Ensino de Leitura II As interações professor-aluno durante a leitura No artigo já publicado, Ensino de Leitura I: a importância da interação adulto-criança no processo de ensino/aprendizagem, indicamos que a professora Ariane Zanelli, leria, ao longo de alguns dias, o livro Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos - histórias modernas de tempos antigos, de Flávio de Souza e ilustração de Paulo Ricardo Dantas. No início do trabalho (Ensino de Leitura I) toda a conversa - entre os alunos, e entre eles e a professora - deu-se antes da leitura da história propriamente dita. Naquele momento, a professora se dispôs a conduzir os alunos para que se apropriassem da capacidade de ativar informações que já possuíam, ou seja, acionar seus conhecimentos prévios, e fazer previsões sobre o livro a partir de seu título, de suas ilustrações e contracapa. Ela incentivou os alunos para que trouxessem informações sobre o autor e procurassem entender o que ele informava, em uma introdução ao próprio livro, sobre organização geral do volume quantos capítulos e o número de histórias que cada um deles continha. Para isso, ela considera que já é do conhecimento dos alunos a estrutura básica da narrativa. No momento seguinte, que agora abordaremos, já durante a leitura da história, a professora continua a fazer perguntas para o grupo, perguntas estas que disparam antecipações sobre o possível enredo de uma das histórias, sua organização e sobre sentimentos de seus personagens. Às palavras do texto, através das perguntas formuladas pela professora, contrapõem-se palavras dos alunos; à atividade mental do "eu", a expressão para o "nós", ou seja, para os colegas e professores. Como ouvintes de uma história, os alunos podem, nesse momento, provocados pelas questões colocadas, expressar a dialogia interior e a compreensão ativa que se dava durante o escutar a história. Vejam.
P: (Lendo o título de um dos capítulos que compunha o livro) Dois Beijos. O Príncipe Desencantado. Por que será desencantado? As: Porque não é encantado! Acho que era um príncipe que virou sapo! Ou um sapo que virou príncipe! P: Vamo vê? Chama Dois Beijos e chama o Príncipe Desencantado. A1: Chama Dois Beijos ou O Príncipe Desencantado? P: Dois Beijos são duas histórias. Uma delas é O Príncipe Desencantado e a outra é Sapo dando Sopa. A professora continua com seu padrão interativo básico, com seu modo de participação - pergunta/resposta -, que leva os alunos a respostas de antecipação sobre possíveis acontecimentos da história, partindo da titulação delas. Os alunos revelam, por suas respostas, vozes constitutivas de seu universo discursivo, ou seja, as informações que guardam sobre o que dizem os contos tradicionais: príncipe que vira sapo ou vice-versa, encantamentos e desencantamentos. Podemos dizer, também, que as respostas dos alunos revelam a própria antecipação realizada pelo escritor da história em relação ao universo discursivo de seu leitor: seu leitor é aquele que conhece os contos tradicionais, aquele que já escutou ou leu alguns contos de tradição, principalmente os contos de fada. Temos, também, um aluno que usa o mesmo padrão em relação à professora: Chama Dois Beijos ou O Príncipe Desencantado? A professora, através desta pergunta, pode retomar sua fala, explicitá-la e reorganizá-la: Dois Beijos são duas histórias. Uma delas é O príncipe Desencantado e a outra é Sapo dando Sopa.
