Na mesma direção, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1999) indicam no inciso III do artigo 3º que:



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Transcrição:

CUIDAR E EDUCAR X ENSINO NA EDUCAÇÃO INFANTIL Marcia Regina Goulart da Silva Stemmer NDI/UFSC 1 Juliane Mendes Rosa La Banca NDI/UFSC Thaisa Neiverth NDI/UFSC Se a aparência e a essência das coisas coincidissem a ciência seria desnecessária. KARL MARX 2 INTRODUÇÃO Neste artigo buscamos levantar algumas questões relativas ao significado do binômio educar e cuidar e suas consequências para a prática docente. Nossas inquietações relativas a esta temática vão além do que comumente se concebe como um indicativo fundamental para quem trabalha com crianças entre 0 e 5 anos, qual seja, o de que educar e cuidar são indissociáveis e são função inconteste da Educação Infantil. Em recente pesquisa ainda em nível exploratório, observamos que estes conceitos são recorrentes e encontram-se presentes na maioria dos trabalhos apresentados nas duas últimas décadas nas reuniões do Grupo de Trabalho 7 (GT7) que trata da educação das crianças de 0 a 6 anos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Da mesma forma, diversas publicações do Ministério da Educação contemplam tais conceitos. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil assevera que: Nas últimas décadas, os debates em nível nacional e internacional apontam para a necessidade de que as instituições de educação infantil incorporem de maneira integrada as funções de educar e cuidar, não mais diferenciando nem hierarquizando os profissionais e instituições que atuam com as crianças pequenas e/ou aqueles que trabalham com as maiores. (BRASIL, 1998, p. 23) (grifo nosso) Na mesma direção, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1999) indicam no inciso III do artigo 3º que: 1 Núcleo de Desenvolvimento Infantil Universidade Federal de Santa Catarina 2 Marx (1983, p. 271). Ver também: Marx (1978, p. 9) 1848

As instituições de Educação Infantil devem definir em suas propostas pedagógicas, práticas de educação e cuidados, que possibilitem a integração entre os aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivos/lingüísticos e sociais da criança, entendendo que ela é um ser completo, total e indivisível. (grifo nosso). Mais recentemente em 2009, no seu artigo 5º, as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2009b) reafirmam a educação e cuidado como função da Educação Infantil: A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social. (grifo nosso) Nossa hipótese é a de que os documentos oficiais expressam uma tendência que é, atualmente, hegemônica na área da educação infantil com consequências para as práticas pedagógicas que necessitam ser analisadas com maior profundidade. Nosso argumento é o de que esta tendência surge com a aparente tentativa de definir um papel ou uma função específica para a educação infantil e para os profissionais que atuam com esta faixa etária, visando, sobretudo superar uma dicotomia entre corpo e mente onde, a primeira vista, são separadas as dimensões emocionais, afetivas e fisiológicas das cognitivas. Surge também com o intuito de solucionar uma divisão bastante comum nas práticas pedagógicas cotidianas nas instituições de educação infantil: o professor se ocuparia das questões relativas ao aprendizado e a cognição e o auxiliar do cuidado com o corpo e a alimentação das crianças. Sem desconsiderar estas especificidades, questionamos o que se encontra subjacente a esta concepção, o que efetivamente se propõe como função da educação infantil e papel do professor quando se prioriza o binômio educar e cuidar. Foi durante a década de 1990, que o conceito de educar e cuidar surgiu no cenário da educação infantil brasileira e ganhou uma dimensão considerável na área vindo a exercer uma importante influência nos discursos relativos ao papel do professor e a função da educação infantil com consequências não menos importantes para práticas pedagógicas. Ao final da década de 1990, Cerisara (1999, p. 3) indagava em um artigo: Afinal, por que os educadores afirmam que as instituições de educação infantil têm por 1849

