PRIMEIRA VERSÃO PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº110 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2003 VOLUME VII PINTANDO O SANTO MARTA VALÉRIA DE LIMA & NILZA MENEZES



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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº110 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2003 VOLUME VII PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa 110 ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI Física - UFRO CELSO FERRAREZI Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY História USP MARIO COZZUOL Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ Letras - UFRO SILVIO A. S. GAMBOA Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO Filosofia - UFSC Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em Word for Windows deverão ser encaminhados para e-mail: nilson@unir.br CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES PINTANDO O SANTO MARTA VALÉRIA DE LIMA & NILZA MENEZES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

Marta Valéria de Lima & Nilza Menezes PINTANDO O SANTO mvaleria@unir.br & cendoc@tj.ro.gov.br Professora do Departamento de História da UFRO & Centro de Documentação Histórica do TJ/RO Poucas cerimônias religiosas chamam tanto a atenção como as festas realizadas em um terreiro de Candomblé, estas, além de belas, são bastante complexas. As homenagens prestadas aos orixás são bastante singulares e impressionam pela carga de energia que envolve os participantes, além da presença de um grande número de elementos mágicos e simbólicos. Vários modelos religiosos formam o campo das religiões afro-brasileiras. Segundo José Flavio Pessoa de Barros (2000, p. 17), candomblé é o resultado de diversas culturas africanas, produto de várias afiliações, existindo, portanto, vários candomblés (angola, congo, efan, etc). É importante observar que o termo Candomblé tem sido utilizado genericamente para designar as religiões brasileiras que cultuam os orixás iorubanos e os voduns daomeanos e que essas mesmas religiões são conhecidas regionalmente por outros nomes, como, por exemplo, xangô em Pernambuco, tambor de mina no Maranhão e macumba ou batuque em Rondônia. Uma das temáticas da nova coleção de artes da artista plástica Rita Queiroz retrata aspectos dos cultos afro-brasileiros observados em cerimônias públicas realizadas em terreiros da cidade de Porto Velho, onde os orixás são homenageados e cultuados. Na definição de Cacciatore (1988, p. 197), Os orixás são divindades intermediárias iorubanas, excetuando Olórum, o Deus Supremo. Na África eram cerca de 600. Para o Brasil vieram talvez uns 50 que estão reduzidos a 16 no Candomblé (alguns tendo vários nomes ou qualidades), dos quais só 10 passaram à Umbanda. Há mais de vinte anos, movida pela curiosidade, Rita Queiroz passou a freqüentar alguns terreiros de Porto Velho. Inicialmente, chamaram-lhe a atenção o colorido das vestes, a decoração dos terreiros, a coreografia das danças e a incorporação dos médiuns. Foi durante essa fase que ela se deu conta de que havia nos terreiros fartos materiais para desenvolver pesquisas para as suas obras de arte e que ela se interessou pelo tema dos orixás. Como resultado das investigações ela produziu algumas telas representando alguns médiuns incorporados com orixás e outras entidades. Dentre essas os exus, que ela usou como principal fonte de inspiração para compor os primeiros trabalhos. Rita Queiroz afirma haver compreendido o sentido da experiência numinosa dos adeptos dos cultos afro-ameríndios, contudo se frustrou no desejo de transpor para as telas a intensidade energética que se verifica durante as cerimônias. ISSN 1517-5421 2

