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Transcrição:

389 DESENRAIZAMENTO E IDENTIDADE. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A EMIGRAÇÃO BRASILEIRA PARA O CANADÁ. ALBERTO CARNEIRO BARBOSA DE SOUZA Doutorando em Saúde da Mulher e da Crianca-FRIOCRUZ, com estágio de 2 anos na University of Windsor, canadá, pesquisador convidado do projeto Contame! da University of Windsor /Ontario Health Treatment Network, Pesquisador convidado da investigacao The Health of Undocumented Brazilian Immigrants in Toronto, da University of Toronto, Pesquisador Associado do LIPIS. email: psipuc@gmail.com JUNIA DE VILHENA Psicanalista. Dra em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. www.juniadevilhena.com.br E-mail: vilhena@puc-rio.br Resumo: Este artigo tem como objetivo iniciar uma discussão a respeito da imigração sul-norte a partir do exemplo do recente fluxo de brasileiros para o Canadá, mais especificamente, para Toronto. Um país formado por imigrantes e ainda sem uma identidade consolidada, o Canadá acolhe, na única cidade do planeta onde a maioria dos moradores são estrangeiros e não dominam fluentemente a língua nacional, a maior comunidade brasileira do mundo, fora de países de língua portuguesa, em números proporcionais `a população. Quem são esses brasileiros e porque escolheram o Canadá? Essas perguntam começam a ser respondidas neste artigo. Palavras-chave: desenraizamento, identidade, emigração UPROOTING AND IDENTITY.REFLEXIONS ON BRAZILIAN MIGRATION TO CANADA. Abstract: This article aims to bring up the topic concerning the so-called south/north immigration focused on the recent Brazilian flow to Canada, more precisely to Toronto. Canada is a quilt of many immigrants that does not yet hold a solid identity. Moreover, it hosts in that city the only ethos on earth where most its inhabitants are not natives and not even master the local language. in that city lies also the largest Brazilian community -proportionally to the population outside a Portuguese-speaking country. Who are these Brazilians and why they chose Canada? These questions begin to have their answers in this article. Keywords: uprooting, identity, emigration

390 O comportamento e a diversidade humanas, produtos da cultura, podem ser traduzidos como um sistema de valores, de representações e de comportamentos que permitem a cada grupo identificar-se, orientar-se e agir no espaço social e no ambiente (Cuche,1999,p.80). De uma forma mais viceral, Geertz (1989), considera que o processo do tornar-se humano só é possível através da cultura e para Ouellet (1991) a cultura é transmissível e modificável. Já para Laraia, o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural (Laraia, 1986,p.70). Por fim, para Clanet o que constitui a cultura no seu aspecto dinâmico são as atualizações das relações entre os indivíduos e os conjuntos de significados da comunidade ambiente (Clanet,1990,p.16). A cultura, embora possa ter características espaço-temporais bem definidas, extrapola estes marcadores. Segundo Clifford (1997), o viajante traz consigo sua cultura e suas práticas sociais que por sua vez acabam por produzir conhecimento, tradições e comportamentos próprios, moldando o que o autor chama de cultura diáspora, ou seja, através da observação do outro ele passa a compreender suas próprias diferenças. O estrangeiro que chega reinventa sua própria identidade tanto através do outro como em si mesmo, construindo uma nova subjetividade com as lentes de uma cultura que deixou para trás. Novo ator em novo cenário, o recém-chegado recria corajosamente fronteiras antes tão bem marcadas. Em um novo ethos, o que antes era naturalizado se desnaturaliza : pertencimento e inadequação, público e privado, certo e errado, próximo e distante: tudo passa a ser relativo. O não-pertencer parece ser o elo mais forte (algumas vezes único) que o une com outros estrangeiros que trazem consigo a mesma falta latente da língua, da cultura e do olhar : descobrem assim que tornar-se estrangeiro pode ser algo tão poderoso a ponto de construir laços de pertença entre os iguais, que antes pareciam infinitamente diferentes: os outros agora somos nós. Portanto, ser diferente é o que acaba por os tornarem

