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Transcrição:

O Mistério dos Orixás e das Bonecas O MISTÉRIO DOS ORIXÁS E DAS BONECAS: RAÇA E GÊNERO NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA Mariza Corrêa Na década de 40, no que dizia respeito à análise das relações raciais, o cenário intelectual brasileiro parecia se apresentar dividido em dois grandes blocos que poderiam ser representados pelos agentes do campo na Bahia e em Pernambuco. Os primeiros, continuando uma tradição iniciada por Raymundo Nina Rodrigues, se empenhavam em realçar a presença da África no Brasil; os segundos, particularmente a partir dos trabalhos de Gilberto Freyre, se esforçavam por vender (ao país e ao exterior) a idéia de um país mestiço, sincrético ou híbrido no que acabaram por se encontrar com uma idéia mais antiga, bem representada na intelectualidade carioca, reforçando-se mutuamente: a teoria do branqueamento. É nesse cenário que as relações entre raça e gênero vão assumir novos contornos: além de continuarem a ser exploradas pela cultura popular ou erudita, preferencialmente simbolizadas pela figura da mulata, se expressarão também nas relações dos antropólogos entre si e, particularmente, na crítica ao trabalho de antropólogas brancas que trabalhavam com o tema da raça. O título alude ao sumiço dos orixás e das bonecas baianas enviadas por Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, à Exposição do Mundo Português de 1940, em Lisboa, caso examinado aqui como metáfora dessas relações. Este texto evoca um episódio da história da antropologia brasileira que sugere que nem sempre as passagens de século coincidem com o final ou o início de mudanças de paradigmas na história das ciências. Para tratar da constituição do campo de estudo das relações raciais no Brasil, parece mais apropriado pensarmos no ano de 1939 do que no de 1899. Foi então que uma série de supostos sobre essas relações se confrontaram e deram início ao que parecia ser uma nova época: no início da década, a famosa tese de Gilberto Freyre insistia na influência lusa na vida nacional no momento mesmo em que começava a haver uma troca de guarda na vida intelectual da antiga colônia e o país passava, lentamente, da esfera de influência européia, e mais especificamente, francesa, para a esfera de influência norte-americana a qual, aliás, o próprio trabalho de Gilberto Freyre prenuncia. Nas páginas que se seguem, tento historiar, resumidamente, essas mudanças internas aquele campo de estudos num momento que foi marcado também por dois eventos que parecem significativos para sinalizar essa mudança dos tempos: a última exposição do velho mundo colonial, a Exposição Histórica do Mundo Português, em 1940, e a New York World Fair, primeira exposição do novo mundo Etnográfica, Vol. IV (2), 2000, pp. 233-265 233

Mariza Corrêa colonial, em 1939, ambas realizadas quando se iniciava uma guerra que propiciaria essa troca de guarda. Numa e noutra dessas celebrações globais a atuação de duas mulheres brasileiras como intermediárias das relações da cultura brasileira com o cenário internacional se fez notar de maneiras diferentes, no primeiro caso pela ausência, ou supressão, no segundo pela presença marcante e, em ambos os casos, indicando que desde então as relações entre raça e gênero estiveram entrelaçadas na exposição da cultura nacional. 1 A primeira figura que serve de guia a esse relato é, assim, a das bonecas baianas que foram enviadas à exposição portuguesa (figura 1), e logo depois dela suprimidas: para entender seu percurso, será necessário fazer um pequeno détour pela história de sua constituição, ou corporificação, como um símbolo nacional não desejado, primeiro, e depois objeto de desejo. Será preciso um pouco de paciência para entender porque devemos começar com a história de Ruth Landes, uma antropóloga norte-americana que fez pesquisas na Bahia, para chegar a esta figura. A segunda figura que nos serve de guia é a de Carmen Miranda (1909-1955), cujo traje típico estilizava a vestimenta da primeira (figura 2), enviada à exposição norte-americana, e desde então transformada num ícone da assim chamada cultura nacional. Sessenta anos depois, nesse novo final de século, o que parece novo é a reapropriação do velho: mais uma vez a Bahia é chamada a representar o país que faz quinhentos anos e outra vez, e ainda, a baiana é apresentada ao mundo, não mais nas feiras mundiais, que não são mais necessárias, mas através de outro instrumento que se pretende igualmente universal, a Internet, pelo qual navegam figuras de mulheres brancas e homens negros, agora despidos dos trajes da baiana, não mais necessários para qualificá-los como tais: Carlinhos Brown ou Ivete Sangalo de certo modo incorporaram, junto com a palavra baiano ou baiana, uma longa história à sua exposição internacional. 2 A sobreposição de mulheres brancas e símbolos de origem africana expressa, quem sabe, melhor do que as palavras poderiam fazê-lo, a relação que estou querendo analisar aqui. Para compreender essa relação, é necessário compreender também o cenário no qual essas figuras fizeram sua aparição. Cenário: Bahia. O Brasil nasceu aqui Na década de trinta um número significativo de intelectuais baianos migrou para a capital do país, então a cidade do Rio de Janeiro, e lá 1 Infelizmente não temos uma noção equivalente a gênero para falar de raça, desvinculando esta palavra de seu referencial histórico propriamente racista. No âmbito da constituição do campo das relações raciais no Brasil, do qual vou estar tratando aqui, raça é quase que sinônimo de negro. 2 Carlinhos Brown, cantor e compositor negro baiano, símbolo da nova geração de músicos brasileiros; Ivete Sangalo, cantora branca baiana, de grande sucesso popular, mestre sala do show Mamma Africa que abriu as comemorações da tevê Globo sobre os quinhentos anos da descoberta do Brasil. 234

O Mistério dos Orixás e das Bonecas FIGURA 1 Boneca com a indumentária das mães de santo baianas, atualmente expostas no Museu Nacional do Rio de Janeiro, comprada por Édison Carneiro para a Exposição de Lisboa. 235

Mariza Corrêa FIGURA 2 Carmen Miranda, numa imagem estilizada veiculada pela Internet. 236

O Mistério dos Orixás e das Bonecas instalou seu quartel general para a divulgação do grupo que Arthur Ramos batizaria de escola Nina Rodrigues. Resumidamente, a estratégia que pode ser lida ex post facto, mas que era também uma atuação refletida à época dos eventos (ver Ramos 1937b), se expressou na edição ou reedição dos trabalhos de Nina Rodrigues, na divulgação dos trabalhos de intelectuais do grupo, através da Biblioteca de Divulgação Científica, da Editora Civilização Brasileira, dirigida por Ramos mesmo nome que tivera, aliás, a coleção coordenada por Afrânio Peixoto, na antiga Editora Guanabara e na ocupação de postos importantes no aparelho de estado. Alguns desses intelectuais não eram nascidos na Bahia, como o próprio Nina Rodrigues (1862-1906) e seu autoproclamado discípulo, Arthur Ramos, mas todos tinham feito sua carreira, ou parte dela, lá. Podemos identificar três gerações de baianos no cenário carioca: Afrânio Peixoto (1876- -1947), o mais antigo integrante do grupo, foi professor das faculdades de Medicina e de Direito, membro da Academia Brasileira de Letras, reitor da Universidade do Distrito Federal e criador e organizador do Instituto Médico Legal que depois levaria seu nome. O educador Anísio Teixeira (1900-1971), não reclamado como parte do grupo, era, no entanto, amigo de todos os outros e ocupou o cargo equivalente ao de Secretário de Educação do município, ocupado antes por Afrânio, além de ter sido conselheiro da UNESCO e criador e secretário geral da CAPES. O médico Arthur Ramos (1903-1949), durante algum tempo foi funcionário da Secretaria de Educação, depois professor da Universidade do Distrito Federal e, em seguida, professor de antropologia da Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1949 transferiu-se para Paris, para ocupar o cargo de chefe do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, lá vindo a falecer cerca de dois meses depois de sua chegada. Édison Carneiro (1912-1972), também agregado à escola por A. Ramos, dela se desvinculou explicitamente em várias ocasiões. Jornalista e escritor, foi também funcionário do SESI (Serviço Social da Indústria) e da CAPES, mas sua principal vinculação foi com a Comissão Nacional do Folclore, ligada à UNESCO, criada em 1947, e com a Campanha Nacional de Defesa do Folclore, de 1961 a 1964 quando foi afastado pelo governo militar. 3 Sua atuação conjunta, desde a capital do país, multiplicou em muito o alcance que esses intelectuais de província teriam tido se restritos ao seu estado natal, ou de adoção. Vista de hoje, ela se assemelha a uma operação de guerrilha cujo objetivo parecia ser destronar a posição de Gilberto Freyre, que começava a ganhar foros de hegemonia no campo do estudo das relações 3 Outros intelectuais baianos, não ligados à escola, mas vinculados ao grupo por laços de amizade, também para lá se transferiram nessa década: Péricles Madureira de Pinho, Álvaro Dória e Armando de Campos, médicos e jornalistas que também ocuparam postos importantes nas instituições da capital. Sobre o grupo, pode-se ler mais em Corrêa 1998. 237

