BOLETIM INFORMATIVO DO CIM-RS Insulina glargina no tratamento do diabete melito Introdução O diabete melito é uma doença crônica que apresenta uma alta prevalência mundial; acomete pacientes de todas as idades e classes sociais. A insulina glargina surgiu como opção para o tratamento dessa enfermidade; trata-se de um fármaco novo, de custo mais elevado, mas com diferenciais devido a sua farmacocinética e farmacodinâmica. Diante disso, muitas dúvidas surgem em relação ao seu uso e tipo de paciente a ser beneficiado. O objetivo desse boletim é reunir informações pertinentes para orientar uma melhor escolha e utilização desta insulina. Contextualização O diabete melito (DM) é um problema comum que atinge 7,6% dos adultos de várias capitais brasileiras 1,2. É uma síndrome causada pela deficiência relativa ou absoluta de insulina 1,2. Manifesta-se fundamentalmente por hiperglicemia 1,2, mas apresenta também anormalidades no metabolismo dos lipídeos e protídeos, e complicações macrovasculares, microvasculares e neuropáticas 1. A classificação atual do DM é baseada na etiologia e não no tipo de tratamento 2. A proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Associação Americana de Diabetes (ADA), recomendada no Brasil, inclui quatro classes clínicas: DM tipo 1 (a- auto-imune; b- idiopática); DM tipo 2; outros tipos específicos de DM; diabetes mellitus gestacional. O diabete tipo 1 (DM1), forma presente em 5-10% dos casos 2, é caracterizado pela deficiência quase absoluta de secreção insulínica 1,2 devido à destruição das células beta pancreáticas, mediada por auto-imunidade a ou por fatores idiopáticos b 2,3. Já o diabete tipo 2 (DM2), forma mais prevalente (90-95%) 2, é caracterizado pelas alterações tanto na secreção insulínica quanto na sensibilidade dos tecidos-alvo 1. Os outros tipos podem ocorrer por defeitos genéticos da função das células beta, defeitos genéticos na ação da insulina, doenças do pâncreas exócrino, além de endocrinopatias, indução devido a
medicamentos ou agentes químicos e infecções 2. No DM1, a instituição da insulina imediatamente após o diagnóstico é obrigatória 1,4. É comum associar mais de um tipo na tentativa de mimetizar a secreção fisiológica de insulina nos estados basal e pósprandial 1. No DM2, a abordagem inicial geralmente é feita apenas com medidas nãofarmacológicas. Não havendo resposta satisfatória, adicionam-se antidiabético oral 1 e, quando necessário, insulina 1,2. Insulina A insulina (figura 1) é um hormônio essencialmente anabolizante, propiciando a utilização periférica de glicose nos tecidos muscular e adiposo, inibindo a glicogenólise e neoglicogênese hepáticas, aumentando as sínteses protéica e lipídica 1. A deficiência de insulina diminui a utilização de glicose pelos tecidos insulino-dependentes e mantém um ritmo aumentado de produção endógena, determinando a elevação dos níveis sanguíneos de glicose 1. Cadeia A Cadeia B Figura 1 Estrutura Química da Insulina Tipos de Insulina A primeira insulina a ser comercializada foi denominada insulina regular ou insulina R, em 1923. Exigia três ou quatro aplicações diárias para o bom controle metabólico, devido a seu efeito clínico de curta duração 3. Em 1926, a insulina foi cristalizada e finalmente reconhecida como hormônio protéico, sendo que as primeiras preparações foram extraídas de animais 3 de origem suína e bovina 4. Após, foi acrescentada à insulina uma proteína básica denominada protamina, desenvolvendo, assim, a insulina NPH 1,3. Simultaneamente, com a adição de zinco à molécula de insulina, foi sintetizada a Insulina protaminozíncica (PZI) 1,3.