391 familiar. E partindo deste familiar surge uma constante busca por um pertencimento individual dentro de uma nova sociedade. A idéia de um retorno que a cada dia parece mais improvável reforça a necessidade da ilusão de pertencimento de um sujeito que jamais poderá pertencer. Por mais que domine a língua, conheça a nova cultura e compreenda novos olhares, o real acolhimento jamais virá. Neste sentido, Derrida elucida com muita propriedade a importância da diferença. Em seu conceito de différance (palavra francesa que a grafia gramaticalmente correta seria différence), o a deve significar diferencialidade anterior à toda diferença determinada ( Derrida, 2003). Ou seja, o estrangeiro é mais estranho que o estranho no que diz respeito `a cultura na qual ele penetra. O forasteiro traz consigo a différance, algo intraduzível, incompreensível. Por isso, o habitante local tentará a todo custo transformar este estranho em algo contido na différence, em um processo cruel onde trará à luz tudo que essa diferença específica possa incomodar,. Assim, toda filiação com a história daquele sujeito estranho deve ser reescrita, se não transpassada pela cultura local ( para que possa conter a différence). Desta forma, questiona-se o próprio signo trazido por esse outro diferente. Ora, questionar o signo é questionar todos os seus pressupostos e descontruir (para usar um termo derridiano) o que resta neste sujeito que tenha sido genealogicamente determinado por essa história (Duque-Estrada,2002). Em suma, se o estrangeiro deseja pertencer, ou ter a ilusão de pertença, ele deve abdicar de suas marcas originais. Bourdieu, ao discorrer sobre a imigração, ressalta que o imigrante situase nesse lugar `bastardo` (...) na fronteira entre o ser e o não-ser social. Deslocado, no sentido de incongruente e de importuno, ele suscita embaraço.(bourdieu, 2001). Este embaraço ao qual Bourdieu se refere é fruto de uma busca por raízes onde jamais foram plantadas sementes. E isto não se deve `a boa ou má qualidade do solo, mas sobretudo `a impossibilidade de cultivo, dada a différance cultural brilhantemente descrita por Derrida. Neste sentido, Simone Weil (1996) nos lembra com propriedade que o enraizamento é uma necessidade básica de todos nós, uma vez que plantar e manter suas

392 raízes através da participação ativa na coletividade nos faz vivos, fazendo com que esta mesma coletividade seja o espelho de quem somos. O forasteiro não só não encontra tal espelho em terras estranhas, como também os que lá nasceram estranham este estranho, como vimos anteriormente, fazendo com que o alienígena não produza ali, nada muito além de embaraço. Consequentemente, o imigrante se verá diante da necessidade de desconstruir suas raízes, a fim de minimamente poder se ver refletido neste novo espelho. Porém isso só será possível se tiverem sido construídas bases sólidas em sua cultura, pois aquele que é capaz de se apoiar no passado consegue vislumbrar o presente com mais clareza. Como conseqüência, será mais fácil fazer uma leitura do presente tendo sempre como referência sua própria história para, a partir dela, reescrever uma nova trajetória, compreendendo que, afinal, a diferença coletiva pode contar a sua diferença individual. Por outro lado, se sua história não tiver sido marcada e inserida em sua própria cultura, pouco haverá a ser modificado e este sujeito terá sua história escrita por aqueles que o receberem, transformando-o naquilo que já haviam concebido antes mesmo de sua chegada. Em suma, quem é desenraizado, desenraíza (Weil, 1996, p. 415). Desta forma, através do estrangeiro nasce um novo sujeito social, atravessado por novas instâncias de socialização, muito além das tradicionais zonas de conforto, tais como a família e a cidade de origem. Agora, tudo se traduz no desconhecido: nova língua, nova cultura, nova subjetividade. Enfim, nasce um novo contrato social. Todavia, há lugares onde o estranhamento do novo parece ser abrandado. O Canadá é um desses lugares. Um país em busca de sua própria identidade e formado por imigrantes, traduz em seu cotidiano multicultural uma dinâmica na qual ser diferente parece ser a norma. O canadense compreendeu que antagonismos e semelhanças coexistem lado a lado dentro de cada um de nós e que a universalidade advém exatamente deste paradoxo. Toronto, por exemplo, a maior cidade do país, possui 46,9% de sua população formada pelo que eles chamam de minorias visíveis (UNDEP,2004). Por si só termo já soa como uma