Mariza Corrêa raciais. Mais do que os livros publicados nessa década, 4 os dois congressos afro-brasileiros, o primeiro organizado em Recife, em 1934, por Gilberto Freyre, e o segundo organizado na Bahia, em 1937, por Édison Carneiro e Áyadano do Couto Ferraz, serviriam de vitrine para as discordâncias entre pernambucanos e baianos. Em 1933, Gilberto Freyre publicara Casa Grande & Senzala, recebido com muitas críticas pela intelectualidade brasileira, antes de se tornar, poucos anos depois, a síntese da cultura brasileira, 5 e o Congresso do Recife de certo modo pôs em cena, literalmente, no palco do teatro Santa Isabel, as idéias ali expressas. Nas vésperas do segundo congresso, numa entrevista concedida a um jornal local, e republicada em O Estado da Bahia, Gilberto Freyre fazia críticas à organização do Congresso da Bahia: Receio muito que vá ter todos os defeitos das coisas improvisadas. Deveria ser muito maior o prazo para os estudos, para as contribuições dos verdadeiros estudiosos. Os verdadeiros estudiosos trabalham devagar. A não ser que os organizadores do atual congresso só estejam preocupados com o lado mais pitoresco e mais artístico do assunto: as rodas de capoeira e de samba, os toques de candomblé, etc. [...] Creio que o fato de o Congresso Afro-Brasileiro do Recife ter encarado o negro e o mestiço do negro, não como um problema de patologia biológica, a exemplo do que fez o próprio Nina Rodrigues que era um convencido da absoluta inferioridade do negro e do mulato mas como um problema principalmente de desajustamento social, representa uma conquista notável para os estudos sociais brasileiros e de profunda repercussão política. Mas não me parece que os congressos afro-brasileiros devam resvalar para a apologia política ou demagógica da gente de cor (citado em Oliveira e Lima 1987: 129, ênfase adicional). 4 Lembro, sem pretensão de esgotar a lista: Os Africanos no Brasil, de Nina Rodrigues (1932); Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1933); O Alienado no Direito Civil Brasileiro, de Nina Rodrigues (1933); O Negro Brasileiro, de Arthur Ramos (1934); O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, de Nina Rodrigues (1935); O Folclore Negro do Brasil, de Arthur Ramos (1935); Religiões Negras, de Édison Carneiro (1936); As Culturas Negras no Novo Mundo, de Arthur Ramos (1937a); Negros Bantos, de Édison Carneiro (1937); Costumes Africanos no Brasil, de Manoel Querino (1938), organizado por A. Ramos; Coletividades Anormais, de Nina Rodrigues (1939), organizado por A. Ramos; além dos três volumes sobre os primeiros congressos afro-brasileiros, dois volumes sobre o Congresso de Pernambuco, em 1935 e 1937 e, em 1940, um volume sobre o Congresso na Bahia. Todos esses livros e a lista tem muitas lacunas foram publicados nas coleções dirigidas por Afrânio Peixoto ou por Arthur Ramos, com exceção do primeiro livro de Nina Rodrigues e de Casa Grande & Senzala. Vale lembrar que, na mesma década, Gilberto Freyre dirigia a Coleção Documentos Brasileiros (1936-1939), da editora José Olympio, lá tendo publicado três de seus livros até o final da década e mais dez até 1960 (ver Pontes 1989). 5 Aqui há várias sobreposições de influências mútuas, regionais e internacionais, na vida intelectual: é importante lembrar a visita de Gilberto Freyre ao Rio de Janeiro, em 1926, registrada por H. Vianna (1995), e seu encontro com músicos, negros ou mulatos, representantes do samba carioca, para contextualizar a sua proposta de um Brasil mestiço. Ver a análise de Tiago de Melo Gomes (1998), especialmente o capítulo 2, sobre a forte presença de mulatos e portugueses na cena brasileira, no teatro de revista carioca no início do século, em encenações que prefiguravam as análises de Freyre. É também importante lembrar que Gilberto Freyre voltava dos Estados Unidos e que seria dos primeiros intelectuais brasileiros a sublinhar a importância da troca da noção de raça pela de cultura para explicar o país, tendo sido depois o fundador do luso-tropicalismo... 238

O Mistério dos Orixás e das Bonecas A resposta de Édison Carneiro a esta crítica, ainda que estivesse implícita na apresentação do volume que reuniu os trabalhos apresentados ao II Congresso Afro-Brasileiro, ficaria inédita por mais de vinte anos, e resume aquelas discordâncias: Esta ligação imediata com o povo negro, que foi a glória maior do Congresso da Bahia, deu ao certame um colorido único, como já previra Gilberto Freyre. Arthur Ramos, em carta que me escreveu sobre a entrevista ao Diário de Pernambuco, dizia: O material daí, que [Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco, constituirá justamente a parte de maior interesse científico. O Congresso do Recife, levando os babalorixás, com a sua música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque a pureza dos ritos africanos. O Congresso da Bahia não caiu nesse erro. Todas as ocasiões em que os congressistas tomaram contato com as coisas do negro foi no seu próprio meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de capoeira. [...] O Congresso prestou a homenagem que devia a Nina Rodrigues inexplicavelmente negligenciado pelo Congresso do Recife proclamando-o o pioneiro incontestável dos estudos sobre o negro no Brasil (Carneiro 1964: 101, ênfase adicional). 6 Três elementos pareciam se constituir, assim, nos signos de diferenciação entre baianos e pernambucanos: a primazia no estudo das relações raciais, atribuída pelos primeiros ao médico Nina Rodrigues, a evidente ênfase dos baianos numa atuação política e, o que foi a marca do seu trabalho nessa época, a africanização da Bahia, com tudo o que isso implicava a começar pela eleição de certos centros de culto como puros, por oposição aos cultos híbridos. 7 6 A coletânea de E. Carneiro reúne artigos publicados em jornais, ou apresentados em conferências, e inéditos: este texto traz a data de 1940 e a anotação inédito. Chama a atenção que a data é a mesma da publicação da coletânea com os trabalhos apresentados ao II Congresso. Em 1953, na I Reunião Brasileira de Antropologia, Édison Carneiro dizia que os Congressos inauguraram a estação de espetáculos do negro ao apresentá-lo, ele que já era um velho cidadão brasileiro, como um estrangeiro e, considerando esta fase como definitivamente encerrada, insistia numa linha de pesquisa que levasse em conta os processos atuais (ênfase do autor) das relações raciais (citado em Carneiro 1964: 115; texto também inédito). 7 Sobre a ênfase na política, observe-se que uma das consequências do II Congresso foi a criação, no mesmo ano de 1937, da União das Seitas Afro-Brasileiras, em grande medida graças à atuação de Édison Carneiro. Numa carta daquele ano, ele dizia a Arthur Ramos: estou vendo se consigo a liberdade religiosa dos negros (em Oliveira e Lima 1987: 152), liberdade que, no entanto, só foi juridicamente estabelecida por um decreto do governador do estado no ano de 1976. Além de ser perseguido como comunista, perseguição que persistiu até a época do golpe militar de 1964 (ver Vilhena 1997), Édison Carneiro era irmão do jornalista e advogado, depois senador, Nelson Carneiro, inimigo declarado do então governador da Bahia, Juracy Magalhães. Ao longo de sua vida Édison Carneiro abrandaria sua posição política ao ponto de ter tido um desentendimento com um dos organizadores (além dele, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento) do I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio, em 1950. No que Abdias do Nascimento chamou de Declaração dos cientistas, Carneiro, Guerreiro Ramos, Costa Pinto e Darcy Ribeiro, entre outros, repudiavam o acirramento de ódios e rivalidades injustificáveis entre os homens, com o ressurgimento do racismo e afirmavam que embora o negro brasileiro ainda conserve reminiscências africanas em certas atitudes sociais, já constitui um ser fundamentalmente brasileiro, parte da cultura nacional do Brasil (Nascimento 1982: 399). Sobre a ênfase na africanização dos cultos afro-brasileiros, ver o excelente trabalho de Dantas (1988). 239