Anos depois foi lançada a insulina de ação lenta, desprovida de protamina. Em 1973 3, foi desenvolvida e lançada no mercado uma nova preparação de insulina suína livre de peptídios imunogênicos, denominada insulina monocomponente. Com o advento da biologia molecular, via DNA recombinante, iniciou-se a era das insulinas biossintéticas humanas, utilizadas por muitos pacientes até os dias atuais 3,4. No final da década de 90, a indústria farmacêutica Eli Lilly Company 3 sintetizou a insulina de ação ultrarápida denominada lispro 1,3, que quimicamente se fundamentou na inversão de posições dos aminoácidos prolina (B28) e lisina (B29) na cadeia B da insulina humana 3. Em seguida, foi introduzida no mercado a insulina asparte que quimicamente se diferenciava da insulina humana pela substituição do aminoácido 1,3 prolina na posição B28 da cadeia B pelo ácido aspártico 3. A glulisina, outro análogo de ação rápida por trocas de aminoácidos na cadeia, é semelhante farmacologicamente a lispro e asparte, porém ainda não está disponível no Brasil 4. Em 2000 3, uma insulina de ação prolongada 1,3 e mais estável 1, denominada de glargina, foi aprovada pela Food and Drugs Administration (FDA) e European Medicines Evaluation Agency (EMEA) para o uso em pacientes com diabetes tipos 1 e 2 Recentemente, mais um análogo de ação prolongada, denominado detemir, também foi aprovado. É um composto solúvel em ph neutro e basicamente foi desenvolvido com o objetivo de obter valores glicêmicos mais estáveis e previsíveis 3. 3. Ação De acordo com o tipo de preparação, o hormônio levará mais ou menos tempo para agir, dando origem a classificação das insulinas de ação curta, intermediária e longa, sendo que as duas últimas resultam de modificações na insulina cristalina (ação curta) 1. Diante dos vários tipos, a escolha da insulina dependerá da farmacocinética (tabela 1), espécie de origem e grau de purificação da mesma 1, conforme a necessidade de cada paciente. Já existem insulinas chamadas de bifásicas, em que há pré-misturas, com variadas concentrações de insulina humana ou de análogos, de ação rápida e intermediária ou prolongada. Ainda estão em estudo as formas farmacêuticas de insulina que permitirão a administração por vias oral, bucal/sublingual, respiratória, transdérmica e outras 4. Em 2006, já foi aprovada pelo FDA a insulina inalável de ação rápida, indicada para uso pré-prandial em pacientes com DM 1 e 2. Do ponto de vista farmacológico, tem pico de ação similar a dos análogos de efeito rápido e duração de atividade hipoglicemiante comparável à da insulina humana regular em uso subcutâneo 3.
Tabela 1. Tipo de insulinas e suas indicações (adaptação da referência 4) Ação Rápida Tipo Início (min) Pico (h) Duração (h) Indicações regular ou cristalina 30-60 Imediato (IV) 1,5-4 --- lispro 25 0,5-1,5 2-5 asparte 25 0,6-0,8 3-5 5-8 0,5 (IV) glusilina 15 0,5-1,5 1-2,5 Cetoacidose; gestação e parto; emergências; em combinação com outras insulinas; em bombas de infusão subcutânea; em tratamento tipo bolus antes das refeições. Ação Intermediária NPH 1-2 6-12 18-24 lenta 1-2 6-12 18-24 detemir --- 1,5 20-24 Ação Prolongada ultralenta 4-6 16-18 20-36 PZI 4-6 14-20 24-36 glargina 2,5 5-24 18-24 IV= Via intravenosa. PZI= Insulina protaminozíncica. NPH= insulina com proteína denominada protamina. Manutenção do controle glicêmico basal, em diabete tipo I e II. Manutenção do controle glicêmico com baixas concentrações ao longo do dia. Insulina glargina A glargina é análogo da insulina, de absorção lenta e previsível, com duração de 24 horas, o que permite injeção única ao dia. Apresenta menor potencial para hipoglicemias 4. Propriedades A estrutura química difere da insulina humana em três posições de aminoácidos. Na cadeia A21, a asparagina é substituída pela glicina para aumentar a estabilidade da molécula e duas moléculas de argininas são acrescentadas na posição B31 e B32 3. Estas alterações mudam o ponto isoelétrico da insulina, elevando o seu ph para o mais próximo possível do neutro. Apesar disso, o ph levemente ácido promove no tecido subcutâneo a formação de microprecipitados, acarretando numa absorção mais lenta para a circulação sanguínea. Assim, devido ao seu ph, não pode ser misturada a outras insulinas na mesma seringa 3. Para otimizar a estabilização da molécula, são adicionadas pequenas quantidades de zinco que contribuem ainda mais para a sua absorção lenta pelos capilares sanguíneos 3.