Acabou por abandonar o tema porque os ritos levaram-na a entrar em conflito interno com os valores religiosos da sua formação católica, despertando temores oriundos do imaginário popular que associam as religiões afro-brasileiras ao demônio e à magia negra. Despreparada para enfrentar os medos e os preconceitos pessoais e sociais, Rita presenteou os amigos que se interessavam pelos deuses e outras entidades dos terreiros e por seus trabalhos com as telas que haviam sido produzidas nesta primeira fase de pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras. Na seqüência, viajou para Portugal. Os trabalhos que desenvolveu em Portugal ressaltaram aspectos da cultura brasileira que eram percebidos como símbolos da sua identidade e nacionalidade. Neste período, as suas telas retratavam negras baianas em trajes típicos. Embora as baianas não estivessem associadas em princípio aos estudos sobre o Candomblé, e sim ao folclore brasileiro, é interessante notar que inconscientemente ela retomou seu estudo sobre a cultura afro-brasileira. Passada a temporada em Portugal e já de volta ao Brasil, Rita retorna ao tema principal das suas obras, os ribeirinhos, no seu dizer, a sua essência. Para Rita, pintar o tema regional é voltar-se para si, interiorizando-se e trazendo à tona imagens familiares, não há necessidade de pesquisa. Para ela, pintar ribeirinhos é algo natural ao seu existir, uma extensão do seu próprio corpo. Rita admite guardar neste corpo uma alma inquieta e uma incrível fascinação pelo sobrenatural, a ponto de haver-se dedicado ao aprendizado de algumas formas de magia. Ao observar os seus trabalhos é possível constatar as marcas de sua natureza mística. As vivencias, a maturidade e as amizades que travou e aprofundou em período mais recente modificaram o olhar e o pensar de Rita sobre as religiões afro-brasileiras. Profissionalmente mais madura e com acúmulo de algum conhecimento teórico sobre magia e religião, ela se permitiu freqüentar não apenas as cerimônias religiosas e outros eventos católicos, mas também grupos esotéricos e espíritas, o que provocou alterações nas suas crenças pessoais. Como resultado ela desenvolveu um senso artístico e intelectual mais apurado sobre as religiões populares que resultaram na realização de diversos trabalhos de caráter sacro e profano. O fascínio pelo sobrenatural e a sensibilidade artística reconduziram Rita aos terreiros e ao contato com o povo de santo e os encantados, desencadeando mais uma vez o desejo de materializar o que os seus sentidos apreendiam. Há cerca de dois anos ela retomou as pesquisas sobre os cultos afro-brasileiros, realizando esboços para novas telas. Desta vez, ela desloca o olhar do foco ribeirinho e não retrata os encantados das margens dos rios amazônicos, mas os da cultura africana, tais como iemanjá, oxum e outros orixás. O que ressalta nesse novo trabalho é a harmonia da composição na transposição da energia dos orixás e seus cavalos (os médiuns) e a consciência de que não há ruptura entre este trabalho e os que foram anteriormente produzidos a respeito da vida, das lendas e crendices dos beradeiros. ISSN 1517-5421 3

Rita Queiroz diz que para a execução das novas telas, embora tenha feito a partir da observação dos rituais de um terreiro de candomblé, não foi apenas o visível no terreiro que ela buscou transpor para a pintura, mas o que ela pôde perceber além das cores, do movimento, de tudo que envolve o ritual que compõe uma festa de candomblé. No seu dizer, cada entidade está sendo apresentada como Rita as viu, daí julgar importante retirar os semblantes dos médiuns, pois não era a eles que desejava representar. Neste sentido, ela informa que a preocupação não foi em retratar os rostos dos participantes dançando, mas a energia percebida e apreendida. Vale ressaltar que para ela não há contradição entre os seres da natureza cultuados pelos povos ribeirinhos e os orixás. O mundo mágico das florestas amazônicas com as suas lendas e mitos é enriquecido com a contribuição do povo africano. Ela faz as seguintes considerações a esse respeito: É interessante... Como eu acho também, que de dentro do meu rio Madeira, de dentro das minhas matas, de dentro de minha... toda essa energia de dentro da Amazônia, de todo o meu trabalho. Eles têm uma ligação com essa energia, porque eu acredito que cada uma baiana dessas (eu não entendo porque eu não sou uma pessoa muito entendida do Candomblé), eu sinto que elas têm uma ligação com a energia da mata, do rio, do próprio ar, do relâmpago, do trovão. Então é aquela coisa que no fundo, no fundo se mistura. Há uma mistura de energia com energia. (Rita Queiroz: 08.08.2002). O conceito energia é usado por Rita Queiroz quando informa sobre este trabalho. Este conceito traduz o que ela capta e consegue compreender a respeito dos rituais, das entidades e do que estes representam para si mesma e para as pessoas que cultuam os deuses africanos. Rita Queiroz não possui um saber acadêmico sobre o culto aos orixás, porém se retomarmos os estudos de Pierre Verger (1999), observaremos que intuitivamente ela capta o sentido que é conferido a estes na cultura africana conforme pode ser lido nesta passagem: Lembremos que os cultos prestados aos orisa dirigem-se, em princípio, as forças da natureza. Na verdade a definição de orisa é mais complexa. É verdade que ele representa uma força da natureza, mas isso não se dá sob sua força desmedida e descontrolada. Ele é apenas parte dessa natureza, sensata, disciplinada, fixa, controlável, que forma uma cadeia nas relações dos homens com o desconhecido. (Verger: 1999: 37) Observa-se, pois, que as origens dos deuses do Candomblé reportam à história dos ancestrais dos clãs das tribos africanas e que estes foram divinizados por sua capacidade de manipular as forças da natureza, contribuindo para a sobrevivência dos membros do grupo com os seus conhecimentos sobre o plantio, a confecção de ferramentas de trabalho e a cura com ervas. De fato, entre os estudiosos das religiões populares no Brasil é possível observar a junção de crenças, ritos e símbolos. Conforme Berkenbrock: o sincretismo é a característica que talvez mais impressione a um observador superficial das religiões e cultos afro-brasileiros, observando ainda que: A situação atual do sincretismo é o resultado de um desenvolvimento orgânico iniciado há séculos e que se encontra hoje em curso (1998, p. 132). Assim, fascinada por esse campo de observação, a casa que serviu de inspiração para o trabalho de Rita Queiroz a respeito dos orixás denomina-se Abaçá de Nagô Iemanjá Ogunté, fundada em 4 de dezembro de 1986 por Roberto Athayde, mais conhecido como Pai Roberto de Iemanjá que é o seu dirigente. ISSN 1517-5421 4