Mariza Corrêa Foi nesse cenário de constituição de um campo de estudos que a relação entre gênero e raça faz seu aparecimento na história de nossa disciplina. Nesses anos, as décadas de trinta e quarenta, o Brasil recebeu inúmeros pesquisadores de outros países a maioria interessada em pesquisar os nativos do país. 8 Ruth Landes foi quase uma exceção ao eleger o tema raça para sua pesquisa e foi uma exceção por se tratar de uma pesquisadora por conta própria já que, até então, as pesquisadoras que aqui chegaram eram doublés de esposas dos pesquisadores como Dina Lévi-Strauss, Frances Herskovits, Yolanda Murphy, para lembrar algumas das poucas esposas cujos nomes a história registra. Aqui chegando, Ruth Landes seguiu o caminho habitual dos pesquisadores da época: apresentou-se a Heloisa FIGURA 3 Museu Nacional, Rio de Janeiro, em 1939: Édison Carneiro, Raimundo Lopes, Charles Wagley, Heloisa Alberto Torres, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e Luiz de Castro Faria. 8 Figura 3: Claude Lévi-Strauss e Castro Faria acabavam de retornar de uma expedição ao Brasil central; Charles Wagley acabava de chegar ao país e planejava sua pesquisa com os Tapirapé. Sobre os pesquisadores estrangeiros, ver Fernanda Massi 1989. Entre os franceses, a exceção era Roger Bastide; entre os norte-americanos, os poucos que se interessaram pela análise das relações raciais no período analisado, foram para a Bahia (F. Frazier, D. Pierson, M. Herskovits). Só mais tarde, na década de cinquenta, com o convênio entre o estado da Bahia e a Universidade de Columbia, sob a direção de Thales de Azevedo e Charles Wagley, é que os estudos sobre relações raciais na Bahia envolverão um número grande de pesquisadores e, ainda assim, creio que menor do que o dos pesquisadores que para cá vieram estudar os grupos indígenas, como, por exemplo, os envolvidos no projeto Harvard-Brasil Central, coordenado por Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis, a partir do Museu Nacional. 240

O Mistério dos Orixás e das Bonecas Alberto Torres, ou Dona Heloisa, como era mais comumente chamada, uma espécie de equivalente, para a antropologia de então, às mães de santo baianas, sobre as quais Landes chamaria a atenção em sua pesquisa em Salvador. 9 Dona Heloisa era a madrinha dos estudos etnológicos no país atuação garantida por sua posição como diretora do Museu Nacional e sua participação em várias das agências que controlavam o acesso aos grupos indígenas do país assim como Arthur Ramos era o padrinho dos estudos sobre o negro tanto graças aos vínculos que mantinha com a sua cidade de adoção, quanto graças aos que estabeleceu com os baianos na capital do país. Sem o saber, Landes estava transpondo o limiar de um campo já minado por dissensões teóricas, metodológicas e políticas que, espero, fiquem mais claras durante a narrativa dos episódios nos quais ambas, ela e Dona Heloisa, se envolveram. A Cidade das Mulheres Ruth Landes (1908-1991) ficou cerca de um ano no Brasil, de 1938 a 1939, mas os ecos de sua estadia aqui continuaram a ser ouvidos durante os anos seguintes e ressoam até hoje. Seu livro, publicado em inglês em 1947 e só traduzido para o português em 1967, era conhecido apenas dos pesquisadores interessados no estudo dos candomblés da Bahia e, assim mesmo, visto com certa complacência, dado que era apresentado como uma reminiscência de sua estadia aqui, muito mais do que como resultado de pesquisa. 10 No cenário internacional, o livro recebeu uma resenha negativa, publicada na American Anthropologist, de um dos pesquisadores mais importantes da área de relações raciais naquela época nos Estados Unidos, Melville Herskovits (1895-1963); no cenário brasileiro, seus resultados de pesquisa já tinham sido criticados por Arthur Ramos, em 1942, mesmo antes de aparecerem em livro (cf. Herskovits 1948 e Ramos 1942: 183-195). Tendo trabalhado durante algum tempo na equipe coordenada por Gunnar Myrdal, na preparação de An American Dilemma, Landes publicou vários artigos sobre a questão racial nos anos seguintes, mas foi só na década de noventa, quando as antropólogas norte-americanas começaram a rever a 9 Ver a descrição de 1977 de Charles Wagley (1988), contemporâneo de Landes no Brasil, sobre o papel de guia exercido por Dona Heloisa para ajudar os pesquisadores estrangeiros no país. Eduardo Galvão, um dos pesquisadores brasileiros que ela encaminhou para ser treinado por Wagley, referia-se a ela como mãe. 10 Em sua análise do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Grupioni cita uma notícia de jornal em que se anunciava que Landes ia pesquisar os índios nas tabas, e estranha o modo como o conselho lhe concedeu a licença de pesquisa: no documento impresso estão riscados os campos para exploração da região e fazer pesquisas, que foram substituídos, respectivamente, por visitar e fazer exclusivamente estudos sociológicos (Grupioni 1998: 79). 241

Mariza Corrêa história oficial de sua disciplina, que o livro sobre a Bahia voltou a despertar interesse, agora a partir da ótica das relações entre raça e gênero. 11 As análises até agora feitas a respeito da perseguição que Ruth Landes sofreu por parte de Arthur Ramos e Melville Herskovits parecem assentar- -se sobre três pontos: primeiro, em sua atuação como pesquisadora, isto é, tanto pelo fato de ser uma mulher entrando num campo dominado por homens, quanto pela sua relação amorosa com Édison Carneiro, seu guia no mundo dos candomblés; segundo, por sua ênfase nas relações raciais, num momento em que a antropologia passava a dar ênfase a explicações culturais, e, por último, por sua descrição, destoante das descrições canônicas, a respeito da importância que as mulheres tinham nos terreiros de candomblé. 12 Certamente todos esses pontos estiveram presentes na hostilidade que aqueles dois professores demonstraram em relação à pesquisadora, mas há ainda duas questões em geral subestimadas nessas análises que parecem merecer atenção: uma delas diz respeito à constituição do campo de estudos sobre relações raciais, a outra à constatação, feita por Landes, sobre a importância da presença de homossexuais no campo das religiões afro-brasileiras. 13 Comecemos pela segunda questão, mas, de fato, como veremos, ambas estão intimamente ligadas: parece ser nos dois artigos sobre a homossexualidade nos cultos afro-baianos, que no Brasil aparecem como apêndice ao seu livro, mas que foram publicados sete anos antes de sua primeira 11 Seria um longo desvio acompanhar a fortuna crítica do livro na sua íntegra: para a história completa ver Mark Healey (1996). É interessante observar, no entanto, que, embora a primeira análise de sua pesquisa sob esta ótica tenha partido da própria Ruth Landes (1986 [1970]), esta passou quase desapercebida até sua recuperação, no final dos anos oitenta pelas antropólogas feministas. Aqui, estou menos interessada na possibilidade de recuperar a relação entre raça e gênero na Bahia dos anos trinta e mais interessada em entender como essa relação foi importante na história da antropologia brasileira. 12 No mundo mais sofisticado de Nova Iorque, essa primeira razão podia parecer ridícula, mas a própria Ruth Landes resumiria a sua situação, quase trinta anos depois, na frase que seu marido latino-americano ouvira anos antes de conhecê-la: uma mulher se metendo em assuntos de homens (Landes 1986: 129; 124). No Brasil, no entanto, tais comentários pareciam ter outro peso: Édison Carneiro registrou num artigo que, ao avisar Arthur Ramos de que ia criticar suas observações negativas a respeito do trabalho de Landes, na resenha que preparava sobre A Aculturação Negra no Brasil (1942), este respondeu: Não o faça, senão eu publico coisa muito pior. Carneiro só viria a publicar suas críticas a Ramos quinze anos após a morte dele (Carneiro 1964: 227). O silêncio de Carneiro durante todos esses anos corrobora a avaliação de Cole de que vários níveis de assimetria estavam em jogo nesta história: aqui é a deferência do jornalista, mulato e mais jovem, pelo especialista branco e mais velho que parece ter preponderado. 13 É curioso que o próprio A. Ramos chamara a atenção para o fenômeno da homossexualidade nos candomblés de caboclo, num livro que Landes pode ter lido. Em 1934, ele citava várias reportagens dos jornais da Bahia para mostrar que desde o final dos anos vinte aí se estava dando um sincretismo entre o fetichismo e o baixo-espiritismo. Numa dessas matérias, por ele transcrita, diz o repórter: O tenente Vergne foi ao seu encontro. E com espanto notou que era um homem vestido de mulher! O pai Quinquim havia se transformado... (Ramos 1934: 110). No mesmo livro há inúmeras citações sobre a importância das mães de santo na Bahia. Para uma revisão da literatura que trata dessa presença e uma análise de caso, ver Peter Fry, Homossexualidade masculina e cultos afro-brasileiros, em Fry 1982 e, para uma retomada do debate, ver Patrícia Birman 1995. 14 Cf. Landes 1940a, 1940b e ainda Carneiro 1940, traduzido por R. Landes. 242

