1 CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE CURSO DE SERVIÇO SOCIAL ANA APARECIDA HOLANDA DE OLIVEIRA LEI MARIA DA PENHA : A PERCEPÇÃO DOS HOMENS INTERNOS DA CASA DE PRIVAÇÃO PROVISÓRIA DE LIBERDADE PROFESSOR JOSÉ JUCÁ NETO (CPPL III) FORTALEZA 2013
2 ANA APARECIDA HOLANDA DE OLIVEIRA LEI MARIA DA PENHA : A PERCEPÇÃO DOS HOMENS INTERNOS DA CASA DE PRIVAÇÃO PROVISÓRIA DE LIBERDADE PROFESSOR JOSÉ JUCÁ NETO (CPPL III) Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de graduação em Serviço Social da Faculdade Cearense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Esp. Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos FORTALEZA 2013
3 ANA APARECIDA HOLANDA DE OLIVEIRA LEI MARIA DA PENHA : A PERCEPÇÃO DOS HOMENS INTERNOS DA CASA DE PRIVAÇÃO PROVISÓRIA DE LIBERDADE PROFESSOR JOSÉ JUCÁ NETO (CPPL III) Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de graduação em Serviço Social da Faculdade Cearense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Serviço Social. Data da Aprovação / / BANCA EXAMINADORA Esp. Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos (Orientadora) Ms. Denise Furtado Alencar Lima Ms. Silvana Maria Pereira Cavalcante
Agradeço a Deus e a minha mãe. 4
5 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por ter atendido o meu pedido de chegar até aqui. À minha família, em especial a minha mãe Maria Zuleide, que soube entender os meus momentos de estresse e compreendê-los. A minha querida orientadora, Francis Emmanuelle, que mesmo sem me conhecer, me acolheu com um sorriso e uma meiguice peculiar a sua pessoa, acreditando no meu potencial. A Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá Neto, principalmente o Diretor Adjunto Luzardo e a Assistente Social Célia Paz pela abertura, contribuição e apoio no trato com os entrevistados. A Assistente Social Raylane Caminha, que em tão pouco tempo soube me conquistar e ouvir minhas angústias nessa reta final. A minha querida equipe de trabalhos acadêmicos: Jailson, Danielle, Micheline, Rose Caroliny, Edilaine e especialmente a minha amiga Nádia Maciel que tantas vezes me fez sorrir e chorar. A Equipe Master: Shirley de Castro, Antônia Lira, Emanuela Vitor, Caroline Lindolfo, Débora Lemos, Mirella Freire por terem me acolhido e estarem presente em todos os momentos, enchendo as minhas noites de alegria. A todos os meus amigos, em especial a Paula Matias, que mesmo com a distância, mora no meu coração. Ao Júnior por ter me dado à coisa mais importante da minha vida, a pequena Isabella e que mudou os meus dias. A Isabella Holanda, que me escolheu como mãe.
6 O homem não teria alcançado o possível, se inúmeras vezes não tivesse tentado atingir o impossível Max Weber
7 RESUMO O presente trabalho versa sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo como foco os homens enquanto privados provisoriamente de liberdade pela Lei Maria da Penha. O objetivo dessa pesquisa é analisar a percepção deles sobre a Lei 11.340/2006 em privação provisória de liberdade, tendo como objetivos específicos também a analise sobre a eficácia da Lei e o entendimento deles a cerca da violência contra a mulher. A investigação foi realizada através de pesquisa de campo na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá Neto (CPPL III) bem como, de pesquisa documental e entrevistas semi-estruturadas com 10 homens presos provisoriamente. Observou-se que os pesquisados tiveram dificuldades em definir os tipos de violência doméstica, identificadas somente como uma violência física, decorrente de várias causas como: ciúmes e o uso de drogas. A maioria dos homens estava sob o efeito de álcool e/ou crack no ato da prisão. Todos tinham conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, mas apesar de concordarem com sua execução emitiram várias críticas. Poucos respondiam por outros crimes e muitos consideraram sua prisão injusta. A maioria dos entrevistados eram homens negros e pobres. Diante de todos esses aspectos, percebe-se que somente a privação provisória de liberdade como forma de punir e ressocializar não evita a reincidência na violência praticada. Palavras chave: Violência doméstica. Relações de gênero. Feminismo.