finalidade educar e cuidar de forma indissociável e complementar as crianças pequenas?. No artigo mencionado, a autora faz uma breve incursão na História da Educação Infantil ao responder a questão proposta e conclui que a insistência em manter os termos educar e cuidar relaciona-se ao percurso histórico das creches e préescolas no Brasil, pois quando se indaga sobre a função pedagógica da educação infantil, a resposta vai na direção da valorização das atividades ligadas ao ensino de alguma coisa, à transmissão de conhecimentos ; e que, muitas vezes, reproduzem ou antecipam as práticas condenadas pelas próprias escolas de ensino fundamental em que são valorizadas as atividades dirigidas, consideradas como pedagógicas (CERISARA, 1999, p. 16). A autora procurou fazer uma síntese das tendências que sustentam a importância de se manter os termos educar e cuidar para definir a função principal da educação infantil; seria uma forma de romper com a valorização das atividades ligadas ao ensino e a transmissão de conhecimentos, já que supostamente esta valorização poderia levar a práticas condenadas pelas próprias escolas. Poder-se-ia inferir então que o ensino e a transmissão de conhecimentos são práticas condenáveis per si e que a valorização do binômio educar e cuidar para a educação infantil apresentaria uma nova concepção teórico prática para este nível educacional. Tendo como panorama o quadro apresentado acima, nosso objetivo principal nesta investigação, que ainda se encontra em fase preliminar, é buscar e compreender os nexos causais que levaram a emergência destes conceitos. Por meio da averiguação de sua gênese visamos desnudar para além da aparência o real significado do binômio educar e cuidar e suas consequências para a prática docente e para a educação infantil. Consideramos importante esclarecer que a opção teórico/metodológica para análise nesta pesquisa fundamenta-se na ontologia marxiana. Como afirma Moraes (2000, p. 19) as questões de método sempre ocupam um lugar central e decisivo em uma investigação, e nesse sentido cumpre, ainda que de maneira bastante sintética, elucidar as razões da escolha. Partimos do pressuposto de que para ser possível uma crítica teórica relevante é fundamental defender uma ontologia que confira inteligibilidade ao conhecimento científico, e para tal, é condição sine qua non captar o movimento do real e reproduzi-lo 1850

no pensamento mediante categorias buscando transformar a realidade, já que se reputa este o objetivo principal da atividade de conhecimento. A ontologia marxiana supõe o reconhecimento de que o movimento e a organização da realidade social criam uma lógica própria, que lhe é imanente, entendendo, no entanto, que esta lógica é apenas a expressão mental de universais efetivos e não o pressuposto da realidade. Portanto, o objeto não é um construto, mas ao contrário, é o próprio objeto, pressuposto em sua existência real, que determina o caminho a ser seguido pelo sujeito do conhecimento. O conhecimento deve apreender a gênese e tendências de desenvolvimento do objeto, analisando suas contradições e possibilidades de superação. Apreender o objeto concreto significa responder, entre outras, as seguintes perguntas: que conjunto de relações o determina? Quais são suas contradições essenciais e suas tendências de desenvolvimento? Neste sentido, consideramos que esta perspectiva ontológica além de possibilitar uma correta apreensão do objeto e dos nexos causais que o orientam permite que se faça uma crítica explanatória e consequente. O argumento deste artigo esta dividido em duas seções, inicialmente tratamos dos conceitos educar e cuidar na produção acadêmica para depois adentrarmos na questão da supressão do ensino na educação infantil. Finalizamos com algumas considerações e alertamos para o fato de que esta é uma pesquisa em andamento o que implica em ponderações e indicativos preliminares. O BINÔMIO EDUCAR E CUIDAR NA PRODUÇÃO ACADÊMICA Desde a década de 1970, com mais ênfase na década de 1980, a educação infantil passou por um processo de expansão no Brasil. Concomitante a este processo houve o recrudescimento das discussões entre os profissionais, estudiosos e pesquisadores da área que reivindicavam, entre outras coisas, um compromisso mais efetivo do Estado no financiamento e gestão das creches e pré-escolas. Buscava-se também uma mudança no caráter das iniciativas voltadas para o atendimento da criança 1851