O Mistério dos Orixás e das Bonecas edição, em 1940 14 e não apenas na análise do papel representado pelas mulheres baianas nos candomblés que a relação textual entre raça e gênero se explicita no trabalho de Landes. Um desses é o artigo que Ramos critica em 1942 certamente tendo em mira um diálogo internacional, isto é, com os pesquisadores estrangeiros, recentemente chegados dos Estados Unidos, que estavam interessados no estudo da população afro-baiana e de cuja análise ele se apresentava como o guardião oficial herdeiro e continuador de uma tradição local cujo patrono era Nina Rodrigues. 15 O artigo de Arthur Ramos se originara de uma avaliação sua sobre o relatório de Landes (intitulado The Ethos of the Negro in the New World ) encomendado pela Carnegie Foundation (que financiava a pesquisa coordenada por Gunnar Myrdal) e que ele recebeu para comentar em Janeiro de 1940, a pedido de Guy B. Johnson, um dos assessores de Myrdal. Diz Ramos: O resultado desses comentários críticos que enviei ao Dr. Guy foi a rejeição, pela Comissão da Carnegie, do trabalho encomendado à Dra. Landes. Suas observações escreveu-me poucos meses depois o Dr. Johnson vieram confirmar as minhas desconfianças relativamente à exatidão das observações feitas pela Dra. Landes. No que concerne a parte do nosso estudo sobre o Negro na América, estamos grandemente desapontados com o manuscrito da Dra. Landes, e não temos a intenção de aproveitá-lo. Na mesma carta, previne-me o Dr. Johnson sobre a possibilidade da A. publicar um ou mais artigos baseados em suas pesquisas no Brasil. Quando ela o fizer recomendou-me em conclusão espero que o Sr. ou outros estudiosos brasileiros surjam com críticas num esforço para corrigir as inexatidões e negligências das suas observações. 16 No artigo no qual rememora sua pesquisa de campo no Brasil, Ruth Landes 15 Já tinha escrito boa parte deste texto quando recebi o trabalho de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (1999) sobre Arthur Ramos e cópia da correspondência entre Landes e Herskovits e entre Herskovits e Ramos, que me foi gentilmente enviada por Kevin Yelvington. Os documentos de Ramos estão na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e a documentação de Herskovits está na Melville J. Herskovits Library of African Studies, na Northwestern University, Evanston, Illinois. Ambos merecem minha profunda gratidão por sua generosidade em compartilhar documentos e idéias. Tal documentação ajudou a precisar alguns pontos da questão, como a data da famosa carta que Ramos e Herskovits teriam escrito a Gunnar Myrdal sobre Landes. A correspondência entre Ramos e Herskovits é volumosa: 50 cartas trocadas entre 1935 e 1941 e diz respeito basicamente à visita de Ramos aos Estados Unidos. Na carta de 14 de Março de 1940, está anexada cópia da avaliação de Ramos sobre o trabalho de Landes, enviada à Carnegie Foundation. 16 Ver a íntegra de seu comentário que, com exceção dos trechos específicos sobre o relatório, é o mesmo publicado em 1942, em Barros 1999: 139-150. O texto, com o título O ethos do negro no Novo Mundo, tem a data de 30 de Junho de 1941, encimada pela referência à Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia. A sociedade foi fundada em 7 de Junho de 1941 e na cuidadosa recuperação feita por Azeredo dos trabalhos lá apresentados não há nenhum que se assemelhe a este. A carta resposta que Ramos cita é de Maio de 1940, o que permite situar sua primeira apreciação do relatório de Landes entre Janeiro e Maio desse ano. Sobre o autor da carta a Ramos, Jackson comenta que Guy B. Johnson, um sociólogo branco do sul, fizera eco às críticas a Herskovits, dizendo numa resenha que um enorme problema prático era como impedir que este livro [The Myth of the Negro Past] se transformasse em argumento para aqueles que procuram novas justificativas para a segregação e o tratamento diferenciado dos negros (1942, citado em Jackson 1986: 121). Sobre as razões que levaram Myrdal a desistir de um estudo comparativo com outros países, e uma análise detalhada da preparação de An American Dilemma, ver Southern 1987. A colaboração de Ruth Landes, ou de Ramos, não é mencionada por ele, apesar do papel de destaque que Johnson recebe em seu relato. 243

