Interdisciplinaridade e Objeto de Estudo da Comunicação



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Transcrição:

Interdisciplinaridade e Objeto de Estudo da Comunicação Luiz C. Martino Marcado pelas transformações e pela sucessão de modelos epistemológicos, o século XX assistiu o nascimento de várias disciplinas científicas. Um rápido panorama sobre o desenvolvimento das ciências humanas nos revelaria a notória importância que adquiriram os saberes organizados em torno dos processos comunicativos. Da profunda influência proporcionada pelo aparecimento da Sociologia, fazendo com que as Ciências Humanas incorporassem uma análise do social (compreendido como o efeito de processos de mediação), à célebre afirmação do inconsciente estruturado como linguagem, é o conjunto dessas ciências, e mesmo a filosofia, que vêem, num curto espaço de tempo, seu centro de gravidade se deslocar para a problemática da comunicação. Paralelamente a este deslocamento nós assistimos ao aparecimento de um novo saber especializado. E mais do que um saber, uma nova disciplina científica, cujo o objeto seria os processos de comunicação. Ora, sem perder de vista todo o trabalho acumulado nesta matéria, esta jovem ciência jamais conseguiu definir de maneira suficiente seu objeto de estudo, o qual permanece tão vasto e diverso quanto as problemáticas que atravessam as ciências do Homem. A discussão sobre a natureza interdisciplinar da Comunicação é, em grande parte, o testemunho paradoxal tanto da persistência quanto da superação de um problema que estranhamente resta pouco abordado, senão intacto: o problema do objeto de estudo dessa disciplina. Diante da falta de uma reflexão sobre a matéria, freqüentemente recorre-se à interdisciplinaridade como uma tática de evasiva. Dizia W. Schramm que a Comunicação é uma espécie de encruzilhada pela qual muitos passam e onde poucos permanecem. Mas, cabe então perguntar, o que seria permanecer? Certamente, seria o caso de criar um campo próprio de análise. Para tanto, é preciso que o estudo da Comunicação vá mais além

de suas imagens, que avance no conhecimento de si, que aprenda a traduzir suas metáforas em conhecimento, se quisermos que esta disciplina seja mais que uma interseção passiva, um simples efeito de diferentes orientações do saber. Neste sentido cabe perguntar: Em que medida a análise do discurso não é obra do literato ou do linguísta? Em que medida a formação da opinião pública e do conflito ideológico não pertencem ao domínio do cientista político ou do sociólogo? Ou, em que medida o estudo do signo não é trabalho de uma psicologia geral? Em outras palavras, qual a especificidade do trabalho daquele que estuda a Comunicação como disciplina autônoma? Estas questões devem ser respondidas se quisermos que a interdisciplinaridade seja mais do que o efeito passivo de diversas direções do saber, convergência inevitável das ciências do Homem, ou uma evasiva para a falta de reflexão sobre o objeto dessa disciplina. Trata-se, ao contrário, de pensar uma interdisciplinaridade que seja o fruto de uma exigência do próprio objeto. O quê pressupõe, antes de mais nada, a explicitação desse objeto. No nosso entendimento, uma boa maneira de se abordar a questão, é indagar-se sobre a própria necessidade de comunicar. Distinguimos aí: 1) o problema filosófico da comunicação enquanto fundamento do Homem; 2) o problema histórico da tomada de significação dos processos comunicativos a partir da emergência de uma organização social bem determinada. O primeiro aspecto é muito bem sintetizado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ao avançar a tese de que a comunicação guarda uma estreita correlação com o aparecimento, no Homem, de uma faculdade muito particular de consciência. A consciência propriamente humana nasce da necessidade de comunicar, de onde a afirmação de que a consciência é uma rede de comunicação entre os homens. Exprimindo assim o fenômeno humano em termos de uma manifestação comunicativa, Nietzsche consegue superar a dicotomia entre processos psicológicos e processos sociais - dicotomia típica dos atuais estudos de comunicação -, que tendem a separar e tratar de maneira independente estes dois níveis do processo comunicativo. Além do mais, a formulação nietzscheana tem o mérito de indicar corretamente a natureza do processo comunicativo como um fenômeno de consciência.