393 provocação a norma imposta e instituída ao alienígena (alien) na maioria das sociedades ocidentais contemporâneas do chamado primeiro mundo. No Canadá, especialmente em Toronto, parece não se calcular o valor social de cada um tendo como referências este grau de prestígio, a classe e a família. Na verdade, o que se valoriza é a inclusão dos excluídos. A invisibilidade dá lugar a uma visibilidade transparente : Apesar de visível, o estrangeiro não é visto e, perdido na multidão, confunde-se em um falar sem marcas. Toronto, a maior metrópole canadense, é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. Pouco se conhece, em termos acadêmicos a respeito dos brasileiros residentes no Canadá, uma vez que foram produzidos poucos estudos a este respeito. Além disso, as publicações oficiais canadenses quase sempre trazem estatísticas da América Latina como um todo em seus dados migratórios, desconsiderando os países individualmente. A década de 80 foi um marco no inicio da imigração de latino-americanos e grande número para o Canadá, ao ponto de termos o aumento de imigrantes da América Latina de 9% em 1980, para 14% em 1988, representando um crescimento de mais de 63% em 8 anos (Employment and Immigration Canada, 1989). O início da migração brasileira para aquele país se dá de forma significativa a partir dos anos 80, sobretudo até 1987, quando não havia exigência de visto para os brasileiros entrarem no Canadá (Goza,1999). Soma-se a este fator a tradição de tolerância e muticulturalismo do povo canadense, além da grande oferta de empregos, sobretudo na cidade de Toronto, principal centro financeiro do país. Fatores que também contribuíram para o aumento desse fluxo migratório se devem a estereótipos construídos no imaginário popular do imigrante brasileiro de que a entrada no Canadá seria mais fácil do que nos Estados Unidos, além de que haveria uma boa oferta de empregos com remuneração atraente. Além disso, aquele país apresentaria menos discriminação e preconceito do que seu vizinho do sul. Com a implementação da exigência de visto a partir de 1987 (embora ainda com características de tolerância e absorção de mão-de-obra), a partir da década de 1990 surge

394 uma expressiva comunidade brasileira sem documentação em Toronto. Naquela década, os brasileiros já começam a buscar a cidade não mais como porta de entrada para os Estados Unidos ( como faziam ate 1987), mas como seu destino final. Para se ter uma idéia, até 1991, 5.295 brasileiros residiam no Canadá. Em 2006 já contavam-se 15.120 mil brasileiros no país (Statistics Canada, 2007e). Como Toronto é a maior cidade canadense, tem como língua corrente o inglês, se localiza proporcionalmente mais próxima do Brasil e apresenta invernos menos rigorosos em relação a todas as outras grandes cidades canadenses ( exceção feita para Vancouver, mas a distância geográfica e menor oferta de emprego fazem desta cidade menos atraente que Toronto), não é de se espantar que essa onde migratória tivesse esta cidade como destino principal. Como exemplo, de 1986 a 1987,mais de dez mil turistas saíram do Brasil em vôo direto para Toronto com bilhete de volta ( Paoletti,1987).Curiosamente, porem, os vôos de retorno para São Paulo nesse mesmo período não apresentavam a mesma quantidade de passageiros brasileiros. Como conseqüência, a partir de 1987, o controle de imigração canadense passou a ser mais rigoroso, exigindo uma quantidade mínima de dinheiro e submetendo os turistas brasileiros a um interrogatório bem mais severo nos aeroportos. Desta forma, os brasileiros passarem a entrar no Canadá através de pedidos formais de refugiados ao desembarcarem no Canadá, uma vez a legislação daquele país determinava que todo pedido feito nos pontos de entrada do país deveria ser julgado dentro do Canadá e, enquanto esperasse o resultado, o candidato teria permissão de trabalho e acesso ao sistema de saúde gratuito canadense. Assim, como nova forma de conter o fluxo migratório desordenado, o Canadá passa também a ser muito exigente na emissão de vistos de turistas no consulado de São Paulo (Goza, 1992), único no Brasil a emitir vistos desta categoria. Diminui assim o numero turistas brasileiros no Canadá, mas não de novos imigrantes. Conclui-se, então, que se inicia uma leva de imigração ilegal, a exemplo do que já acontecia nos Estados Unidos.