Mariza Corrêa registra que Myrdal lhe mostrou, no final do ano de 1939, uma volumosa carta que Ramos e Herskovits lhe haviam escrito sobre ela, ridicularizando a obsessão deles a respeito de meu alegado erotismo e incompetência profissional (Landes 1986: 129). Uma carta de Landes enviada a Ramos em 27 de Dezembro de 1938 sugere que a crítica de Ramos e Herskovits deve ser posterior a essa data e que, certamente era anterior à publicação de seus artigos e de seu livro, isto é, que era contemporânea ao relatório feito por ela para a pesquisa coordenada por Myrdal. 17 Na carta, Landes informa a Ramos que ele, Édison Carneiro, M. Herskovits, R. Benedict, M. Mead, O. Klineberg e R. Linton receberiam seu relatório para comentar. 18 A carta é cordial, Landes anuncia seu próximo artigo sobre homossexualidade masculina, expressa saudades do Brasil e pergunta pelos conhecidos, inclusive pela esposa de Ramos, nada levando a supor que já tivesse visto a carta endereçada por Ramos e Herskovits a Myrdal, mencionada em seu artigo. 19 Não se sabe se Herskovits chegou a escrever um parecer sobre o Memorandum de Landes, mas uma carta dele a Ramos, de 1940, dá uma idéia de sua opinião sobre o trabalho dela: Prezado senhor Ramos, Muito obrigado por ter me enviado seus comentários ao texto da senhorita Landes. Tive a mesma impressão quando li seu relatório que tive ao ler suas cartas, isto é, que seu material deveria ser, para dizer o mínimo, objeto de um reestudo muito cuidadoso. Fico encantado com o fato de você ter escrito o que escreveu, já que tenho a impressão de que as pessoas encarregadas da Carnegie Inquiry precisam do julgamento de especialistas independentes, tais como você, para avaliar materiais deste tipo. Eles são receptivos às nossas avaliações, e precisam delas, já que o Dr. Myrdal, encarregado da pesquisa, e a maioria de seus associados, são economistas, estatísticos e sociólogos (no sentido que damos à palavra em nosso país), e tem pouca sensibilidade para os aspectos etnológicos da vida do Negro. Sinceramente seu, Melville J. Herskovits (Barros 1999: 108-109). 20 17 Barros (1999: 107) transcreve três cartas de Landes a Ramos, encontradas em seu arquivo na Biblioteca Nacional duas de Salvador, de Setembro e Outubro de 1938 e uma de Nova Iorque, de Dezembro de 1939 observando que sua existência desmente a afirmação de Ramos de que perdera o contato com Ruth Landes depois de tê-la conhecido no Rio de Janeiro. 18 A carta mostra também a abrangência inicialmente esperada por Myrdal de seus colaboradores e o pouco tempo que lhes era dado para cumprir seu compromisso (cf. Southern 1987). Diz Landes: [A Carnegie] Quis que eu escrevesse sobre The Ethos of the Negro in the New World, querendo dizer América do Sul, as Ilhas e Harlem. Tudo dentro de 4 meses. Naturalmente era preciso fazer referências também à África e todos os EUA. 19 Sally Cole (1995: 184) observa que não encontrou a carta, também não encontrada pelos outros pesquisadores que trabalharam com a questão, o que me levou a supor que Ruth Landes se referia, de fato, aos pareceres de Ramos e Herskovits sobre seu relatório. Na correspondência com Landes, no entanto, Herskovits diz explicitamente, numa carta de Janeiro de 1940, que só tivera tempo de folheá-lo e embora diga que o material é útil, fala em interpretações equivocadas, por falta de material comparativo africano. A correspondência entre ambos compreende nove cartas e se encerra em Agosto de 1940, com um breve agradecimento dele a ela pela cópia do artigo. Mark Healey consultou o relatório de Landes e o cita, pelo título, como um Research Memorandum, Columbia University, 1940. 20 Em Setembro de 1941, Herskovits fez uma conferência na Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, intitulada O Negro no Novo Mundo como um tema para pesquisa científica, transcrita, segundo Azeredo (1986: 131) na Revista 244

O Mistério dos Orixás e das Bonecas Tanto em seu Memorandum, como nos dois artigos publicados, ao tratar de explicar a preponderância de homossexuais nos rituais menos canônicos da Bahia isto é, nos candomblés de caboclo, por oposição aos cultos nagô não é apenas do sexo feminino que Landes está falando, mas de um princípio de feminilidade, requisito necessário para incorporar os deuses. De fato, a predominância de pais num sub-grupo do universo religioso no qual as mães predominavam, colocava um impasse para os dados de sua pesquisa e não é de admirar assim que, antes de escrever A Cidade das Mulheres, ela tenha tido que dar conta da cidadela dos homens. Segundo dados de Édison Carneiro, citados por ela, no subgrupo nagô havia vinte mães e apenas três pais; no subgrupo caboclo, a proporção se invertia: dez mães para 34 pais de santo. 21 Landes não estava, é claro, tratando da questão de gênero, ainda que possamos ler essa questão na sua abordagem: no contexto da época, era das relações entre os sexos que se tratava. Assim, no seu texto, os homossexuais desejam ser mulheres, seu estilo feminino é estereotipado dengoso : são, enfim, uma anomalia sexual. A tipologia assim construída está em perfeita consonância com a definição dos rituais nagô como os mais puros, e dos rituais de caboclo como produtos híbridos, sobre o que parecia haver a concordância da maioria dos pesquisadores das religiões africanas na época, à exceção do fato de que, ao colocar as mulheres no topo e os homens na base, Landes invertia a classificação simbólica da relação masculino/feminino da sociedade na qual esses cultos se inscreviam. Assim, o princípio feminino ainda que parte dele corporificado em homens é que dominaria o conjunto do campo das religiões afro-brasileiras na Bahia, com a marginalização do princípio masculino. 22 Foi contra essa inversão que Arthur Ramos se manifestou em sua do Brasil (41), Novembro de 1941. No mesmo dia, Ramos discorreu sobre O problema da raça no mundo moderno, também publicada na Revista do Brasil (40), Outubro de 1941. Tanto quanto sei, o conteúdo dessas e de outras conferências feitas na SBAE, e publicadas em jornais e revistas cariocas, ainda não foi analisado. 21 Oito anos depois, o artigo de Carneiro traduzido por Landes aparece, em inglês, como apêndice da primeira edição de Candomblés da Bahia (Carneiro 1948), com a observação de que fora ligeiramente alterado e com supressão de alguns trechos, na maior parte para atualizá-lo. Nesta edição, o número total dos candomblés permanece o mesmo (67), mas a sua distribuição muda. Apesar de enfatizar a importância superior das mulheres no candomblé, Carneiro observa que havia 37 pais e 30 mães no universo estudado, concluindo que hoje o número de pais e mães é igual. O artigo deixou de ser incluído nas edições subsequentes do livro. 22 Não vem ao caso aqui discutir a fundamentação empírica de Ruth Landes, trilha que outros analistas já percorreram (ver, por exemplo, Cole 1994). Mas parece interessante observar que desde a época de Nina Rodrigues as mães de santo tinham preponderância nos textos sobre os cultos. Numa passagem de sua descrição deles, Nina Rodrigues começa por referir-se aos negros e continua, até o fim do parágrafo, falando nelas, sem transição (Rodrigues 1935: 110, citado na íntegra em Corrêa 1998: 149). O mesmo parece poder aplicar-se a vários trechos da análise de Roger Bastide (1971), que, não obstante seu elogio ambíguo ao trabalho de Ruth Landes, prefere manter distância do debate sobre a predominância de homens ou mulheres nos cultos baianos. No início de seu trabalho, no entanto, ao explorar as origens africanas desses cultos, ele diz claramente que: Nessas condições [número menor de escravas do que de escravos; ignorância da paternidade devido à falta de uniões estáveis], mesmo depois da obrigatoriedade do casamento, a ligação orixá-linhagem masculina estava definitivamente rompida (Bastide 1971: 89, ênfase adicional). 245