São perguntas, tanto as dos alunos como as da professora, que levam a explicitações, a esclarecimentos, perguntas que, em se contrapondo ao que está sendo lido, levam à responsividade, ou seja, ao desejo, pela criança, de tornar-se ativa na interlocução, no diálogo que a professora provocou; também, são perguntas que levam os alunos a se envolverem na leitura que está sendo feita, o que podemos observar na sequência seguinte. P: (começa a leitura da narrativa) O primeiro beijo foi dado por um príncipe numa princesa que estava dormindo encantada há cem anos. Assim que foi beijada, ela acordou começou a falar: Princesa: Muito obrigada, querido príncipe. Você por acaso é solteiro? Príncipe: Sim, querida princesa. P: (interrompendo a leitura) Por que será, não gente? A1: Queria casar com ele! A professora continua a leitura: Princesa: Então nós temos de nos casar, já! Você me beijou, e foi na boca, afinal de contas não fica bem, não é mesmo? Príncipe: É... querida princesa. Princesa: Você tem castelo, é claro. Príncipe: Tenho... princesa. Princesa: E quantos quartos tem o seu castelo, posso saber? Príncipe: Trinta e seis. Princesa: Só? Pequeno, hein! (...) Deixa eu pensar quantas amas eu vou ter que contratar... Umas quarenta eu acho que dá. Príncipe: Tantas assim? Princesa: Ora, meu caro, você não espera que eu vá gastar as minhas unhas, varrendo, lavando e passando, não é? P: (lendo a fala do narrador e transformando-a em uma pergunta) Tanto a princesa falou que o príncipe...? As: Endoidô. Desmaiô. Desencantô. Voltou a ser sapo!
P: (lendo)... se arrependeu de ter ido até lá e a beijado. Então teve uma ideia. Aqui começa o quê? A1: O conflito. P: Conflito? A2: Não! A resolução. P: Por que a resolução? A2: Porque o conflito é a mulher! (muitas risadas) P: O que é que ele vai fazê com a mulher... com a princesa? Esperou a princesa ficar distraída, se jogou sobre ela e... e? A3: Deu outro beijo! P: Muito bem. Você saberia o que fazê nesta situação. A professora continua com o padrão interativo pergunta/resposta, sendo que, sua primeira pergunta é para que os alunos antecipem, enquanto a segunda já traz outro tema da professora: a organização do enredo da história que está sendo lida: o início, a complicação ou conflito, o clímax e a resolução ou desfecho. Ela, através de sua pergunta, tenta negociar um dos elementos desta organização: a resolução. Pela pergunta ( Aqui começa o quê? ), percebemos que este é um tema que já vinha sendo trabalhado; ela pede que os alunos reconheçam em que momento estão na narrativa. Ela estimula, através de sua pergunta, o reconhecimento, por parte dos alunos, do início da resolução, ou seja, tenta construir um importante elemento da organização do enredo. Como a professora obtém uma resposta considerada inadequada - O conflito -, ela transforma a resposta em pergunta, usando de uma entonação que indica uma valoração que traz um acento apreciativo: Conflito?. Ou seja, pense bem... é mesmo o conflito? Perante esta indicação, outro aluno tenta nova resposta: Não! A resolução. A professora simetriza com esta resposta, mas a transforma em nova pergunta: Por que a resolução?. Ela, através de sua pergunta, exige uma fundamentação.
Podemos observar, pela sequência do diálogo, que a palavra conflito está sendo tomada em outro sentido. Professora e aluno não compartilham um mesmo significado - o aluno toma conflito como briga, discussão, desentendimento. Como ele mesmo diz: O conflito é a mulher!. A professora ri e não se propõe a trabalhar com a dubiedade revelada. A professora não interfere mais. Vemos, também, o funcionamento da reversibilidade da lógica dos contos tradicionais, na resposta do aluno 3 - se o beijo desencanta, também deve encantar novamente. Sua experiência como leitor/ouvinte de contos tradicionais permite-lhe antecipar uma inversão e, com isso, a possível resolução do conflito. O fato de o aluno poder expressar sua vivência anterior, o fato de se apoiar nesta experiência para poder compreender a história, para antecipar, para poder inverter certa lógica, o leva, pensamos, implicitamente, a uma relativa consciência de seu próprio universo discursivo, de como conta com ele para ser responsivo ao texto lido. E encontra eco na apreciação positiva da professora, que simetriza com ele: Muito bem. Você saberia o que fazê nesta situação! Além disso, o episódio descrito revela, também, como o próprio escritor da história contava com essa experiência, com esse conhecimento do leitor para entender e apreciar seu conto O príncipe desencantado se, por um lado, um beijo pode desencantar uma princesa, por outro pode deixar um príncipe desencantado, desiludido com ela; se um beijo pode desencantar, também pode encantar novamente e livrar um príncipe de um problema.