8 ABSTRACT This paper deals with domestic and family violence against women, focusing on men provisionally deprived of freedom while the Maria da Penha Law. The goal of this research is to analyze their perception of the Law on 11.340/2006 provisional deprivation of freedom, with the specific objectives also analyze the effectiveness of the law and their understanding about violence against women. The research was conducted through field research in the House of Deprivation Provisional Freedom Jucá Professor José Neto (CPPL III) as well as documentary research and semi-structured interviews with 10 men trapped temporarily. It was observed that respondents had difficulties in defining the types of domestic violence, identified only as a physical, arising from various causes such as jealousy and drug use. Most of the men were under the influence of alcohol and / or crack at the time of arrest. Everyone knew about the Maria da Penha Law, but despite agreeing with his execution issued several criticisms. Few accounted for other crimes and many considered his unjust imprisonment. Most respondents were men black and poor. Given all these aspects, it is clear that only the temporary deprivation of liberty as a way to punish and resocialize not prevent recidivism in violence. Keywords - Keywords: Domestic violence. Gender relations. Feminism.
9 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO...10 2. CAPÍTULO I: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER BASEADA NO GÊNERO 2.1 Os avanços e conquistas dos feminismos diante do contexto de violência doméstica e familiar...13 2.2 Masculinidades: um olhar em construção...33 3. CAPÍTULO II: A REDE DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO ÀS MULHERES VITIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR 3.1 A Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha e o sistema legal de acompanhamento e atendimento as mulheres vítimas de violência em Fortaleza...41 3.2 Políticas Públicas de defesa dos direitos das mulheres...47 3.2.1 Pelo fim da violência contra as mulheres: ações com os homens...52 4. CAPÍTULO III: ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA 4.1 A aproximação do objeto de pesquisa...55 4.2 Procedimentos teórico-metodológicos...56 4.3 Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá Neto (CPPL III) Campo de pesquisa...58 4.4 O Serviço Social no Sistema Penitenciário...59 4.5 Perfil Biográfico dos entrevistados...61 5. CAPÍTULO IV: LEI MARIA DA PENHA : A PERCEPÇÃO DOS INTERNOS DA CPPL III 5.1 Drogas e Violência Contra a Mulher...66 5.2 Tipos de Violência e suas manifestações...68 5.3 Percepções sobre a Lei Maria da Penha: a fala dos entrevistados...71 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...77 APÊNDICES...82
10 1. INTRODUÇÃO A violência contra a mulher trata-se de um fenômeno que atinge a sociedade por muitos séculos. Como forma de coibir, enfrentar e prevenir a violência contra a mulher é que o Brasil cria uma lei específica e políticas públicas destinadas ao combate e à prevenção da violência contra a mulher. De acordo com Cantera (2007), o progresso observado nos últimos anos a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher se deu em diversas linhas, dentre elas: desbiologização, quando ela deixa de ser vista como determinada pela relação animal entre os sexos e passa a ser reconhecida como derivada dos imperativos culturais entre gêneros, desprivatização, antes vista como assunto do mundo privado, passa a se tornar público; desindividualização, antes compreendida como problema (inter) individual, cada vez mais assume caráter de problema social e político e desnormalização, quando se começa a negar que esse fenômeno é uma expressão genuína da normalidade social. Implementada em 07 de agosto de 2006, a Lei 11.340, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, extinguiu o pagamento de cestas básicas, podendo a violência acarretar na prisão do homem que praticá-la. Busca também, a intervenção organizada do Estado através da elaboração de políticas públicas e investimentos estatais como forma de prevenir a morte, dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Sendo