Mariza Corrêa crítica ao trabalho de Landes: deixando de lado a retórica inicial do texto no qual tentava desqualificar de antemão a pesquisa que ia discutir, o ponto principal dele é repor a classificação no seu lugar. 23 Na sua crítica, Ramos parece, de fato, mais preocupado com a feminização do negro do que com a feminização dos cultos. Baseando-se em Herskovits, para a África, e no seu próprio trabalho, para a Bahia, exclama: É o homem que domina a cena (Ramos 1942: 189). Citando Édison Carneiro como um de seus colaboradores, refere o livro dele sobre os negros bantos, mas insiste em que os casos de homossexualidade lá citados são desvios sexuais individuais. 24 Ramos não menciona a distinção nagô/caboclo que estava na base da análise de Landes e o que é interessante é que em sua crítica chama a atenção para o fato de que tudo se passava como se os homens quisessem imitar as sacerdotizas negras, para gozarem das suas prerrogativas (Ramos 1942: 192), parecendo explicitar que era a mimetização das mães, feita pelos pais, o principal ponto de sua recusa à análise de Landes. 25 A inversão da relação entre o princípio masculino e o princípio feminino operada no livro de Landes, recobre, assim, uma série de outras inversões mais sutis, parte dessa história como a ameaça que poderia representar o aparecimento de uma pesquisadora cujo trabalho parecia estar mais em consonância com o do pai dos estudos das relações raciais do que 23 A desqualificação baseava-se tanto na afirmação de que Landes viera ao Brasil à procura de tribos negras, conforme noticiado por um jornal carioca quando de sua chegada, quanto em insinuações sobre seu comportamento no campo: E eram as mais estapafúrdias as suas idéias sobre o método de estudo da vida sexual dos Negros. Esse método era tão pouco científico que não me será possível dizer em que consistia (1942: 184). 24 Numa carta em que tentava me explicar a razão da hostilidade de Ramos, diz Landes: O professor Luiz da Costa Pinto me disse que Ramos que tinha sido seu professor ficou furioso por eu ter escrito sobre e descoberto os pais de santo homossexuais (Carta de 6 de Abril de 1986). Carneiro também menciona que, tão logo leu o artigo, Ramos telefonou para Áydano do Couto Ferraz na Bahia, o qual, por delicadeza, concordou com ele, dizendo-lhe que nem todos os pais de santo eram homossexuais (...). A mim, que já residia no Rio de Janeiro, Arthur Ramos nada perguntou, nem disse (Carneiro 1964: 226). Carneiro repete o que Landes disse na carta que o artigo de Ramos havia sido rejeitado pela revista Sociologia, segundo ela, graças à intervenção de Herbert Baldus. O editor da revista na época era Emilio Willems. Barros (1999: 109) transcreve o trecho de uma carta dele a Ramos, datada de Outubro de 1941, na qual ele classifica de esplêndida a crítica ao Memorandum, mas sugere algumas modificações. Segundo Barros: A resposta de Ramos é que mantém o texto como foi redigido, assumindo a responsabilidade da decisão. 25 M. Taussig define a faculdade mimética como a natureza que a cultura usa para criar uma segunda natureza, a faculdade de copiar, imitar, fazer modelos, explorar a diferença, ceder ao e tornar-se Outro (Taussig 1993: xiii). Analisando o contato colonial e várias situações pós-coloniais, ele mostra como o dominado, definido como Outro negros, mestiços, mulheres mimetiza o dominante, que antes o mimetizava, pondo assim em xeque tanto a dominação como a noção de alteridade. Em todos os exemplos, o negro é o grau zero da alteridade. Falando sobre os Cuna, com suas figurinhas mágicas que representavam brancos, mas cuja substância interior era nativa, Taussig pergunta porque era necessário esculpir formas exteriormente européias, ou não-índias? Uma dessas figuras era assimilada ao general MacArthur. Comparar também com a assimilação feita na Bahia entre Xangô e Roosevelt ou Mussolini (Landes 1967: 226). Ver também a menção à boneca branca feita por Luzia e às de mãe Flaviana (Landes 1967: 76; 217). Se a mimetização dos dominados pelos dominantes tinha sido o escândalo da obra de Nina Rodrigues ( Na Bahia, todas as classes estão aptas a se tornarem negras ), sua inversão, na análise de Ruth Landes, passará quase desapercebida. 26 Seria preciso reler com mais cuidado os trabalhos psicanalíticos de A. Ramos, particularmente O Negro Brasileiro (1934), para acompanhar sua requalificação das análises de Nina Rodrigues sobre a psicologia do negro particularmente da ênfase dele na análise do papel da histeria na possessão. 246

O Mistério dos Orixás e das Bonecas o de seu autoproclamado discípulo. 26 E expressa, também, outra inversão importante, tanto nas relações sociais mais amplas da sociedade brasileira, como nas relações internas ao campo de estudos que se estava constituindo na época. Arthur Ramos tinha iniciado suas pesquisas a respeito da situação do negro no país como médico psicanalista e depois derivara para as ciências sociais. Como consequência, seus primeiros estudos empíricos são estudos psicológicos e seus estudos subsequentes são estudos históricos, nos quais compila estudos anteriores ou realizados por outros. O trabalho de campo era um componente pequeno na sua bagagem de pesquisa. 27 Por sua situação privilegiada no Rio de Janeiro, no interior de uma rede de relações que atava o trabalho intelectual ao trabalho político, obteve uma posição também privilegiada como interlocutor de pesquisadores estrangeiros que para aqui vinham, seus livros foram traduzidos para o inglês, depois para o francês, e ele terminou sua carreira como alto funcionário da UNESCO. Édison Carneiro tinha iniciado sua carreira como jornalista e escritor free-lancer, devendo a Arthur Ramos a publicação de suas primeiras obras a respeito da situação do negro na Bahia. Nunca obteve qualquer posição na Universidade, seu trabalho mais importante tendo se desenrolado no âmbito dos grupos que estudavam o folclore do país. A correspondência trocada entre ambos, pouco antes de E. Carneiro se transferir para o Rio de Janeiro, mostra uma assimetria na relação: o jovem mulato baiano procurando o apoio do professor de medicina, branco, já consagrado. Sua produção, no entanto, parecia ser importante para o professor, na medida em que trazia dados etnográficos de um cenário local do qual este estava afastado, mantendo também acesa a atuação política regional e, nela, a importância do nome de Ramos para essa atuação. Em duas ocasiões essa assimetria tornou-se patente: quando Ramos criticou, numa resenha, um livro publicado pelo pai de Édison Carneiro e quando Carneiro pretendeu ocupar o lugar que Arthur Ramos deixara vago na Faculdade Nacional de Filosofia: tanto no caso dele como no de Heloisa, também candidata à vaga, a pretensão foi recusada pela 27 Na mesma carta citada acima, diz Landes: A razão genérica dele (Ramos) que D. Heloisa e Édison Carneiro me repetiram, era que ele, Ramos, nunca ia ao campo para observar ou conversar, mas chamava os informantes ao seu consultório. Como Édison escreveu, e todo mundo inclusive a polícia! sabia, eu estava sempre em campo, uma jovem mulher de menos de 30 anos e conspicuamente loura. Ramos observava, em 1934, que ele e Hosanah de Oliveira, professor da faculdade de Medicina, se submeteram, para fins de pesquisa científica, às cerimônias de iniciação dos ogans no terreiro do Gantois, cerimônia conduzida pela mãe de santo (Ramos 1934: 51). 28 Ver Oliveira e Lima 1987: 31; Azeredo 1986: 219. A resenha está transcrita, na íntegra, em Barros (1999: 132-135) e nela Ramos afirma ter a autorização de amigos e parentes de Souza Carneiro para denunciar aos intelectuais, e especialmente aos estudiosos dos problemas folclóricos, ameríndios e negro-brasileiros, o verdadeiro valor de um livro, que é uma criação mitológica individual. Ao citar os que honesta e pacientemente vinham estudando o problema negro, Ramos inclui o nome de Édison Carneiro. Apesar disso, talvez a classificação do pai como um mitomaníaco, numa resenha publicada, fosse mais uma razão para Carneiro mencionar o orgulho e a vaidade de Ramos mais tarde sua viúva contou a Oliveira e Lima que a resenha quase levou ao rompimento das relações entre ambos na época. 247