395 Em relação à naturalidade destes imigrantes, Franklin Goza em sua brilhante pesquisa intitulada A Imigração Brasileira na America do Norte (1992), constatou que 64% vinham de Minas Gerais, seguido de Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente. O grau de escolaridade é relativamente alto, com média de anos de estudo sendo de 10 anos, sendo que 38% com ensino médio completo e 25% com superior incompleto. Outro dado interessante é observar que é comum a migração de famílias inteiras, já que 50% dos homens e 34% das mulheres eram casadas, embora 92% declarassem que o marido já estava no Canadá. Em relação a forma de entrada no Canadá, de acordo com a mesma pesquisa, quase todos os imigrantes brasileiros (...) chegaram antes de vigorar a lei de 1987, que estabeleceu a exigência de visto para a sua entrada, provocando assim o desenvolvimento de novas maneiras de se entrar no país (Goza,1992, pag.72). Como conseqüência da exigência de visto de entrada no Canadá,12% declararam que foi extremamente difícil obter seus vistos e entrar legalmente no país. Muitos não tiveram a mesma sorte, sendo forçados a apelar para expedientes tais como viajar com passaporte de outra pessoa, trocar as páginas de seus passaporte com alguém que tivesse visto válido ou, simplesmente,entrar no país sem passaporte. Por exemplo, alguns imigrantes chegaram ao Canadá via Peru, México e E.U.A.. Isto porque tinham um visto válido que lhes permitia voar do Brasil ao México, via Lima. De lá,voaram para Tijuana, também no México. Ali, pagaram um coiote para servir de guia e ajudá-los a entrar nos EUA.Eles então voaram para umas das muitas cidades ao norte dos EUA e dali continuaram sua viagem até o Canadá. Estatisticamente, na província de Ontario, onde se localiza Toronto, antes de 1991 residiam 2.810 brasileiros de forma legal e permanente; de 1991 a 1995, mais 1.570 imigraram; de 1996 a 2000, outros 1.690 imigraram. De 2001 a 2006, houve o acréscimo de 2.795 imigrantes. Em 2006, registrava-se um total de 8.860 brasileiros legais residindo em Ontário (Magalhães, L., Gastaldo, D. Martinelli, G., Hentges, A., Dowbor, T.P.,2008).

396 Ainda segundo esta mesma pesquisa, em 2007, de todos os brasileiros moradores de Ontario até 2007, 72% têm de 25 a 44 anos, sendo 24% na faixa de 30 a 34 anos, 80% brancos ( auto-declarados), 63% mulheres e 37% homens. Do total desta população 91% se auto-declararam heterossexuais e 68% casados, sendo de 57% legalmente casados e 24% solteiros. Em relação ao grau de instrução, 36% têm nível superior, 33% Mestrado ou Doutorado, 16% curso superior incompleto, 13% ensino médio e apenas 2% ensino fundamental. Um dado interessante é não haver expressiva diferença de grau de instrução em relação ao gênero. Para finalizar, 81% jamais moraram em outro país estrangeiro além do Canadá, sendo que 50% do total dos brasileiros está há mais de quatro anos no Canadá, sendo mais de 40% naturalizados canadenses, 35% em situação regular como residentes permanentes, 15% com visto de estudantes e 7% em situação irregular. Ao finalizar este artigo, podemos concluir que esta é apenas uma primeira visada a respeito da comunidade brasileira que hoje mora no Canadá e, mais especificamente, em Toronto. Muito mais há o que se investigar e se descobrir. Mas, como qualquer caminhada, o início sempre se dá pelo primeiro passo. Referências Bibliográficas ABDALLAH-PRETCEILLE, M., Vers une Pedagogie Interculturelle, Paris: Anthropos. 1996. ABOU, S., L identité culturelle. Relations interethniques et problèmes d acculturation, Paris, Anthropos. 1981. BOURDIEU, P, As Estruturas Sociais da Economia, Lisboa, Instituto Piaget. 2001 BOURDIEU, P, Pierre Bourdieu avec Löic Wacquant; réponses,1992, Paris, Seuil. BOURDIEU, P., The Logic of Practice, Cambridge, Polity Press.1990.

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