A CASA PESQUISADA As raízes históricas dessa casa estão ligadas ao Palácio de Nagô da Oxum Jangurá na Paraíba. Portanto, o terreiro investigado por Rita Queiroz pertence à nação nagô, porém este sofreu influências de outras culturas e incorporou aos seus fundamentos a tradição religiosa da Jurema. Dito de uma forma pouco aprofundada, isto significa que, na estrutura ritual do terreiro mencionado, além dos deuses africanos de origem iorubana, são cultuadas entidades caboclas do Brasil. Segundo Maria do Carmo Brandão e Felipe Rios (2001, p. 165-166), duas categorias de entidades espirituais tem seus assentamentos na jurema, os caboclos e os mestres. Esses autores explicam que os caboclos são entidades de origem indígena que trabalham principalmente com cura através do conhecimento das ervas. Afirmam que de forma geral os mestres são descritos como espíritos curadores de descendência escrava ou mestiça. É importante ressaltar que esse ritual de cura recebe a denominação de Jurema devido à utilização de uma bebida que é ingerida durante os rituais. A bebida é obtida a partir da utilização da casca de uma árvore existente no nordeste chamada Jurema. Conforme Sangirardi Júnior (apud: Motta,1988, p. 226), a jurema é conhecida como a droga mágica do Nordeste. A respeito da Jurema, Clarice Novaes Mota (1988, p. 226) comenta:... seu nome vulgar ou popular vem do Tupi Yu-e-ema. Há pelos menos sete espécies de árvores ou arbustos conhecidas, usadas e classificadas como Jurema. Na classificação popular Jurema Mansa, Jurema Branca, Jurema de Caboclo, Jurema de Espinho, Jurema Preta e Jureminha. Uma outra espécie também conhecida pelo nome de Jurema é a Jurema das Matas, que não nos foi possível localizar para fins classificatórios. Pela descrição dos mateiros e usuários, ela tem espinhos, podendo portanto tratar-se da mesma Jurema de Espinho. Ao tentar estabelecer as distinções entre os cultos de origem nagô e os de jurema, Pai Roberto de Yemanjá explica que os rituais de nagô são realizados quando das festas aos orixás, as feituras e saídas de santo e que nesta tradição ele possui o grau de pai de santo. Porém, como também é juremado, na tradição da Jurema, ele possui o título de Mestre Juremeiro. Referindo-se ao conhecimento e aos postos hierárquicos nas duas tradições mencionadas, Pai Roberto de Yemanjá explica: No Nagô antiguidade é posto. A Jurema é um segredo. Conhecimento sobre os ritos de nagô qualquer um pode adquirir lendo, estudando, mas o axé, o dom de ser um juremeiro é como uma herança espiritual dos nossos antepassados. Não se adquire por conhecimento, mas sim por dom, já se nasce com o dom, embora para se preparar um mestre juremeiro leva-se de 01 a 07 anos. (Roberto de Athayde, 26.08.2002). Atualmente, três filhos da casa estão sendo preparados para receberem título de Mestre: Rafael, Nilza e Flávio. ISSN 1517-5421 5