menor de 6 anos, que eram fortemente marcadas por uma proposta educacional de cunho assistencialista. A partir do ano de 1988, com a promulgação da Constituição (BRASIL, 1988), a educação infantil ganhou novos contornos legais e, [...] pela primeira vez, um texto constitucional define claramente como direito da criança de 0 a 6 anos de idade e dever do Estado, o atendimento em creche e pré-escola. (CAMPOS; ROSEMBERG; FERREIRA 1993, p.17-18). As determinações trazidas na Constituição de 1988 redefiniram aspectos importantes para o atendimento a crianças de 0 a 6 anos. Como afirmam as autoras, A subordinação do atendimento em creches e pré-escolas à área de Educação representa, pelo menos no nível do texto constitucional, um grande passo na direção da superação do caráter assistencialista predominante nos programas voltados para essa faixa etária. Ou seja, essa subordinação confere às creches e pré-escolas um inequívoco caráter educacional (idem, p.18). Com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN nº 9.394/96) em 1996, surgem implicações específicas para o atendimento das crianças de 0 a 6 anos, pois coloca a educação infantil como a primeira etapa da educação básica tendo como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (BRASIL, 1996) De forma concomitante e articulada com os aspectos legais trazidos pela Constituição e pela LDB, o debate instaurado buscava constituir uma concepção de educação infantil que superasse as existentes até então. Intensificaram-se neste período a participação da mulher no mercado de trabalho e a consequente necessidade de espaços institucionais para o atendimento a primeira infância. As discussões em nível pedagógico buscavam construir métodos e propostas específicas para esta faixa etária. Surge um conceito novo que engloba o binômio educar e cuidar como função precípua da primeira etapa da educação básica e de forma mais específica como papel do professor. A garantia do cuidado e educação de forma indissociável passa a ser um indicador de qualidade para a Educação Infantil. Segundo Nascimento e Santos (2010, p. 3) Fica explícito, todavia, o consenso de que educação e cuidado são aspectos necessários e indissociáveis quando se pensam serviços de qualidade destinados às crianças. 1852

Nesta direção, Dias e Macêdo (2006, p. 14) ao defender o cuidado e a educação como função da educação infantil, afirmam que, [...] é preciso ressaltar que a função da educação infantil é o cuidar e educar de forma integrada. As crianças de 0 a 6 anos precisam de ambas as ações: cuidado e educação que devem ser compreendidos como faces da mesma moeda de modo que elas possam viver plenamente a sua condição de infância, que implica em fantasia, em ludicidade, em criar cultura, em transgredir, em surpreender, em maravilhar sempre... Observamos que este binômio como atribuição docente surge como um dos diferenciais entre a função do professor de educação infantil e do ensino fundamental. Nas palavras de Rivero (2002, p. 13) percebe-se com clareza esta indicação, A ideia de cuidar e educar de modo indissociável, partilhando essa educação com a família, passa a ser discutida na formação como um direito das crianças e uma responsabilidade do professor de educação infantil, que tem uma atuação diferenciada do professor do ensino fundamental. Conforme já salientamos, um dos argumentos centrais da defesa do binômio educar e cuidar tem como foco o compromisso com o desenvolvimento integral da criança de forma que o trabalho do professor não opere uma cisão entre corpo e mente. Como afirma Machado (2010, p. 2), o trabalho precisa articular as ações de educação e cuidado, de forma que as situações apresentadas às crianças propiciem aprendizagens que possibilitem o desenvolvimento em todas as suas dimensões. Diante disso, observamos uma crescente preocupação e uma defesa da necessidade de que os professores reconfigurem seu papel como educadores diante de uma nova concepção de educação infantil. Borba e Spazziani (2007, p. 10) asseveram que as professoras devem buscar [...] seu papel como educadoras, frente à concepção de Educação Infantil que retrata o educando como um sujeito em fase de formação, com características peculiares e que necessita, desta forma, de educação e cuidados que favoreça sua constituição como pessoa completa e não apenas intelectual. No período entre 1994 e 1996 foram publicados diversos trabalhos encomendados pelo MEC, escritos por autores da área da Educação Infantil, e organizados em forma de cadernos 3. Esses cadernos explicitaram discussões que 3 São estes os títulos dos volumes publicados: Proposta Pedagógica e Currículo para a Educação Infantil: um Diagnóstico e a Construção de uma Metodologia de Análise (1996); Critérios para um Atendimento em Creches e Pré-escolas que Respeitem os Direitos Fundamentais das Crianças (1995); Educação 1853