assim, o presente trabalho versa sobre a percepção dos homens presos sobre a Lei Maria da Penha durante a privação provisória de liberdade. Por entender que tal violência não é um fenômeno natural e privado e sim, construído culturalmente e socialmente, abordarei as categorias relações de gênero, feminismos e violência contra a mulher. O interesse pela problemática surge em meados de 2009 quando ao fim de um relacionamento, fiz parte das estatísticas de mulheres que sofrem violência por parte de seus companheiros. Recém-ingressada na faculdade de Serviço Social, pude me deparar com os equipamentos e a rede de atendimentos vinculados a Lei 11.340, assim como, com as falhas envolvidas
11 no processo desde o registro do Boletim de Ocorrência (BO) até o seu julgamento, observada enquanto mulher em situação de violência. Decidida a registrar um B.O. por sofrer violência física, psicológica e ameaça de morte, procurei uma delegacia em que a equipe de plantão era composta só por homens. Nesta ocasião, ao relatar a violência sofrida e por não apresentar marcas visíveis dessa agressão, fui aconselhada a retornar ao meu lar e tentar fazer as pazes com meu companheiro. Não satisfeita com a falta de conhecimento dos policiais de plantão, me dirigi até a delegacia da mulher e assim pude relatar o meu caso e ser resguardada por uma medida protetiva expedida após o registro da ocorrência. No decorrer do processo, recebo uma intimação para novamente comparecer a delegacia e lá chegando à responsável pela oitiva tentou me induzir ao seu arquivamento sobe a alegativa que, em dado momento o processo teria um fim e antes que a denúncia fosse ofertada aos órgãos competentes eu poderia arquivá-lo. Contrária a está situação, levei a minha causa as instâncias necessárias para a superação da situação de violência e a responsabilização do agressor. Sabendo da importância do tema para atuação do Serviço Social, a aproximação com os homens presos pela Lei Maria da Penha em minha atuação como estagiária em Serviço Social da Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá (CPPL III) a partir do 6º semestre, me trouxe, em conjunto com a disciplina de fundamentos de TCC, o interesse de estudar a temática. Por se tratar de um tema com bastante profundidade, se faz necessário discutirmos teoricamente as categorias gênero, feminismo e violência intercaladas com a pesquisa de campo, fundamentais para entendermos tal violência. Objetivei dar respostas a seguinte indagação: quais as representações sociais dos homens presos pela Lei Maria da Penha sobre a Lei 11.340/2006 internos do sistema penitenciário. Desse objetivo geral, temos os seguintes objetivos específicos: analisar a eficácia da Lei 11.340/2006 no combate à violência contra a mulher sob a ótica dos homens presos na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá Neto (CPPL III) e identificar com os homens detidos qual o entendimento de violência contra a mulher.
12 O Trabalho de Conclusão do Curso divide-se em quatro capítulos. No primeiro capítulo tratei das categorias relações de gênero, violência contra a mulher e feminismo. Inicialmente analiso a violência e suas manifestações inscritas no texto da Lei 11.340/2006. Em seguida, um resgate histórico do movimento feminista e das expressões de masculinidades que me deu subsídios para analisar a categoria relações de gênero. No capítulo seguinte, trago à rede de proteção e atendimento as mulheres em situação de violência doméstica e familiar com o advento da Lei Maria da Penha e em seguida, a necessidade e o surgimento de Políticas Públicas contemplando tanto as mulheres quanto aos homens. No terceiro capítulo apresento o percurso metodológico da pesquisa, evidenciando a escolha do objeto, a natureza da pesquisa, o campo de pesquisa, a atuação do serviço social no sistema penitenciário, os instrumentais de coleta de dados e o perfil biográfico dos entrevistados. O quarto e último capitulo traz a analise das entrevistas com os sujeitos da pesquisa, evidenciando a violência e o uso de álcool e outras drogas, as percepções sobre os tipos de violência e as interpretações sobre a Lei Maria da Penha.
