A práxis pedagógica e os enfrentamentos no campo discursivo Hildete Pereira dos Anjos Resumo O artigo analisa as relações entre linguagem, discurso e ensino. Parte da concepção vigotskiana de linguagem como organizadora da intersubjetividade e da intrasubjetividade; assume a definição de discurso como processo histórico submetido a determinadas condições de produção, assim como uma noção de ensino como práxis eminentemente discursiva. Propõe, então, sintetizar as relações entre linguagem, discurso e ensino na seguinte formulação: toda prática pedagógica é discursiva e, assim, se configura com um entrecruzamento e enfrentamento de vozes diversas, as quais disputam as possibilidades de descrição autorizada do real, entendido como um processo em constante reconfiguração. Isso exige compreender as estratégias discursivas envolvidas nesse processo. Nessa formulação, ensino e pesquisa se interconstituem, já que tanto o ensinar quanto o pesquisar terão como objeto as estratégias discursivas. Palavras-chave: discurso, linguagem, práxis pedagógica. Meu objetivo, neste texto é debater as relações possíveis entre linguagem, discurso e ensino. Para tanto, considero fundamental explicitar cada termo dessas possíveis relações, uma vez que parto do princípio de que os sentidos e os significados se constituem historicamente; portanto, se modificam no próprio processo no qual são utilizados nos discursos e no qual constituem os aspectos do real que pretendem descrever. Deixar claro para o leitor o que estou chamando de linguagem, de discurso e de ensino faz parte, portanto, dessa crença de que as noções utilizadas não denominam o real (compreendido como algo dado, estável, estabelecido), mas trazem a história da construção do real, assim como das tentativas de construção de histórias diferentes. Boa parte do que aqui é dito tem como origem a pesquisa realizada para a tese de doutoramento por mim defendida recentemente (ANJOS, 2006), embora a experiência docente e militante certamente esteja na base das crenças subjacentes à busca e à construção teórica e metodológica. Nessa tese, intentei analisar os discursos imbricados no conceito de inclusão, o que me obrigou a forjar novas compreensões de linguagem e de discurso. O Artigo baseado em palestra proferida no II Colóquio de Pesquisa de Ensino-aprendizagem de Língua e Literatura, realizado em 13 e 14 de abril de 2007 (NUCLEART/NEL) e publicado na Laterna -Revista do Núcleo de Estudos da Linguagem Araguaia-Tocantins, v. 2, p. 151-156, 2007.. Professora do Curso de Pedagogia /Campus Universitário de Marabá/UFPA. Coordenadora do Núcleo de Educação Especial (NEES) vinculado ao mesmo Curso. Doutora em Educação. E-mail: hpanjoma@ufpa.br.
ensino, naturalmente, é o território onde me movo e me constituo como profissional e pesquisadora. Considerando a palavra como produção humana, portanto histórica, já estou assumindo uma filiação ao pensamento vigotskiano: a linguagem não se situa numa dimensão exterior às praticas cotidianas, mas é forjada nas necessidades que essas próprias práticas buscam superar (VIGOTSKI, 2000). Esse forjar não tem função puramente comunicativa nem somente representativa, mas organiza cada sujeito em suas dimensões de indivíduo e de coletivo (naquilo que se convencionou chamar de intra e intersubjetividade). É no falar/pensar/agir que o indivíduo se articula com os outros e se redesenha enquanto individualidade, ao mesmo tempo e num mesmo movimento. A configuração humana, não podendo ser reduzida ao meramente individual, também não pode ser vista como pura coerção social: o que nos configura como humanos é o fato de sermos-com-os-outros-nahistória, em permanente processo de interconstituição (ANJOS, 2006, f. 69-70). A linguagem é entendida aqui, portanto, como dimensão dialética do humano, que tem uma função organizadora/articuladora dos sujeitos enquanto seres interativos e interconstituintes. Não é entendida como desvinculada do agir humano, organizadora externa a esse agir. A linguagem, tendo o agir como um de seus elementos constituintes _ aquele que, tendo as necessidades humanas como força motivadora _ põe em movimento fala e pensamento: A palavra não esteve no princípio. No princípio esteve a ação. A palavra constitui antes o fim que o princípio do desenvolvimento. A palavra é o fim que coroa a ação. (VIGOTSKI, 2000, p. 485). Preciso explicitar que, seguindo Vigotski, estou também recuperando sua filiação marxista, ao entender que o agir/falar/pensar são dimensões do humano que, uma vez constituindo um todo, no processo de objetivação/subjetivação da realidade, não podem mais se separar: continuam se interconstituindo, mesmo em condições de alienação e de assimetria de poder. Estou defendendo, portanto que não é possível separar fala, pensamento e ação; que mesmo a ação alienada tem em sua base um pensamento assumido por um sujeito (ainda que coletivamente produzido) e se organiza num discurso onde a situação de assimetria ganha concretude no enfrentamento da vozes no interior do discurso (BAKHTIN, 2004). Em condições de assimetria, de disputa de poder, esse agir/falar/pensar torna-se palco de negociação, de disputa, de luta (não apenas disputa entre os homens ou entre as classes, mas também disputa entranhada no interior do agir/falar/pensar de cada indivíduo, tomado como totalidade). Desse ponto de vista, não há como pensar a função organizadora da linguagem em si e por si, tomando as relações sociais como simétricas. É necessário levar em