vinham se configurando e constituindo na área há um longo tempo e expressaram objetivamente a produção teórica que vinha sendo construída. Segundo Palhares e Martinez (2000, p. 6) o caminho apontado pela equipe técnica responsável pela educação infantil no MEC em 1994 era o de buscar a superação da dicotomia da educação/assistência incentivando estratégias de articulação de diversos setores e instituições comprometidas com a Educação Infantil. Estes cadernos foram amplamente difundidos e tiveram uma importante repercussão na área. O exemplar dedicado a propor políticas de formação para o profissional de educação infantil anunciava a ideia de educação e cuidado de forma integrada, como uma perspectiva moderna como assevera Campos (1994, p. 35): A perspectiva é coerente com a moderna noção de "cuidado" que tem sido usada para incluir todas as atividades ligadas à proteção e apoio necessárias ao cotidiano de qualquer criança: alimentar, lavar, trocar, curar, proteger, consolar, enfim, "cuidar", todas fazendo parte integrante do que chamamos de "educar". Uma psicóloga norteamericana, Bettye Caldwell, cunhou a inspirada expressão "educare", que funde, no inglês, as palavras educar e cuidar. A partir de então os principais documentos orientadores e reguladores da educação infantil brasileira anunciam essa concepção. Encontramos essa defesa em diversas publicações, além das que já citamos anteriormente: Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998, p. 23), Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999, art. 3º) e Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2009b, art.5º), Brinquedos e Brincadeiras de Creche (BRASIL, 2012, p. 12), podemos encontrá-la nos Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2006a, Vol I, p. 17), Política Nacional de Educação Infantil (BRASIL, 2006b, p. 8), Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009a, p. 50). Não por acaso Rosemberg (2007, p. 3) afirma que a Educação Infantil trouxe, para a educação brasileira, a proposta de educar e cuidar. A autora levanta algumas indagações a partir dai: Seria o cuidar uma função tão digna quanto o educar? E como educar crianças tão pequenas? A creche é uma escola? A educadora da creche é ou não é professora? Como deve ser sua formação? Precisa de curso infantil no Brasil: Situação Atual (1994); Por uma Política de Formação do Profissional de Educação Infantil (1994); Política de Educação Infantil (Proposta) (1993) e Política Nacional de educação infantil (1994). 1854

superior para trocar fraldas e dar mamadeira? Não basta ser mulher para desempenhar estas funções? Mas, de fato é bom mesmo para a criança pequena ir para a creche? O per capita da creche precisa ser tão alto? Às questões referidas pela autora, nós acrescentaríamos outras: seria possível pensar uma educação sem cuidado independentemente da forma como ele ocorra? Educar e cuidar são prerrogativas da Educação Infantil? A indissociabilidade entre educação e cuidado é algo novo? O binômio educar e cuidar não é também uma necessidade de outros níveis de ensino? Na educação escolar onde o ensino é função precípua pode se dispensar a educação e o cuidado? Ou ainda, ensinar prescinde necessariamente de educar e cuidar? São todas questões importantes que exigem um esforço e um aprofundamento dos estudos para que possamos apreender os nexos causais que incidem sobre o objeto que é o foco de nossas análises. Para este artigo optamos por enfatizar e das prioridade as questões relativas ao ensino a educação e ao cuidado na educação infantil e no próximo item estaremos nos debruçando sobre elas. É POSSÍVEL O ENSINO COMO EIXO INTEGRADOR DA EDUCAÇÃO E DO CUIDADO? No estudo exploratório que fizemos percebemos que é praticamente hegemônico nas produções acadêmicas e consensual nos documentos que regulamentam a área que o binômio educar e cuidar é constituinte do trabalho pedagógico na educação infantil. Consideramos que o cuidado e a educação são inerentes à Educação Infantil, mas questionamos se este binômio é suficiente para definir sua função e também o papel do professor. Compreendemos o cuidado e a educação como inerentes à condição humana, pois o homem, diferentemente de outras espécies animais, não sobrevive 4 e não se humaniza a não ser em sociedade. Ainda que a base biológica seja irrevogável da 4 Um ser humano até pode sobreviver biologicamente sem o contato social. Um exemplo disso são as meninas indianas Kamala e Amala que foram encontradas no início do século XX vivendo com um grupo de lobos. O comportamento delas era semelhante ao dos lobos que as acolheram, e não apresentavam traços humanos na sua forma de viver, afinal, o homem só se hominiza e humaniza por meio de relações sociais. 1855