Já o segundo problema nos remete para a questão histórica das transformações nas estruturas coletivas. É sabido que por volta do século XVIII profundas crises políticosociais, a Revolução Industrial, o aparecimento do mercado, a dissociação do poder estatal do poder do clero, a explosão demográfica, a emergência do indivíduo moderno... entre vários outros aspectos, levaram os sociólogos a verem nestas transformações uma mudança de natureza das organizações coletivas, saudando a nova organização emergente como um novo tipo (Sociedade), com características bastante singulares, em oposição ao tipo da antiga forma de organização coletiva (Comunidade). Dentre estas características destaquemos sobretudo o deslocamento do centro da vida social, indo do passado para o presente. Max Weber sintetiza muito bem a questão ao indicar a profunda alteração no modo de inserção do indivíduo na coletividade: já não são mais os laços de sangue ou os valores da tradição que determinarão a inserção do indivíduo na coletividade, mas trata-se agora de um problema que cada indivíduo tem diante de si, e que não pode ser resolvido sem levar em consideração a vontade racional de se inserir na coletividade. Dito de outro modo, os valores da tradição não podem mais garantir a inserção do indivíduo no espaço coletivo, pois este aqui ultrapassa o âmbito da simples Comunidade. De estrutura muito mais complexa, a organização em forma de Sociedade pressupõe o convívio de uma multiplicidade de comunidades, que por vezes chegam a se recobrirem parcialmente, e cuja forma é dada, em grande parte, pela divisão do trabalho social, mas que não se restringe a ela. Trata-se, de um aglomerado de comunidades mais ou menos efêmeras, que refletem, na realidade, as múltiplas associações circunstanciais que o indivíduo estabelece ao longo de suas relações com grupos locais (trabalho, vizinhança, escola, circulo de amizades...) no processo de formação de sua identidade. Desse modo, o indivíduo não tem seu vínculo coletivo, nem sua identidade, assegurados de antemão pela tradição, mas deve construí-los através de seu engajamento espontâneo na diversidade das formas coletivas de agrupamento. Isto dito, podemos ver que o problema da necessidade de comunicação se encontra na interseção dos dois aspectos acima mencionados. A forma de organização coletiva que dispomos hoje traz em seu bojo uma transformação radical no que concerne o papel da comunicação dentro da estrutura coletiva: o processo comunicativo deixa de ser apenas o fundamento da consciência humana, quer em sua forma coletiva ou individual, e passa a ser

investida como estratégia racional de inserção do indivíduo na coletividade. Não se trata mais de uma instância indissociável da vida em coletividade, razão pela qual permanecia implícita e invisível, portanto praticamente ausente enquanto tema problematizado pela história do pensamento. A comunicação somente ganha visibilidade, enquanto problema colocado à tradição do pensamento Ocidental, quando ela passa a ter o sentido de uma estratégia racional de inserção do indivíduo na coletividade, fenômeno correlato à emergência de uma forma de organização coletiva cuja dinâmica não se assenta sobre os valores da tradição, mas sobre o consumo do presente. Ou seja, uma organização social que vive de seus contatos imediatos, de sua renovação compulsiva dos laços coletivos. É somente uma tal forma de organização coletiva que pode criar para si uma instância chamada atualidade, a fim de exprimir o conjunto de uma realidade fragmentada pela multiplicidade de agrupamentos (comunidades). É somente numa tal organização coletiva que os meios de comunicação passam a ter um papel relevante: 1) Seja no tocante à representação desse todo, fundando assim o incessante trabalho de atualização das relações coletivas no espaço virtual aberto pela atividade dos meios de comunicação. De onde a fórmula espaço público complexo, ou espaço social igual a espaço virtual (medias). 2) Seja no tocante as estratégias de engajamento do indivíduo, que tem no meio de comunicação um auxílio imprescindível, um poderoso instrumento de sondagem de uma realidade que escapa aos limites de seu aparato sensorial, já que são os media que alargam os horizontes da percepção corporal, sempre presa à territoriedade das relações comunitárias locais. Em suma, é a partir da análise da Sociedade enquanto tipo de organização social que podemos entender, de uma parte, a necessidade de comunicação do indivíduo moderno em seu afã de engajamento coletivo; e, de outra parte, a presença notória e a importância crescente que adquirem os meios de comunicação enquanto instrumentalização da atividade individual face ao seu desafio de engajamento numa coletividade complexa.