conta as assimetrias de poder presentes nesse processo de interconstituição; pensar, portanto, o ideológico projetado e construído no interior dos discursos. Passo, então, da noção de linguagem para a noção de discurso, e para ser coerente com aquela, preciso considerar que discurso é processo histórico, como na concepção de Pêcheux: Assim, desde a sua fundação, na análise do discurso derivada de Pêcheux, o discurso é entendido como um conceito que não se confunde com o discurso empírico de um sujeito (parole saussureana) nem com o texto (o discurso não está na manifestação de seus encaixamentos; sendo um processo, é preciso desconstruir a discursividade para enxergá-lo), nem com a função comunicacional [...]. A análise visa a apreender esse novo objeto (discurso como processo) indagando sobre as condições de sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui (GREGOLIN, 2003, p.7; grifos da autora). Tal processo, sendo histórico, é produzido em determinadas condições, submetido a certas condições de circulação e reconhecido em conformidade com a historicidade das relações entre indivíduos 1 (VERÓN, 1990). Tem modos de funcionamento específicos, conforme seu objeto, sua meta, sua intencionalidade. Imbrica-se na vida concreta dos seres humanos: é o seu agir/pensar /falar em processo, em fluxo. Não estou considerando, portanto, a existência de uma instância culta, produtora de discursos e de outras instâncias de massa, meramente consumidoras. Toda prática discursiva é aqui considerada instância válida de produção de discursos, e é na busca de compreender as condições de produção, de circulação e de reconhecimento de tais discursos (a partir de seus recortes), que essas instâncias se tornam objeto da ciência: não o texto como produção autônoma de um indivíduo, nem como imposição ideológica, mas como fragmento que mostra os indícios de um embate entre as crenças dominantes e dominadas no próprio interior do fazer discursivo. Esse meu esforço em esclarecer a compreensão de linguagem e de discurso aqui adotada tem relação com a compreensão do terceiro termo da relação proposta: o ensino. Entendendo ensino como situação em que a prática discursiva do professor se organiza em torno de um objetivo específico, que é criar situações de construção de conhecimento, com relação a um grupo específico, que é a turma de alunos, gostaria de destacar outras especificidades dessa situação, a qual é geralmente definida como práxis pedagógica. A primeira especificidade já está pressuposta na própria definição de ensino que adotei: a relação pedagógica se configura como uma relação eminentemente discursiva, na qual as assimetrias de poder não podem ser veladas, sob pena de agirem mais eficientemente. 1 É de Foucault ( 1995) a concepção de processo discursivo como produção, circulação e consumo.
Quero com isso dizer que, no discurso pedagógico, o lugar do professor não se confunde com o lugar de aluno. O professor tem poderes que o aluno não tem (o poder de selecionar, de corrigir, de apontar certezas _ainda que provisórias_ de atribuir valores...), e esconder isso numa suposta relação de igualdade pode estar a serviço da não-discussão desses poderes. A escolha dos discursos válidos (dos conteúdos adequados), a interpretação adequada desses conteúdos, a classificação e catalogação dos procedimentos aceitáveis e inaceitáveis, tudo isso se concentra muito mais no lugar de professor do que no de aluno. As decisões a respeito da adequação, da aceitabilidade, da validade parecem caber àquele lugar, ainda que o professor não as tome por conta própria, mas inserido em campos de poder. Uma série de estratégias discursivas produzidas a partir do lugar de professor evidencia ou oculta, mais ou menos, esses processos. Uma outra especificidade da práxis pedagógica se refere ao papel que a afetividade joga na organização das redes de sentido (REY, 1997) com que professores e alunos vão esboçando seu mundo e articulando suas ações. As assimetrias de poder entre lugar de professor e lugar de aluno se suportam nas coerções sociais, mas tais coerções se firmam também na aceitação afetiva das assimetrias, vale dizer, na autorização concedida pelo aluno ao professor para que seja seu professor. Não falo, evidentemente, das relações formalizadas em que a matrícula e a classificação por turmas definem quem é aluno de quem: falo do respeito e da aceitação que fazem com que certos alunos adotem certos professores como sua referência afetiva e intelectual. Assim, o fazer discursivo