existência humana, o ser social vai muito além disso. Como afirma Lukács (2013, p. 176) É possível que a peculiaridade específica do ser social fique ainda mais evidente no complexo de atividades que costumamos chamar de educação. Naturalmente, também para isso há certas analogias nas espécies animais superiores. Estas, contudo, empalidecem quando ponderamos que o auxílio que os animais adultos dão aos seus filhotes se reduz à apropriação de uma vez por todas, com a destreza correspondente à espécie, de certos comportamentos que permanecem indispensáveis por toda vida. Porém, o essencial da educação dos homens, pelo contrário, consiste em capacitá-los a reagir adequadamente aos acontecimentos e às situações novas e imprevisíveis que vierem a ocorrer depois em sua vida. Nesse sentido, a educação do homem, em sentido amplo, não se esgota e não se limita em si mesma. O cuidar do outro nas relações sociais está implícito no ato de educar, independente de contexto e faixa etária. Todo ser humano recebe, de alguma forma, educação e cuidado para se constituir enquanto tal. A sua generidade torna-se possível pelo compartilhamento com algum modo de pensar e agir produzido em diferentes espaços e momentos históricos. A forma como se cuidava de um bebê no século XVI é muito diferente da forma como se cuida no século XXI. Em estudos sobre o cotidiano das crianças no Brasil no período colonial, por exemplo, relata-se que os bebês filhos dos portugueses quando nasciam, eram banhados em líquidos espirituosos, como vinho ou cachaça, limpos com manteiga e outras substâncias oleaginosas e firmemente enfaixado. A cabeça era modelada e o umbigo recebia óleo de rícino misturado à pimenta com fins de cicatrização. (DEL PRIORE, 2004, p. 86) Esta era a forma como se cuidava com base no conhecimento produzido na época e determinado pelo grupo social a que pertencia o bebê. Inclusive, há relatos das diferenças dos cuidados destinados aos recém-nascidos dependendo de sua origem: As mães indígenas preferiam banhar-se no rio com seus rebentos. As africanas costumavam esmagar o narizinho de seus pequenos, dandolhes a forma que lhes parecia mais estética. Os descendentes de nagôs eram enrolados em panos embebidos numa infusão de folhas, já sorvida pela parturiente. O umbigo recebia as mesmas folhas maceradas, e num rito de iniciação ao mundo dos vivos, imergia-se a criança três vezes na água. (idem) Partindo do pressuposto de que educar e cuidar são inerentes à condição humana e situados historicamente, a questão que se coloca para o debate é: tais conceitos são 1856