Pois bem, isto dito, resta-nos analisar como esse modo de abordar o problema pode nos ajudar a definir o objeto da disciplina Comunicação. Com esta intenção, retomemos as questões colocadas no início deste breve artigo sobre o problema da interdisciplinaridade. Víamos que o principal obstáculo colocado à fundamentação de um saber comunicacional diz respeito à dificuldade do estabelecimento de fronteiras suficientemente precisas para fundar um objeto próprio a nossa disciplina. E digamos claramente, a fim de que não haja mal entendido, que não é o caso de se estabelecer fronteiras rígidas e proibitivas, o que aliás não faria o menor sentido dentro das Ciências Humanas. Mesmo um estudo tradicional não pode se furtar do trabalho de definição de seu objeto e seria um engano primário achar que a natureza interdisciplinar de um certo estudo poderia dispensar este trabalho. Pelo contrário, ela exige um esforço redobrado na medida em que este objeto tende, como no caso da Comunicação, a se confundir com o objeto de outras ciências. Ora, o processo comunicativo é, e sempre será, um processo essencialmente psicológico, sociológico, político... Assim colocado, o problema parece insolúvel. Mas do mesmo modo que a dimensão física está presente na dimensão biológica, que por sua vez se encontra presente na dimensão psicológica e esta na dimensão social, sem que isto venha a significar um empecilho ao estabelecimento de qualquer uma das ciências citadas, o estabelecimento da disciplina Comunicação não está inviabilizado, à priori, pela complexidade das relações de seu objeto de estudo. Afastada esta objeção, cabe então analisarmos as relações que se estabelecem entre os objetos dos diversos saberes quando a análise converge sobre uma mesma matéria. E aqui, logo de saída, nos deparamos com a questão de saber até que ponto podemos dizer a mesma matéria, já que estes saberes não se debruçam sobre uma realidade empírica pura, e comum a todas as abordagens, mas que, em uma larga medida, constroem seus objetos de estudo a partir de aparatos conceituais e de interesses específicos. Em última instância, são estes últimos que particularizam uma determinada área do conhecimento, e a questão que se coloca é de saber se a disciplina Comunicação pode formular um interesse específico.

Que a psicologia possa tratar um tema coletivo e se tornar psicologia social não invalida sua autonomia; que a antropologia se interesse por aspectos cognitivos não a reduz a uma psicologia; que a linguística se aplique a fenômenos psico-sociais não a invalida enquanto saber autônomo. A autonomia destas e de outras disciplinas resta preservada pelas perspectivas que elas abrem sobre um determinado fato, que aliás ajudam a construir. Em outras palavras: a natureza interdisciplinar dos estudos de comunicação deve ser interpretada como o concurso de disciplinas independentes (sociologia, psicologia, linguística...), que guardam seus interesses específicos, ou como uma síntese desses saberes fundando portanto um interesse e um objeto particular? Não resta dúvida que a resposta somente pode ser esta última alternativa, se se trata realmente de falar de uma disciplina autônoma e não de certo tema recorrente e comum a um certo número de disciplinas independentes. Todo o problema reside então em se definir um interesse e um objeto que possam caracterizar os estudos de comunicação. Ora, se nossa análise da transformação social está correta (e em sua generalidade ela praticamente se mostra consensual), se a emergência de uma nova forma de organização coletiva (Sociedade) libera determinadas práticas sociais, notadamente a do uso de meios de comunicação como fator de socialização, revelando um novo sentido da comunicação social, podemos então afirmar que a emergência mesmo de nossa disciplina surge da necessidade de compreender este novo sentido dos processos comunicativos e que tem nas práticas que envolvem o uso dos meios de comunicação o seu objeto de estudo. Não seria nenhuma aberração afirmar que os estudos de Comunicação gravitam em torno dos media, mesmo que esses estudos nem sempre estejam atentos para este fato. Com efeito, os meios de comunicação, diferentemente de outros aspectos igualmente constantes na problemática, constituem o fator que melhor pode caracterizar objeto dos estudos de Comunicação. Basta comparar com outros elementos para se ter a confirmação. Por exemplo, o fator ideologia, bastante ressaltado pelas abordagens de influência marxista, é na verdade um objeto que caracteriza melhor as ciências políticas que propriamente a Comunicação. O ato comunicativo, no estrito senso, quer dizer, abstração feita de todo o