Mariza Corrêa Faculdade. 28 Tal assimetria parecia ameaçada pela parceria intelectual e amorosa estabelecida entre Édison Carneiro e Ruth Landes. A despeito de ser mulher, Landes era uma pesquisadora norte-americana que contava com o apoio da Universidade de Columbia e que, retornando a Nova Iorque, estaria fora do círculo de relações nos quais a palavra de Arthur Ramos tinha peso. No Brasil, sua primeira fonte de apoio tinha sido Dona Heloisa, diretora do Museu Nacional, interlocutora da Universidade de Columbia na promoção da vinda de pesquisadores americanos ao país e que se constituía no primeiro pólo do desenvolvimento da antropologia no país o segundo sendo a cadeira de Antropologia e Etnologia da Faculdade Nacional de Filosofia, criada em 1939, sob a responsabilidade de Ramos. Vale a pena observar que, sob a orientação de Dona Heloisa, tanto as pesquisas feitas por pesquisadores nacionais, quanto aquelas levadas a efeito pelos pesquisadores que vinham de Columbia, eram pesquisas que diziam respeito às sociedades indígenas a pesquisa de Ruth Landes tendo sido uma exceção. Por outro lado, a maioria das pesquisas ligadas à cadeira de Arthur Ramos eram pesquisas a respeito das relações raciais. 29 O fato de que cada um deles tenha tentado a sorte no terreno do outro parece mostrar que ambos concordavam em que esses eram os dois aspectos mais importantes da antropologia no país, na época os estudos indígenas e os estudos sobre o negro. 30 O campo estava, assim, disposto para o conflito entre Ruth Landes e Arthur Ramos: o que Édison Carneiro chamou de orgulho e vaidade de Ramos ao comentar seu artigo de 1942 era, de fato, uma ferrenha defesa dos limites de fronteiras sociais, disciplinares e de um campo de estudos específico. 31 Quanto a Melville Herskovits, ele representava, no campo norte- -americano, o que Arthur Ramos representava no campo brasileiro do estudo das relações raciais e, como vimos, estava pessoalmente interessado na 29 Ver a lista de pesquisas orientadas por Ramos em Barros (1999: 61 e seguintes), onde são citadas pelo menos duas pesquisas sobre populações primitivas. 30 A tese que Heloisa Alberto Torres preparou e que, afinal, não foi apresentada para o concurso da cadeira que tinha sido de Arthur Ramos, em 1950, versava sobre Alguns Aspectos da Indumentária da Crioula Baiana. A tese de Arthur Ramos, escrita para a obtenção do título de doutor e habilitação para a cátedra de Antropologia e Etnologia, em 1946, tinha por título A Organização Dual entre os Índios Brasileiros. Dona Heloisa fazia parte da banca que considerou modesta a sua contribuição (Azeredo 1986: 82; 219). 31 Essa disputa fica nítida na correspondência trocada entre Heloisa e Ramos antes da viagem deste a Paris, numa carta sua na qual ele deixa claro que a sua definição de antropologia era diferente da definição que atribuía a Heloisa. Ver Azeredo 1986. 32 As disputas das quais Herskovits participou no cenário americano mostram sua intenção de alijar do campo os adversários de suas teorias: W. E. B. Du Bois, Franklin Frazier, Robert Park e Lloyd Warner. Ver Walter Jackson (1986), que, no entanto, não menciona Ruth Landes. No contexto da crítica de Herskovits ao livro de Landes, é interessante observar que o casal Melville e Frances Herskovits tinha feito um popular account sobre sua experiência no Suriname Rebel Destiny (1934) muito semelhante ao relato de A Cidade das Mulheres, aspecto que ele louva em sua resenha. 248

O Mistério dos Orixás e das Bonecas orientação da pesquisa coordenada por Gunnar Myrdal. 32 A oposição de Landes à posição de Herskovits é paradigmática ao passo que ele lutava para impor sua visão sobre as sobrevivências africanas nas comunidades de negros americanos, Landes mostrava em seu livro que as relações sociais baianas eram uma adaptação local de tais tradições, ponto defendido também por Donald Pierson. 33 O debate de Herskovits com Frazier, aliás o único pesquisador norte-americano negro a ter feito parte do grupo que veio ao Brasil na época (e, não por acaso, o único dos pesquisadores sobre a situação do negro brasileiro que não se tornou ogã de nenhum terreiro na Bahia), já sugeria essa separação de perspectivas. Sugeria também que a disputa em andamento no cenário norte-americano estendia-se ao Brasil: ao escrever The Negro Family in Bahia, Brazil, Frazier (1942) citava os estudiosos brasileiros canônicos (Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Édison Carneiro) mas dizia que apenas dois norte-americanos haviam contribuído para esses estudos: Donald Pierson e Ruth Landes. Recolocando o ponto principal da pesquisa de Landes (ao afirmar que A vasta maioria das sacerdotisas Nagô são mulheres porque, conforme a tradição, apenas elas são elegíveis para prestar serviço às divindades africanas ), ele reforça também outro ponto da pesquisa dela: O candomblé, no entanto, não é apenas um centro de culto e de festas religiosas; é também o centro da vida social da vizinhança na qual está localizado (Frazier 1942: 472). Infelizmente, esta linha de análise não foi desenvolvida por nenhum dos pesquisadores posteriores, que preferiram se deter na influência ou não de traços 33 Robert Park orientara o trabalho de D. Pierson e fora também mentor de um estágio de Ruth Landes na Universidade de Fisk, antes de sua vinda ao Brasil. Na sua correspondência com Arthur Ramos, Donald Pierson é frequentemente crítico do ponto de vista de Herskovits e favorável ao de Frazier. Numa carta de 24 de Novembro de 1937, por exemplo, comentando o livro de Ramos As Culturas Negras no Novo Mundo (Ramos 1937a), observa a diferença entre a Bahia, onde o ritual de candomblé segue uma forma definida, fixa, cuja origem é sem dúvida africana, e o sul dos Estados Unidos, onde o escravo negro das plantations tinha previamente perdido todas as formas culturais que tinha na África, e acrescenta: Não desconheço o fato de que um antropólogo muito capaz, o Dr. Herskovits, tem outra posição. Mas minha posição é baseada na pesquisa de primeira mão e detalhada, do sul, feita por observadores tão sagazes desse problema como o Dr. Robert E. Park. Em outra carta, de 10 de Agosto de 1940, inclui trechos do livro de Frazier (The Negro Family in the United States), que mandara copiar para Ramos com a confiante expectativa de que esses dados, especialmente as notas, seriam de muito interesse. Há todo um parágrafo dedicado a elogiar o livro e sua metodologia. Nesta carta, Pierson também anuncia a vinda de Frazier ao Brasil, no mesmo período em que Ramos estaria nos Estados Unidos. Pierson lembrará, em outras cartas, nomes de pessoas e instituições que Ramos deveria visitar e certamente não terá gostado da carta em que Ramos anuncia que estava indo para a Northwestern University, a convite de Herskovits a quem alude mais uma vez nessa correspondência, lamentando que Ramos não estivesse no Brasil quando da visita de Frazier, já que o interesse dele, e de outros pesquisadores que recomenda, não está limitado, como no caso de outros de nossos conterrâneos, a uma mera catalogação de sobrevivências culturais africanas e à procura de sua origem e difusão (carta de 11 de Setembro de 1940). Na correspondência, mantida entre 1935 e 1949, nenhum dos dois missivistas comenta a opinião do outro sobre Herskovits ou Frazier (Cartas no Acêrvo Donald Pierson/Projeto História da Antropologia no Brasil/Unicamp). 34 Não posso acompanhar aqui todo o debate sobre a família negra, suscitado por essa discussão entre Frazier e Herskovits: para uma visão mais completa, ver Robert Slenes (1999). Ver também Maio (1999), sobre a adesão obtida por Herskovits de René Ribeiro e Fry (1982), sobre a semelhança entre a análise deste pesquisador e a de Landes. 249

Mariza Corrêa africanos na cultura familiar dos negros brasileiros. 34 Em seu comentário, publicado no número seguinte da revista, Herskovits não apenas discorda da posição geral de Frazier num tom, aliás, em tudo semelhante ao da resenha que fez poucos anos depois do livro de Landes, aí também enfatizando as falhas metodológicas, isto é, a ausência de conhecimento sobre as origens africanas da pesquisa como explicita que estivera na Bahia no ano anterior e pôde assim identificar uma das personagens mencionada por Frazier, uma moça órfã que vivia com primos. O exemplo escolhido torna-se, então, o caso do debate. Diz Herskovits: Numa cidade do tamanho da Bahia, não é difícil reconhecer descrições de indivíduos, ainda que eles sejam tratados anonimamente. [...] Se existe outra família na Bahia que, superficialmente, seja mais aculturada à maneira européia de vida e, ao mesmo tempo, mais devotada às práticas africanas de culto, seria difícil encontrá-la (Herskovits 1943: 401). 35 E prossegue, acrescentando dados às informações de Frazier que mostrariam a importância das sobrevivências africanas no caso da moça. Em sua resposta, começando por dizer que estava pouco preocupado com a existência de sobrevivências africanas, nos Estados Unidos ou no Brasil, Frazier retoma o exemplo da moça: O professor Herskovits acredita ter identificado a moça cuja genealogia apresentei em meu artigo e contradiz minha afirmação de que ela conhecia apenas algumas palavras africanas, que havia aprendido no candomblé. Depois de voltar às minhas notas, descobri que ele não identificara a moça, embora eu tenha registro da moça que ele menciona (Frazier 1943: 404). E continua, depois de citar o parágrafo acima sobre a aculturação superficial da família, contradizendo a descrição de Herskovits: Visitei essa família quase todos os dias e vim a conhecer seus integrantes muito bem. Sabia a respeito dos altares que eram cuidadosamente escondidos dos visitantes. Sabia também que a esposa, que tem sangue misto, foi originalmente possuída por um deus indígena e que as pessoas diziam que ela era louca; mas que seu marido, quando a convidou a viver maritalmente com ele, a convenceu de que havia sido um deus africano [que a possuíra]. Além disso, seu marido, que é negro e nada sabe sobre seus pais, não recebeu seu conhecimento sobre a tradição e as habilidades africanas dos pais. Esses e outros fatos que citei foram conferidos com os dados da Dra. Ruth Landes, que passou mais de um ano no Brasil e que tinha um íntimo conhecimento dessa família (Frazier 1943: 404). 36 35 O Rejoinder de Frazier saiu no mesmo número da American Sociological Review e nele ele volta a citar os artigos de Landes e Carneiro, que haviam saído em 1940 (cf. Frazier 1943). 36 Frazier não perdeu a oportunidade de dizer também: Não deixa de ser interessante que não haja discussão a respeito de sobrevivências africanas no candomblé. No caso do candomblé é fácil observar e registrar sobrevivências africanas, ao passo que as afirmações do professor Herskovits a respeito de sobrevivências africanas na família são basicamente inferências baseadas em especulação (Frazier 1943: 404). 250