Cadeia A Cadeia B Figura 2 Estrutura Química da insulina glargina Cuidados Em indivíduos portadores de diabetes melito tipo 1, o análogo glargina pode ser aplicado antes do café da manhã, antes do jantar ou antes de dormir, embora os episódios de hipoglicemias noturnos parecem ser menos freqüentes quando é administrada pela manhã 3. Em virtude de seu ph ácido, algumas crianças podem se queixar de sensação de queimação no local da aplicação 3. Eficácia comparada Em vários ensaios clínicos envolvendo pacientes com diabetes tipos 1 ou 2, comparando a glargina com a insulina NPH, a glargina demonstrou início de ação mais lento, com efeito mais prolongado, estável e picos pouco pronunciados 3. Em 2003, um comitê de especialistas da Canadian Diabetes Association (CDA) recomendou que essa insulina devesse ser considerada para tratamento de diabéticos de tipo 1 com problemas de controle da glicemia em jejum ou para reduzir hipoglicemia noturna e que insulina glargina devesse ser preferida à NPH para reduzir hipoglicemia durante a noite e ganho de peso em diabéticos de tipo 2 que necessitassem adicionar insulina aos antidiabéticos orais. Ao contrário, em 2005, consultores do Common Drug Review (CDR), órgão canadense que avalia formulários estaduais, não incluiu tal fármaco nas listas. Ambos os grupos de especialistas avaliaram praticamente as mesmas evidências (cerca de 20 ensaios randomizados e controlados). O editorial do Canadian Medical Association Journal alerta para os vieses presentes nos chamados consensos das sociedades de especialistas. Em resposta, membros do CDA afirmam que as diretrizes são baseadas em
recomendações de grau B, provenientes de evidências de nível dois. A Prescrire International alerta que, na ausência de suficiente tempo para fazer adequado seguimento, os efeitos adversos de longo prazo são ainda desconhecidos 4. Uma metanálise 5 de doze ensaios clínicos abertos, randomizados e em paralelo, com um total de 4385 pacientes com DM2, comparou eficácia e segurança da insulina NPH versus Glargina. Não foram encontradas diferenças significativas na diminuição dos níveis de glicose (HbA1c média final: 7,6% glargina vs. 7,7% NPH). Mais participantes reportaram episódios de hipoglicemia com a administração de NPH quando comparados com a glargina (59% vs. 53%, P<0,001), porém não houve diferença significativa em episódios confirmados (10,0% vs. 6,3%; P=0,11) ou graves (2,5% vs. 1,4%; P=0,07). Houve uma perda de peso mais acentuada com o uso de NPH (-0,33kg; IC95% -0,61 a -0,06). O estudo teve suporte da indústria farmacêutica. Recentemente, outra metanálise demonstrou dados semelhantes ao comparar desfechos de insulinas análogas versus convencionais para tratamento de DM1, DM2 e diabete gestacional, concluindo que tanto insulinas análogas de rápida quanto de longa ação oferecem pouco benefício relativo quando comparadas com as convencionais em termos de controle da glicemia e redução de hipoglicemias 6. Já a relação custo-efetividade do uso de insulinas análogas depende do tipo de insulina análoga e do tipo de DM que o indivíduo apresenta. Com exceção da insulina análoga de ação rápida para pacientes em DM1, a implantação de rotina de insulinas análogas, principalmente as de longa duração em DM2, dificilmente representam um uso eficiente dos finitos recursos de saúde 7. Considerações Finais O diabete melito é uma doença crônica importante, que necessita de maior controle e cuidado. Uma postura adequada frente à alimentação, atividade física e demais hábitos de vidas são fundamentais para se prevenir o surgimento de tal doença. Quando detectada, o uso de medicamentos para o seu controle se faz, muitas vezes, necessário. O uso racional de insulinas e antidiabéticos orais deve ser priorizado, a fim de se evitar futuras complicações e possíveis surgimentos de comorbidades. A insulina glargina é uma insulina análoga de ação longa, desenvolvida para contribuir com tratamentos resistentes e ineficazes, devendo ser utilizada quando realmente necessária, levando em consideração a situação clínica do paciente e seu acesso, uma vez que a glargina é um medicamento de custo elevado quando comparado com tratamentos convencionais.
REFERÊNCIAS 1. FUCHS, F. D.; WANNMACHER, L.; FERREIRA, M. B. C. Farmacologia Clínica: fundamentos da terapêutica racional. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. 2. Sociedade Brasileira de Diabetes. Tratamento e acompanhamento do Diabetes Mellitus, Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes. 2007. 3. PIRES, A. C.; CHACRA, A. C. A Evolução da Insulinoterapia no Diabetes Tipo I. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia 2008; 52/2. 4. WANNMACHER, L. Novas insulinas: qual a real vantagem? Uso racional de medicamentos: temas selecionados 2005; Vol.2, N 8, pág. 1-6. 5. BAZZANO, L. A.; LEE, L. J. et al. Safety and efficacy of glargine compared with NPH insulin for the treatment of Type 2 diabetes: a meta-analysis of randomized controlled trials. DiabeticMedicine 2008; 25, 924 932. 6. SINGH, S.R.; AHMAD, F.; LAL, A.; Yu, C.; BAI, Z.; BENNETT, H. Efficacy and safety of insulin analogues for the management of diabetes mellitus: a meta-analysis. Canadian Medical Association Journal 2009; 180(4):385-97. 7. CAMERON, C. G.; BENNETT, H. A. Cost-effectiveness of insulin analogues for diabetes mellitus. Canadian Medical Association Journal 2009; 180(4): 400-7. Elaborado por: Farm-Bioq. Juliane Fernandes Monks Revisado por: Prof. Isabela Heineck (FACFAR UFRGS), Farm. Maria Isabel Fischer e Farm. Alexandre Augusto de Toni Sartori (CIM/RS)