incorpora, para além dos significados objetivos daquilo que é dito, as valorações que vão sendo historicamente constituídas acerca de ser professor e de ser aluno, de ser bom professor e de ser bom aluno. A terceira especificidade é que a relação pedagógica se configura como um espaço interativo de elaboração e projeção de subjetividades; nela, professor e aluno são lugares que vão se interconstituindo, no próprio processo em que vão sendo vivenciados, descritos, referidos. É um projeto consciente de transformação dos sujeitos e de suas relações, mas também é espaço de entrecruzamento de vozes recessivas, não assumidas, latentes. Conflitos e contradições do campo da práxis em geral estão vivos na práxis pedagógica: aí se enfrentam valores como competitividade, individualismo, cooperação, coletivismo, e aí se configuram formas alternativas de ser e fazer ou se reforçam as formas dominantes. Proponho então tomar para reflexão essas três especificidades da relação pedagógica: a de ser uma relação discursiva assimétrica, a de se fundar nos sentidos constituídos na instância do afetivo; a de ser espaço constitutivo de identidades no qual têm
lugar a contradição e o conflito. Linguagem, discurso e ensino se entrecruzam nelas; conforme a concepção que se tenha de cada uma dessas noções, muda o tipo de relação que se pode encontrar. Uma compreensão dessas relações exige uma análise que vá além de se querer entender isoladamente professor e aluno como papéis, num cenário dado e inquestionável. Se os tomo como lugares que se fazem e desfazem conforme os enfrentamentos ideológicos, posso analisar como, através da prática discursiva, se constituem e se estabelecem determinados lugares para um e outro, numa relação interconstituinte; como, através das elaborações no espaço do afetivo, esses lugares são reforçados ou contestados; como, enfim, se cristalizam projetos identitários que passam a ser lidos como o professor e o aluno, a escola, criando-se idealizações com as quais todos passamos a lidar, em vez das pessoas, das instituições e relações concretas. Chamo a atenção para essa questão com uma intenção: a de propor a superação de certas práticas de pesquisa e de ensino, nas quais o discurso é tomado como descrição de um real estático, os conceitos são tomados como representação das coisas. Proponho tomá-los (os conceitos) como operadores. Estes, mais do que representações, são construções discursivas que permitem lidar com aspectos e dimensões do real, mas não se confundem com eles. Considero urgente a construção de novos dispositivos de análise e interpretação que vejam o discurso como processo historicamente elaborado, entrecruzamento de subjetividades e de ideologias. No que se refere ao ensino das teorias, trata-se de compreender como cada teórico elaborou construtos para explicar relações, a partir de que ponto de vista, dentro de que projeto político, para assim poder dialogar com o autor. No que se refere à prática dos pesquisadores, de ir além da coleta de depoimentos e da listagem de opiniões e pontos de vista, para penetrar no funcionamento interno do discurso: o que se propõe a evidenciar e a ocultar, a apresentar como verdade ou como falsidade, a que vozes escolhe responder e como o faz, que vozes silencia ao fazer isso, que descrições do real admite e que mecanismos usa para lhes conferir validade. Desse modo, imagino que as relações entre linguagem, discurso e ensino possam ser sintetizadas numa formulação: toda prática pedagógica é necessariamente discursiva; sendo discursiva, é entrecruzamento e enfrentamento de vozes as quais disputam as possibilidades de descrição autorizada do real; sendo arena dessa disputa, não pode ser compreendida se não se compreende as estratégias discursivas envolvidas nesse processo. Nessa formulação, ensino e pesquisa se interconstituem, não se entendendo o primeiro como momento de lidar apenas com conteúdos e temáticas cristalizados e a segunda como momento
de reelaboração e questionamento de tais conteúdos: ensinar e pesquisar passam a ter como centro o desvelamento e a elaboração de estratégias discursivas. REFERÊNCIAS: ANJOS, Hildete Pereira dos. O espelho em cacos: análise dos discursos imbricados na questão da inclusão. 2006. 380 f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador. BAKHTIN, M. M/VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11ª ed. São Paulo: Hucitec, 2004. FOUCAULT, Michel. La arqueología del saber. 16ª edicción. Ciudad de México: Siglo XXI Editores, 1995. GREGOLIN, Maria do Rosário V. e BARONAS, Roberto L. (orgs.) Análise do discurso: as materialidades do sentido. 2ª ed. São Carlos-SP: Claraluz, 2003.. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos & duelos. São Carlos-SP: Claraluz, 2004. REY, Fernando González. Epistemologia cualitativa e subjetividad. São Paulo: EDUC, 1997. VERÓN, Eliseo. A Produção de Sentido. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1980. VIGOTSKI. Lev S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.