contexto socio-histórico, caracteriza melhor o objeto de uma psicologia da linguagem, ou dos processos simbólicos; já os estudos sociológicos, além de não darem a devida atenção à análise dos processos cognitivos em jogo no processo comunicativo, não se detêm numa análise mais cuidadosa das relações entre os aspectos tecnológicos em sua interface com o corpo humano; e a filosofia simplesmente virou as costas para o problema, preferindo se concentrar, ela também, no processo comunicativo enquanto ato de fala, intencionalidade ou hermenêutica... Em resumo, os meios de comunicação atravessam vários campos de saber mas não constituem o objeto de nenhum saber em particular. Nenhuma dessas disciplinas se propõe a estudar os meios de comunicação à luz do novo sentido trazido pelas nova forma de organização coletiva. Nenhuma outra disciplina, além da Comunicação, tem a liberdade para explorar as práticas advindas pela introdução dos media na organização social. De outro lado, a temática dos meios de comunicação é a única suficientemente abrangente para servir de fio condutor, um verdadeiro fio de Ariadne, que permitiria ao pesquisador da comunicação atravessar os vários níveis de uma problemática complexa, utilizando-se de uma gama bastante variada de saberes, sem no entanto perder de vista a integralidade de um objeto próprio. Finalmente, para terminar, deixemos indicados alguns problemas que se abrem para os estudos de comunicação assim definidos. O mais evidente deles parte da constatação de que não temos nem mesmo definições conceituais mais elaboradas sobre o que seria um meio de comunicação. Poucos recursos nos restam se não queremos reafirmar a velha e ainda corrente definição dos meios de comunicação como aqueles instrumentos que servem para comunicar. Malgrado toda a moda sobre as novas tecnologias, nenhum estudo foi dedicado a estabelecer a especificidade dos media no universo dos objetos técnicos (como se uma televisão fosse igual a uma geladeira...). Enfim, e certamente a lacuna mais grave de todas consiste no fato de que os estudos de meios de comunicação (medium theory) constituem uma tradição muito pouco desenvolvida. Estudiosos do assunto, tais como Mauro Wolf, Jensen e Rosengrand, e mesmo as brilhantes análises de E. Katz, negligenciam os estudos de media como tradição de pesquisa.

Diante disto, admitindo-se a validade das análises acima, caberia se perguntar, então, se os estudos em comunicação seriam algo ainda mais recente do que normalmente acreditamos ou gostaríamos de acreditar? RESUMO Neste pequeno artigo propomos - não sem polêmica os Meios de Comunicação como o objeto de estudo da disciplina Comunicação. Menos que um fechamento da problemática, trata-se ao contrário de proporcionar uma fundamentação para outras abordagens, já que os Meios de Comunicação, diferentemente de outros aspectos igualmente constantes na problemática, podem servir de fio condutor, um verdadeiro fio de Ariadne, que permitiria ao pesquisador da Comunicação atravessar os vários níveis de uma problemática complexa, utilizando-se de uma gama bastante variada de saberes, sem no entanto perder de vista a integralidade de um objeto próprio.