13 2. CAPÍTULO I: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER BASEADA NO GÊNERO 2.1 OS AVANÇOS E CONQUISTAS DOS FEMINISMOS DIANTE DO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Conceituar violência como categoria analítica nos remete a inúmeros desafios por se tratar de categoria muito ampla. Partindo desse pressuposto, chegar a uma noção do que seja violência contra a mulher é desafiante devido às diversas possibilidades de explicação na literatura de gênero. Se recorrermos ao estudo da etimologia latina da palavra violência, veremos que o termo vis advém do latim e significa violência referindo-se ao emprego da força, vigor e potência. (OSTERNE, 2007) Para Inácio (2003, p.126), Se recorrermos às palavras violatio, onis, violo e are, que estão associados ao termo violentio, veremos, porém, que o termo revela um sentido negativo e maléfico, indesejável. As palavras violatio e onis significam dano, prejuízo, profanação, violação, perfídia e a palavra violo e are indicam fazer violência à, maltratar, danificar, devastar, desonrar, transgredir, infringir, ferir, lesar, ofender, macular. Para o senso comum, a violência é vista como sinônimo do uso da força física, psicológica ou moral para obrigar uma pessoa a fazer algo contra a sua vontade. Num sentido mais amplo, a violência pode ser percebida como fenômeno que percorre toda ordem social, envolvidas não só nas relações pessoais como nas institucionais. Utilizada na produção histórica, sociológica, antropológica e psicanalítica recebe diversas adjetivações, algumas delas chamada violência institucional, estatal, social, política, econômica, cultural, doméstica, de gênero, física, sexual, moral e tantas outras utilizadas. Mesmo com adjetivos diversificados, a primeira dimensão que pensamos quando falamos em violência é a de destruição vinculado a constrangimento físico ou moral, a força e coação. Segundo Diógenes (1998, p.7), a natureza polissêmica do sentido de violência em seus estudos, via de regra, apresentam caráter difuso, pouco afeito às observações diretas e de difícil ordenamento por parte dos
14 pesquisadores. Na maioria das vezes, se elaboram como análises complementares, ilustrativas ou auxiliares de fenômeno considerados centrais. Para (OSTERNE apud Diógenes, 1998), esta formulação simplificadora a respeito do caráter destrutivo da violência aparece sempre, seja no começo ou no final das análises de campo. Alguns estudiosos, no entanto, tentam reverter o aspecto contraditório do caráter instrumental e destrutivo da violência, dando a esta uma dimensão de construtividade e positividade. Ressaltam que, quando a violência é percebida apenas em seu caráter mais visível (aparente), deixa incógnitas as violências mais sutis, aquelas que, não obstante mais ocultas, emprestam profundo significado ao fenômeno em sua real abrangência. Este pensamento fez com que parte das Ciências Sociais adotasse em suas explicações o caráter de dualidade, utilizando-se da estratégia do contraste para dar lugar certo ao que consideram como sociedade de modo geral, ou seja, ser considerado desviante sempre em relação ao que se adota como normalidade. Como entende Diógenes (1998), o imaginário da violência não escapa de ser compreendido fora da percepção do centro como lugar da ordem, enquanto os outros acontecimentos se encontram nas margens da vida social. Os estudos sobre a violência, portanto, estão no lado sombreado das análises ou postado na orla da vida social. O fenômeno da violência torna-se mais impactante no final do século XX, pois se propaga pela sociedade como um todo, trazendo para o lado de cá o lado de lá, a realidade generalizada. Consoante Diógenes (1998), a violência deslocaliza-se, não permitindo mais uma espacialização geográfica da ordem/violência, principalmente nas metrópoles. Tal fato fez com que, em certos contextos, a violência fosse considerada como questão de segurança nacional e quanto ao campo de estudos, um terreno estratégico nas oratórias contemporâneas.
15 Para Diógenes (1998, p.75) Essas razões, [...] apontam a necessidade de uma visão do social que, finalmente articule ordem e caos e transcenda os discursos de natureza essencialmente denunciatórios, restritos a uma visão fincada na matriz destrutiva do fenômeno da violência. Entender a violência fora da sua rede de significados, ou seja, pelo lado destrutivo traz uma visão de que a violência é sempre um fenômeno exterior, vinda de fora. Acompanhado desse raciocínio, aparece à bipolaridade baseada no pensamento de que a ordem e o equilíbrio possam ser alcançados em sua plenitude, assim como, a dualidade em que de um lado aparecem as vítimas (não violentas) e os sujeitos (protagonistas da violência) indicando que ações violentas podem ser controladas com a eliminação ou contenção do sujeito praticante. Para Diógenes, enfim, São as práticas de violência a que vêm representar, no imaginário das ciências sociais, de forma mais radical; referências de natureza contrastivas. O comportamento violento é quase sempre pensado dentro de referenciais negativos, como expressão daquilo que deveria ser, que falta, que se projeta da ordem do outro. [...] Verifica-se, atualmente, que a violência parece romper as barreiras dualistas e contrastivas e se apresentar ali, lado a lado com a ordem, em relações cotidianas que pareciam até então conseguir isolar ou abafar esse incômodo outro. [...] Os morros descem, as torcidas de futebol reúnem setores populares e de classe média, as policias tornam-se atores de destaque na dinâmica da violência, turmas de jovens da classe média, playboys, gangues da periferia protagonizam as experiências de violência juvenil. A violência rompe fronteiras [...] As produções das ciências sociais começaram a identificar novas territorialidades expressas através da vivência da violência cujo mote, anteriormente qualificado por categorias relativas à integração, adaptação, estabilidade, põe em evidência a noção de diferença. (DIOGENES, 1998, p. 87) Essa noção de diferença traz a tona as possibilidades de compreensão do fenômeno da violência, aparecendo demandas sociais que reconhecem as diferenças e a formação de redes de sociabilidade, de micropoderes e de algumas práticas de solidariedade que por mais incomoda que seja, indica um caráter de positividade. Quando o senso comum entende a violência como o uso da força de indivíduos ou grupos contra outros, é importante, como forma de desvendar as intransparências peculiares a esse fenômeno, ter uma noção também desse outro.