Assim, na linha de nagô, a casa é dedicada a Iemanjá Ogunté, porém na da Jurema quem comanda é o caboclo Pena Branca. Ressalte-se que a Jurema também se divide em linhas, sendo cultuadas as seguintes no terreiro investigado: linha de mestres, comandada por Seu Zé Pelintra de Aguiã; a linha de pretos velhos comanda Pai Joaquim e Maria Conga; a linha dos ciganos comanda o cigano Pablo, há ainda invocação às entidades das linhas de boiadeiros e pomba giras. Embora, de modo geral, a tradição nagô tenha sofrido perdas culturais, assim como incorporações de outras tradições, o pai-de-santo do Abaçá de Nagô Yemanjá Ogunté tem a preocupação de transmitir o conhecimento tradicional que recebeu na casa matriz. Desta forma, entre outros preceitos, as rezas cantadas para homenagear os orixás, algumas vezes, são entoadas em língua africana. São mantidos assentamentos para treze dos orixás que são cultuados no Brasil. As cerimônias acompanham a ortodoxia nagô quanto à ordem hierárquica estabelecida para homenagear os orixás. Neste sentido, na abertura dos rituais, canta-se inicialmente para Exu, pedindo-lhe licença para dar início aos trabalhos. Entre os adeptos do Candomblé acredita-se que só por meio de Exu é possível invocar os orixás, pois ele é tido como orixá mensageiro entre os homens e os zdeuses. A seguir os orixás são saudados na seguinte ordem: Ogum, Ode, Osanha, Nanã, Obaluaê, Xangô, Oxum, Tempo, Erê, Iansã, Iemanjá e Oxalá. Alguns dos orixás como Oxumaré, Obá e Obacio continuam sendo cultuados, porém estes não são saudados durante as cerimônias públicas, não se manifestando no corpo dos médiuns. Os filhos de santo da casa preparados no Nagô hoje são Ronaldo de Xangô, Eliane da Oxum, Rafael da Oxum, Nilza de Iemanjá, Helena de Iemanjá, Branca de Iansã e Flávio de Oxalá. A casa tem ainda quatro ogãs: Daniel de Ogun Xoroquê, Fabinho de Ogum, Pablo de Xangô e Dirley de Omolu. A ekede é Jose de Oxum Jangurá. A trajetória de Pai Roberto como dirigente de terreiro tem início quando da sua iniciação aos oito anos de idade no Templo Religioso Mãe Yemanjá da Ialorixá Beatriz Barbosa, conhecida como mãe Beata de Iemanjá Sobá, que fundou uma casa de Angola na Paraíba no ano de 1960. Mãe Beata foi preparada no Cabula na casa de pai Cecílio de Oxalá em Salvador. Pai Roberto de Iemanjá permaneceu no Angola até os 20 anos de idade, tendo, após, por motivos particulares, conforme diz, trocado as águas pelas do nagô onde permanece até hoje, contando com 42 anos de feitura de santo. A sua primeira casa foi aberta no dia 13 de maio de 1970, afiliada à Federação dos Cultos Africanos da Paraíba. Quando da sua vinda para Rondônia houve um desmembramento dos seus filhos de santo, daí resultando o surgimento de outras casas, dentre elas estão o Abaçá de Oxaguiã da Ialorixá Angelina de Oxalá, já falecida; a Casa do Babalorixá João Cipriano, Templo do Mestre Cangaruçú, que funciona assim como a casa de Pai Roberto com nagô e Jurema; o Palácio de Oyá Gigandê da Ialorixá Mãe Rita de Iansã; a Casa de Iansã Oyá Dope do Babalorixá Mazinho de Iansã; ISSN 1517-5421 6

Com uma trajetória de migração pelos Estados da Paraíba, São Paulo, Rio de Janeiro e Rondônia, sempre exercendo as atividades de pai-de-santo, Roberto de Iemanjá realizou o feitio de aproximadamente setenta filhos de santo no Candomblé e em alguns casos também de Jurema. O seu Abaçá em Porto Velho, em funcionamento há quatorze anos, possui filhos preparados, mas nenhum saiu para abrir a própria casa. A casa de Iemanjá Ogunté está localizada no Residencial Dom João Costa, Rua 02, Casa 02, na Av. Amazonas, e os rituais abertos ao público são realizados aos sábados. Fontes Primárias ATHAYDE, Roberto. Entrevista concedida em 27.08.2002. QUEIROZ, Rita. Entrevista concedida em 08.08.2002. Bibliografia BARROS, José Flávio Pessoa de. O banquete do rei... Olubajé: uma introdução à música sacra-afro-brasileira. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 2000. BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás. São Paulo: Vozes, 1998. BRANDÃO, Maria do Carmo e RIOS, Luís Felipe. Catimbó-Jurema do Recife. In: PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encandos. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p. 160-181. CACCIATORE, Olga Gundolle. Dicionário de Cultos Afro-brasileiros: com a indicação da origem das palavras. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 3ª edição revista. 1988. MOTA, Clarice Novaes da. Jurema-Sonse, Jurema-tupan e as muitas faces da Jurema. In: Revista Antropológicas. Ano III, vol. 7. Série Anais. Memória, Tradição & Perspectivas. Recife, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 1988, p. 225-243. SANGIRARDI, Júnior. In: MOTA, Clarice Novaes da. Jurema-Sonse, Jurema-tupan e as muitas faces da Jurema. In: Revista Antropológicas. Ano III, vol. 7. Série Anais. Memória, Tradição & Perspectivas. Recife, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 1988, p. 225-243. VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP, 1999. ISSN 1517-5421 7

VITRINE DIVULGUE: PRIMEIRA VERSÃO NA INTERNET procura-se uma voz que se ignore plástica e desumana, sonho que em outro sonho more e ao sonhador engana: voz sem palavra e toda deslimite: dentro e fora de si mesma existe http://www.unir.br/~primeira/index.html Consulte o site e leia os artigos publicados CARLOS MOREIRA ISSN 1517-5421 8