O Mistério dos Orixás e das Bonecas Citei longamente esse exemplo porque creio que, além de evidenciar a disputa em torno de objetos de pesquisa a julgar pela historieta, eram poucos e bem conhecidos ele mostra, não só como o caso brasileiro começava a ser crucial para a disputa de orientações teóricas que se travava no campo norte-americano, mas também quais eram as afinidades de Landes nesse campo. Mostra também como as figuras femininas eram um objeto privilegiado nessa discussão. Creio que essas afinidades, explicitadas também por seus casos de amor com negros, primeiro na Universidade de Fisk, depois na Bahia, merecem mais atenção como parte da explicação de seu longo período de desemprego do que o ataque por parte de Ramos e Herskovits. 37 Isto é, que Landes foi racializada, por assim dizer, no contexto da antropologia norte-americana da época, e que sua trajetória se aproxima, assim, muito mais da de Zora Neale Hurston do que da de suas outras colegas brancas, herdeiras da tradição boasiana. 38 Que os ataques, velados ou não, de Ramos e Herskovits contribuíram para isso, não resta dúvida e Landes era agudamente consciente disso mas o contexto norte- -americano dessa história não pode ser minimizado. 39 Nesse contexto é interessante lembrar que Hurston, uma aluna negra de Boas, que depois se tornou novelista, foi assistente de pesquisa de Herskovits, que dizia sobre ela numa carta de 1927, depois de vê-la cantando spirituals: [sua] maneira de falar, suas expressões em suma, seu comportamento motor [eram] o que se poderia chamar tipicamente negros. [Esses movimentos tinham se] mantido como um padrão de comportamento aprendido através da imitação e do exemplo com os escravos africanos originalmente trazidos para cá (citado em Jackson 1986: 107). Mas a posição de Herskovits no campo de estudos afro-americanos, apesar de influente, não era dominante: a Carnegie Corporation chegou a considerar seu nome para fazer a pesquisa que redundaria em The American Dilemma; com a escolha de Myrdal para chefiar a equipe, a ele foi assignada a tarefa de escrever um relatório a respeito da influência africana sobre os negros americanos que resultou em The Myth of the Negro Past (1941). Ao fazer a 37 Ver, por exemplo, o verbete sobre Landes, no dicionário biográfico editado por Ute Gacs e outras (1989), no qual se atribui unicamente à perseguição de Ramos-Herskovits o fato de Landes ter sido posta na lista negra (sic) durante vinte anos. 38 Sobre Hurston, ver Graciela Hernández (1995). 39 Numa carta que me escreveu, quase cinquenta anos depois de sua pesquisa no Brasil, Landes assume com clareza o papel simbólico da negra dizendo sobre esse ataque: Their calumnies were symbolic rape on me (Carta de 6 de Abril de 1986). Sobre o contexto hostil em torno da discussão da questão racial pela UNESCO, logo após a Segunda Guerra, ver Stolcke (1995). Vale lembrar que Alva Myrdal, esposa de Gunnar Myrdal e depois chefe da Divisão de Ciências Sociais da UNESCO, teve seu visto de entrada nos Estado Unidos negado em 1953, durante o auge daquela discussão e no contexto do macartismo que se anunciava (Métraux 1978: 497). 251

Mariza Corrêa resenha deste livro, Frazier se perguntava se, [ao dizer que] o problema do negro é psicológico que padrões africanos de pensar impedem a aculturação completa do negro tanto quanto econômico e sociológico, não está ele dizendo que existem barreiras ainda mais fundamentais entre os brancos e os negros do que as que são geralmente reconhecidas? (Frazier, citado em Jackson 1986: 119). Esta crítica poderia ter sido feita a Arthur Ramos em 1934, no auge de suas análises freudianas. A recepção ao livro, por boa parte dos estudiosos da questão, parece ter deixado Herskovits numa posição isolada e, quando Arthur Ramos começou a planejar o que seria a influente pesquisa da UNESCO sobre relações raciais no Brasil, foi Frazier, e não Herskovits, o convidado para a primeira reunião preparatória, em 1949, o que talvez sinalize a mudança de rumo na orientação de Ramos. 40 Fosse como fosse, a reviravolta na análise das religiões de origem africana tinha começado: ainda que seu livro tenha sido posterior ao fenômeno Carmen Miranda, do qual, aliás, ela foi testemunha, Ruth Landes foi a primeira pesquisadora a, explicitamente, feminizar os cultos afro-brasileiros. 41 A baiana, é claro, não foi criação sua, mas a revolta que essa explicitação causou em alguns círculos brasileiros sugere que, antes de se transformar em símbolo, ela era uma realidade intratável. Quão intratável será demonstrado através da expulsão de sua representação, inanimada, no palco de uma feira internacional, e de sua aceitação, animada, no palco de outra: negra no primeiro caso, branca no segundo. Quando o livro de Landes foi finalmente publicado no Brasil, mais de vinte anos depois da pesquisa, a figura da capa era uma baiana já estilizada e inteiramente incorporada à iconografia nacional a escolha do capista parecia óbvia, obviedade da qual só escapamos recorrendo à história de sua constituição em símbolo (figura 4). O mistério dos orixás e das bonecas 40 Sobre as pesquisas financiadas pela UNESCO no Brasil, ver Verena Stolcke (1995) e Marcos Chor Maio (1997): a análise de ambos mostra que, mais do que estabelecer o roteiro dessas pesquisas, o legado de Arthur Ramos foi pôr em marcha a célebre discussão que redundou nas disputadas declarações da UNESCO sobre raça (UNESCO 1973). Verena Stolcke segue passo a passo os interesses em disputa no grupo de cientistas encarregados da missão de definir o racismo frente à ciência, título da declaração final, e os diários de A. Métraux (1978) mostram as atribulações do encarregado de levá-la a cabo. 41 Numa das poucas cartas de Landes que estão no arquivo de Heloisa, há uma de Novembro de 1939, na qual ela diz: Fui outra vez à exibição brasileira, alguns dias antes de fechar a Feira, e gostei melhor. Ela volta no outro ano. A Feira é uma glória. Quer saber de Carmen Miranda, sem dúvida. Eu a vi no espetáculo (musical comedy) The streets of Paris. Ela sai no palco pelo fim, cantando O que é que a baiana tem e outras cantigas daquele gênero. É um grande desapontamento. Ela não canta como no Rio; muito depressa, sem expressão o espírito está abafado. Mas no rádio ela é boa; e agora vai cantar num grande salão de jantar, The Sert Room. Dizem que ela está ficando grossa. Ela mora num arranha-céu muito elegante, pelo começo de Central Park, eu acho (Arquivo de Heloisa na Casa de Cultura Heloisa Alberto Torres, Itaboraí, Niterói). 252