16 Para Velho (1996, p.11), a noção de outro pressupõe que a diferença faz parte da vida social, à proporção que essa diferença se efetiva por meio da dinâmica das relações sociais, ou seja, a diferença é, ao mesmo tempo, a base da vida social e constante fonte de tensão e conflito. [...] longe de a vida social constituir-se em um processo homogêneo em que a sociedade como unidade circunscreve e produz os atores linearmente, explicito uma visão em que a negociação da realidade, a partir das diferenças, é conseqüência do sistema de interações sociais sempre heterogêneos e com potencial de conflito. Essa função de reconhecimento do outro traz consigo, a constituição de um sistema de reciprocidade, dado essencialmente sócio-histórico em que as partes de uma sociedade se relacionam. Relações surgidas desse sistema resultam em histórias de desencontros, impasses, acertos, conflitos, ou seja, de interação e negociação. Quando se reconhece a amplitude e a imprecisão da diferença existente nos diversos domínios da vida sociocultural, podemos perceber os atores, indivíduos ou grupos, como aliados, competidores e adversários potenciais. Decorrente dessas diferenças, a produção de tensão e conflito está ligada diretamente a desigualdade social, importante para a compreensão da crescente violência da sociedade brasileira mais não a única. Para Velho (1996), outras variáveis acompanham esse processo. É o caso, por exemplo, do esvaziamento de conteúdos culturais, notadamente os éticos, no sistema de relações sociais, não sendo aplicada somente a pobreza, a causa da perda de referenciais éticos sustentadores nas relações de grupos e indivíduos. Outras variáveis que resultam nesse fenômeno é o crescimento das grandes cidades em decorrência da modernização, das migrações, da industrialização, expansão da economia de mercado e a introdução de novas tecnologias que criam uma cultura de massas e propicia essas transformações. Assim, a violência física torna-se característica do cotidiano em decorrência da ausência de um sistema de reciprocidade e da quebra de valores comuns a sociedade, atingindo todas as classes sociais e o interior das camadas populares, resultando em situações de desigualdade e produtora de violência.