suficientes para definir a função da educação infantil enquanto primeira etapa da educação básica bem como dar sentido ao trabalho dos professores que ali atuam? Nossos estudos nos levam a responder que não, pois se fossem a educação e o cuidado os definidores desta etapa educativa, como poderíamos, por exemplo, defender políticas públicas para o atendimento institucionalizado e formalizado das crianças, diferenciando este atendimento de outros espaços que também o fazem, como por exemplo, a igreja, a família, a mídia, etc? Como podemos definir o papel do professor de educação infantil, diferenciando-o dos profissionais que trabalham nesses outros espaços? Afinal, todos educam e cuidam das crianças que estão sob sua responsabilidade. Defendemos que a educação infantil deve ser concebida como espaço escolar, pois isso seria seu elemento definidor. Concordamos com Kuhlmann Jr. (1999, p. 61-63) quando afirma que O adjetivo escolar não definiria de antemão um modelo de organização pedagógica para a instituição. Definiria a natureza da mesma educacional no interior da qual se encontrariam estruturas e objetivos de ordens diversas: a creche, a pré-escola, a escola de ensino fundamental, a escola técnica [...] se a especificidade da educação infantil mostra o quanto não faz sentido tratar o pedagógico como algo purificado da contaminação da família, da guarda e do cuidado da criança pequena, não poderíamos, para sermos conseqüentes, nos envergonhar também do caráter escolar da educação infantil. Observamos que contemporaneamente há uma tendência de atribuir um caráter negativo à educação escolar 5, no entanto entendemos que [...] a escola, independentemente da idade daqueles que atende, é um espaço privilegiado e impar para a promoção das apropriações, por todos os indivíduos, do patrimônio cultural historicamente produzido pelos homens. (ARCE e MARTINS, 2012, p 16). Nesse sentido, o caráter definidor da educação infantil, enquanto escola, passa a ser o ensino. Embora este conceito venha sendo negado e até suprimido na educação das crianças menores de seis anos, é o ensino que poderá definir a função desta etapa educativa e dar sentido ao fazer docente. 5 O aprofundamento desta questão foge ao foco desse artigo. No entanto sugerimos a leitura de Duarte (1996, 2000, 2004) e Saviani (1997, 1999, 2013) 1857

Há uma tendência presente na área em que se defende 6 o termo educar como mais apropriado do que o vocábulo ensinar na primeira etapa da Educação Básica, pois este estaria vinculado ao Ensino fundamental e Médio e a uma ideia de escola tradicional, que ignora a diversidade de concepções pedagógicas nas escolas, entendemos que esta concepção tem uma visão reducionista do ensino. Concordamos com Arce e Martins (2007, 2012), quando defendem o ensino como direito e eixo do trabalho pedagógico na Educação Infantil. Ao mesmo tempo em que concebem o professor, responsável pelo processo de ensino-aprendizagem das crianças, desde a mais tenra idade. Assim como as autoras, partimos dos pressupostos da teoria histórico-cultural para fundamentar a compreensão do desenvolvimento infantil. Entendemos que essa base teórica possibilita ao professor promover adequadamente as condições para aprendizagem e desenvolvimento pleno das habilidades de seus alunos, por meio da organização sistemática dos conteúdos. Importa esclarecer que ao fazer referência a conteúdos constituidores da Educação Infantil, não estamos propondo a transposição de conteúdos escolares tradicionais para este nível de ensino, tampouco o adiantamento de processos que se efetivarão em etapas subsequentes. Entendemos como conteúdo o desenvolvimento humano das habilidades mais primordiais às mais complexas por meio do ensino, de forma planejada e intencional, resguardando as especificidades de cada faixa etária. [...] se a humanidade é transmitida e apropriada pelo indivíduo por meio de sua interação com os instrumentos da cultura material, mediada pela comunicação dos demais seres humanos; isso significa que os diferentes graus de acesso a esse conhecimento historicamente acumulado implicam em diferenças de desenvolvimento psicológico dos homens. Assim, é dever social do professor de educação infantil atentar-se para essas questões e procurar por meio do ensino possibilitar que crianças pequenas se desenvolvam na sua integridade. (ARCE; SILVA; VAROTTO, 2011, p. 48) Defendemos que as escolas, independente do nível de ensino, são lócus do saber sistematizado e científico, e, consequentemente os trabalhadores que lá atuam são professores e tem como função precípua o ato de ensinar. Desconsiderar essa constatação pode levar, entre outras questões, à desqualificação do trabalho desenvolvido com as crianças de zero a seis anos com implicações políticas e sociais. É nosso entendimento que o professor deve ser pensado como alguém que transmite à 6 Entre outros ver Rocha (1999a, 1999b, 2001), Cerisara (1999). 1858

