, Palas Athena, 1990. JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 5. ed. (Tradução Maria Luiza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva}. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 5. ed. São Paulo: Ática, 2000. LUFT, Lya. Histórias do tempo. São Paulo: Mandarim, 2000.. O silêncio dos Amantes. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.