17 O funcionamento positivo, utilitário e construtivo da violência, para Maffesoli (1987), deve ser entendido como expressão da fundação social. Segundo o autor, já é tempo de avaliar a violência ou a dissidência como um elemento estrutural do fato social e não como um saldo negativo anacrônico de uma ordem bárbara em vias de desaparecimento. (Id. p. 21). Apela para que a violência seja vista dentro de um movimento duplo de destruição e formulação, observando o caráter contraditório, já que seu aspecto infernal, demoníaco, remete a uma simbiose de forças, de energias que cria ou renova a estrutura social. (Id., p.25) Para Chauí (1985), a violência é uma realização determinada das relações de força, seja no sentido de classes sociais, seja em termos interpessoais. Analisa a violência contra a mulher sobre dois ângulos: como conversão de uma diferença numa relação hierárquica de desigualdade baseada na dominação, exploração e opressão e como ação que trata o ser humano como coisa e não como sujeito. Este último caracteriza-se pela inércia, passividade e silêncio. A autora percebe ainda, a violência como algo realizado pelo uso da força, mas deixa claro que existe diferença entre relação de força e violência. Para que a violência seja perfeita, é necessário que haja uma alienação. Suas definições estão baseadas em alguns pressupostos, entre eles o mais importante é a liberdade. Para Chauí (1985), liberdade é a capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir, e não simplesmente a escolha voluntária ante várias opções. Liberdade é, antes, autonomia. Toda essa introdução conceitual a respeito da violência segundo Chauí (1985), se faz necessário para analisar a violência que se exerce sobre as mulheres e a violência que as mulheres exercem umas sobre as outras. Como forma de fundamentar esse pensamento, recorre a Aristóteles e suas distinções acerca do tema: o movimento natural (que determina que um corpo realize uma atividade que lhe é inerente, como por exemplo, o pesado cair e o leve subir) e o movimento violento ( no qual uma força externa constrange um corpo a executar uma atividade que não lhe é própria, como, por exemplo, a trajetória retilínea ao ar de uma pedra lançada por alguém). A violência adota
18 então, o sentido de constrangimento, onde uma força contrária a sua natureza opera uma ação. Ora, se violência é contrariar ou constranger a natureza de alguma coisa ou de alguém para que atuem ou opere de modo diverso aquele a que estavam destinados, nada impede que se conceba a natureza das coisas e das pessoas de tal maneira que seja possível exercer violência sobre elas sem, no entanto, supor que tal esteja efetivamente ocorrendo. (CHAUÍ, 1985, p. 37) Outro argumento está baseado nas ideias que as pessoas da sociedade têm sobre a natureza feminina e em respeito a essa natureza, não se consideram nem autores de violência, nem vítimas dela. A naturalização das determinações sociais e históricas para Chauí (1985) é o recurso privilegiado da ideologia, da mesma forma que o aceite dessa naturalização sempre foi fundamental para aceitação da violência como não-violência. Diz então que, a ideologia naturalizadora se faz presente na vida da mulher através do seu corpo, determinação legal ligada ao plano biológico (da procriação) e ao contexto da sensibilidade (na esfera do conhecimento). Por tanto, a hipótese básica de Chauí (1985) é de que a insistente permanência da natureza feminina decorre do fato de o corpo feminino ter sido o elemento essencial para as ideologias da feminilidade. Este corpo, objeto externo visível, constitui uma exterioridade de partes relacionadas mecânica ou funcionalmente, sobre o qual é proferido um discurso do conhecimento, recoberto por um discurso filosófico de um corpo-idéia, dotado de sentido para o intelecto. Percebida apenas como corpo, a mulher segundo Chauí (1985) é analisada por um discurso masculino, dito isto por considerar o discurso científico do conhecimento e o discurso filosófico como tal. Trata-se de um discurso sobre o corpo feminino, produzido por homens que fala de fora sobre as mulheres, fala esta, que se alimenta do seu silêncio. Observar o corpo pelo exterior traz ao corpo feminino o atributo de maternidade, apreendida como instinto materno. Esse instinto garante de forma invisível, o pressuposto de uma natureza feminina como natureza materna, derivando desta, o amor materno. Analisadas pelo lado do amor, a mulher é considerada instintivamente mais sensível que os homens, atribuição extra que
19 busca compensar e justificar a sua exclusão da vida pública e do mundo pensante intelectual. O eterno elogio a sensibilidade feminina indica Chauí (1985), esconde uma imensa discriminação sobre a mulher, o que abre facilmente caminho para a violência. A subjetivação das mulheres se constitui originariamente de outorgas internas, deste o exterior. É preciso então, que essa mulher tenha vontade e liberdade afim de que a interiorização das finalidades externas se realize com o seu consentimento, colaboração e cumplicidade. O conceito de violência de Chauí (1985) é adotado por pesquisas de caráter mais militante, para indicar que as situações de violência contra a mulher decorrem de uma condição geral de subordinação e antes de ser considerada violência é violação de liberdade e do direito que a pessoa tem de ser sujeito construtor da sua própria história. Dada a natureza polissêmica do sentido de violência, trataremos aqui da violência doméstica e familiar contra a mulher. A Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, define violência contra a mulher como: qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado (CIPEVM, 1994). Entre as modalidades de violência estão: a violência física, sexual e psicológica ocorridas no domínio público e no âmbito privado. Trataremos a seguir, das distinções os tipos de violência. Como violência física entende-se um ato executado com a intenção de causar dano físico à outra pessoa. A violência sexual é compreendida como todo ato sexual em relações hetero ou homoafetivas com uma ou mais pessoas, praticada de maneira forçada, agressiva com intuito de obter prazer sexual pelo uso da força, assim como, a proibição do uso de métodos contraceptivos.