criança os resultados do desenvolvimento histórico, que explicita os traços da atividade humana objetivada e cristalizada nos objetos da cultura. (SILVA, 2012, p. 48) Tendo em vista o previamente exposto, consideramos que o ensino não pode ser suprimido, nem tratado como uma questão de menor importância na educação infantil. Ao afirmar o ensino como função precípua dos professores não estamos desconsiderando os aspectos do cuidado e da educação. A defesa desse binômio cumpriu um papel em um determinado tempo histórico na tentativa de aparente superação da cisão entre corpo e mente, sobretudo no que tange à divisão das tarefas entre auxiliar e professor. No entanto, nesse caso, há que se considerar que o que precisa ser transformado não é simplesmente a concepção do trabalho pedagógico na educação infantil, mas as condições objetivas para que se supere a dicotomia entre dois profissionais que desempenham a mesma função docente, mas possuem formação, valorização e carreiras diferentes. O reconhecimento e a valorização do professor da primeira etapa educacional é, certamente, uma questão de militância e luta política na reivindicações da área, mas não se resume a ela, vincula-se também a uma teoria que qualifique a sua atuação e não lhe retire aquilo que tem prioridade ontológica na definição do seu papel: o ensino. Se a especificidade da educação infantil exige que haja mais de um adulto para concretizar o trabalho pedagógico com crianças pequenas, não há porque todos esses profissionais não sejam professores com uma sólida formação e sem diferenciação de nomenclatura e carreira. Esta é mais uma das razões para que na educação infantil as práticas de educação e cuidado estejam integradas no eixo do ensino, e se efetivem de forma planejada no ambiente escolar num movimento diferente do realizado em outros espaços educativos. Podemos afirmar, parafraseando Marx 7, que a fome é a mesma para a criança que está sendo cuidada pelos seus pais em casa ou que está na escola. Mas o ato de se alimentar em casa, de forma cotidiana, no convívio familiar e o momento do lanche na escola, que é planejado de forma intencional por um professor e que se efetiva num espaço coletivo é completamente diferente. Em ambas as situações há uma concepção 7 Fome é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente. (MARX, 2011, p. 47) 1859

de cuidado que vai atender a uma necessidade básica dessa criança num processo educacional mais amplo. Porém, o que as diferencia é o ato do ensino contemplado na ação do professor que irá planejar esse momento levando em conta o momento do desenvolvimento das crianças, promovendo diferentes interações, fazendo a mediação e intervindo no processo de alimentação, que apesar da sua base biológica, se organiza socialmente e de forma intencional quando ocorre na escola. Ainda que em caráter provisório, finalizamos reafirmando que o ato de ensinar incorpora o cuidado e a educação como funções do professor e da educação infantil, compreendendo que nesse processo está contemplado não só o atendimento às necessidades básicas das crianças, mas também o máximo desenvolvimento das capacidades humanas de forma integral, impulsionado pela apropriação do conhecimento e da cultura produzidos pelo homem ao longo da história. REFERÊNCIAS ARCE. A. e MARTINS, L. M. (Org.). Quem tem medo de ensinar na educação infantil? em defesa do ato de ensinar. São Paulo: Alínea, 2007.. Ensinando aos pequenos de zero a três anos. Campinas: Alínea, 2012. ARCE, A.; SILVA, D. A. S. M.; VAROTTO, M. Ensinando Ciências na Educação Infantil. Campinas: Alínea, 2011. BORBA, V. R. S. e SPAZZIANI, M. de L. Afetividade No Contexto Da Educação Infantil. ANPED. Caxambu. 2007. Disponível em <http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/index.htm > Acesso em 07 de jan. 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa de 1988. Brasilia, DF. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 27 jun. 2013.. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da educação nacional. Legislação, Brasília, DF, dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 15 mar. 2012. Ministério da Educação e Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular para educação infantil. 3v. Brasília. 1998. Volume 1: Introdução. 1860

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