20 Violência psicológica ou emocional é conhecida como aquela capaz de provocar efeitos torturantes ou causar desequilíbrios ou sofrimentos mentais, acompanhado de ofensas, insinuações, humilhações, julgamentos depreciativos, palavrões, acusações infundadas, etc. que causam traumas e provocam seqüelas que podem durar por toda vida. (OSTERNE, 2007). Acrescentada por alguns teóricos temos ainda a violência moral que atinge direta ou indiretamente a dignidade, moral e honra da vítima, tendo as mesmas manifestações de humilhação, julgamentos levianos, trapaças e restrições à liberdade encontrada na violência psicológica e a violência simbólica presente na ordem do sistema de relações sociais vigentes. Para Inácio (2003), a violência como fenômeno histórico, cultural e humano é também entendida como ato codificado, sob influência dos valores e da visão do mundo dos sujeitos que se constroem socialmente. As violências até aqui descritas, não ocorrem de forma isolada. Ocorrem de maneira parcial ou totalmente entrelaçada. Tomemos como exemplo a violência psicológica, que está presente em todas as demais e poderá ocorrer junto à violência moral. A violência doméstica apresenta especificidades e sobreposições parciais em relação a outros conceitos. Na concepção de Saffioti (2004) uma das características mais relevantes é a sua rotinização, ocorrendo à violência predominantemente no interior do domicílio. Tem como incidência as mesmas vítimas e poderá se tornar habitual. Com o consentimento, via de regra, da sociedade, homens e mulheres exercem poder entre os membros que mantêm vínculos familiares. O agressor poderá ser qualquer membro da convivência doméstica, neste caso, pai, mãe, filhos, padrasto ou madrasta, mulher, marido, avô, avó, tios, etc. Para Saffioti (2004, p.81), a violência de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino. Ocorrida numa relação afetiva, à ruptura do ciclo de violência será possível também atrás de uma intervenção externa.
21 Guerra (1998, p.31), entende que a violência doméstica permeia todas as classes sociais e por isso resguarda relação com a violência estrutural. Trata-se de uma violência interpessoal que tem na família seu lugar privilegiado. Poderá atingir pessoas que não pertençam à família, mas, que fazem parte do convívio domiciliar do agressor, como é o caso de agregados (as) e empregados (as) domésticos (as). Almeida (1998) considera o fenômeno da violência de gênero como transversal à sociedade, desconhecendo fronteiras de classe social e de raça/etnia. Ocorre no mundo inteiro e atingem mulheres em todas as idades, graus de instrução, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. Diante das múltiplas formas de manifestação da violência doméstica contra a mulher no mundo, o grande desafio é mostrar o seu caráter essencialmente político. Neste caso reafirma-se: violência doméstica/privada, porém, pública. Discutir a violência de gênero impõe que haja um debate entre o público e o privado. Para Almeida (1998, p. 52), trata-se de duas dimensões da vida social com fronteiras fluídas, permeadas por tensões e ambigüidades, e manipuladas, ao longo da história, para forjar um determinado modelo de sociedade. Começamos então, refletindo sobre o uso da palavra doméstica. Segundo Almeida (1998), seu uso traz uma noção espacializada designativa do que é próprio ao familiar, uma instância da vida social, diga-se de passagem, histórica e diametralmente oposta ao público e ao político. Como forma de entender os problemas que envolvem a violência de homens contra as mulheres, na perspectiva de gênero, se faz necessário uma analise dos processos de socialização e sociabilidade masculinas e femininas, assim como, o que significa ser homem e ser mulher perante a sociedade. Os homens, desde cedo são preparados para dar respostas à sociedade de modo proativo, enfrentando riscos e agressividades. Essa noção de virilidade destinada ao homem pode ser encontrada nas brincadeiras de criança, nas ruas, escolas e no interior da família.