Atestados de capacidade técnica e a transferência de titularidade Renato Poltronieri * Vivian Wolf Krauss ** Conforme prevê o art. 27, inciso II da Lei 8.666/1990, um dos requisitos para habilitação de empresa em procedimento licitatório é a apresentação de documentação que comprove a qualificação técnica da empresa licitante. De acordo com o art. 30 da mesma Lei, esta comprovação de aptidão envolve quatro quesitos: o registro ou inscrição na entidade profissional competente; a comprovação do órgão licitante de que recebeu a documentação exigida; a comprovação do atendimento a requisitos especiais exigidos por lei (quando for o caso); e, finalmente - o que é tema deste artigo - a comprovação de aptidão técnico-operacional para o desempenho da atividade envolvida no objeto da licitação. Esta qualificação envolve tanto as instalações e aparelhamento da empresa quanto seu pessoal técnico. De acordo com o 1º do art. 30, nas licitações pertinentes a obras e serviços, tal qualificação deve ser feita por meio de atestados técnicos fornecidos por pessoas jurídicas competentes. Em processos de reorganização societária (fusões, cisões ou incorporações) ocorre, muitas vezes, a transferência de patrimônio material e profissional entre empresas: bens e profissionais são transferidos para uma incorporadora, ou para uma nova empresa resultante de fusão ou cisão. Diante disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem sido questionado, frequentemente, sobre duas questões: primeiro, se os atestados anteriores à reorganização societária são válidos (ou não) para habilitar as incorporadoras (ou novas empresas) em procedimentos licitatórios; e, segundo, se a reorganização societária ensejaria motivo suficiente para rescisão de contratos já vigentes, por parte da Administração Pública. * Mestre e Doutor em Direito, Professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e sócio do Demarest Advogados, especialista em Direito Público e Regulatório. ** Mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP) e acadêmica de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A resposta não poderia ser simples. Sua dificuldade advém da interpretação dos incisos VI e XI do art. 78 da Lei 8.666/1990: segundo eles, a subcontratação total ou parcial do objeto licitado constitui motivo para rescisão contratual, bem como a associação do contratado com outrem; sua cessão ou transferência total ou parcial; sua "fusão, cisão ou incorporação, não admitidas no edital e no contrato"; e a alteração social ou a modificação da finalidade ou estrutura da empresa que prejudique a execução do contrato. Assim, uma primeira leitura destes dispositivos poderia levar à conclusão de que as empresas que firmaram ou pretendessem firmar contratos com a Administração estariam indiretamente obrigados a manterem sua organização societária inalterada - o que indiretamente limitaria a flexibilidade do particular para reorganizar-se face às oscilações de mercado e para adotar novas estratégias empresariais e gerenciais. Já no ano de 2002 o TCU enfrentou esta questão em resposta à consulta realizada pelo então Deputado Federal Aécio Neves, Presidente da Câmara dos Deputados. O então Deputado questionava se era obrigatória a rescisão contratual por parte da Administração, nos casos de fusão, cisão ou incorporação de empresa contratada. A resposta do TCU à referida consulta se deu na forma do Acórdão nº 1108/2002, que se tornou paradigmático também para decisões referentes à habilitação e à validade dos atestados de capacidade técnico-operacional. Neste acórdão o TCU expõe um histórico de seu posicionamento sobre o tema, forte na necessidade de cisão dos contratos em que haja substituição do contratado por um terceiro, alheio à licitação. Neste sentido, o TCU esposava, até 2002, a tese de que "fica claro (...) que dará causa à rescisão do contrato qualquer ato que implique substituição do contratado por outra pessoa, ainda que esta signifique desdobramento daquele, como ocorre na incorporação, na fusão e na cisão". Entretanto, no acórdão nº 1108/2003, o TCU colaciona também a doutrina - praticamente unânime - forte no entendimento de que para poder rescindir o contrato a Administração deve comprovar o prejuízo à Administração decorrente da reestruturação societária. Além disso, diferencia os processos de fusão, cisão e incorporação, da simples sub-rogação:
"É forçoso reconhecer (...) que as situações de fusão, incorporação e cisão diferem bastante da sub-rogação. Naquelas, há uma modificação da empresa contratante, o que não ocorre na sub-rogação, que envolve, apenas, uma transferência de responsabilidade em relação a um contrato específico. Neste último caso, a administração contrata uma empresa, em regra via licitação, e quem acaba executando, total ou parcialmente, o contrato é um terceiro, completamente estranho, que não participou da licitação e sequer teve suas condições de habilitação verificadas. Nos demais casos, que constituem objeto desta consulta, a empresa sucessora não é completamente estranha àquela que foi inicialmente contratada, ainda que juridicamente elas sejam diversas. Em relação às condições de habilitação, deve-se exigir que a empresa sucessora possua os requisitos de habilitação exigidos inicialmente para que possa dar continuidade ao contrato. A inconstitucionalidade que se faz presente no caso da sub-rogação, por violação ao princípio da licitação, resta duvidosa no caso da cisão, fusão ou incorporação. Assim (...) me parece mais adequada a interpretação de que não é obrigatória a rescisão contratual no caso da empresa contratada ter passado por um desses processos, desde que esta possibilidade esteja prevista no edital e no contrato, conforme estabelece o art. 78, inciso VI da Lei º 8.666/93". O referido acórdão estabelece, em resumo, que devem ser observados três requisitos para que a incorporadora ou empresa fruto de cisão/fusão possa executar contrato firmado com a Administração: (i) haver previsão em edital para tanto; (ii) manutenção dos requisitos de habilitação comprovados na época da licitação; e (iii) manutenção do contrato nos exatos termos em que foi firmado. Além disso, como tem entendido a jurisprudência (acórdão nº 634/2007 - TCU - Plenário), o Órgão Público deve anuir expressamente com a manutenção do contrato, após a verificação dos itens acima. Por isso, antes da reestruturação societária e da transferência de patrimônio, é sempre seguro cientificar previamente o Órgão da Administração em questão e obter sua anuência prévia, para garantir a perfeição da reestruturação desejada. A interpretação dada pelo Acórdão nº 1108/2003 à questão da manutenção dos contratos já em vigor serviu como parâmetro para as recentes decisões do TCU com relação à validade dos atestados de capacidade técnico-operacionais.
Em jurisprudência recente, o Tribunal de Contas da União (TCU) reconheceu que pode ocorrer a transferência efetiva de capacidade técnico-operacional entre empresas que passaram por fusão, cisão ou incorporação. Por isso, o TCU entende que os atestados de capacidade técnica-operacional podem continuar válidos e utilizáveis para habilitação em licitações pela incorporadora (ou nova empresa decorrente da cisão/fusão), desde que fique comprovado que a capacidade técnica foi de fato transferida para a nova empresa. Os julgamentos são de 2012 e 2013. No Acórdão nº 2444/2012 - TCU - Plenário, o TCU considerou correto o entendimento de que "haverá de demonstrar-se, para efeito de admitir a aptidão técnico-operacional da empresa originada da cisão parcial, a perfeita linha de continuidade em termos de conhecimento técnico e padrão de qualidade que se verifica entre as empresas cindida e incorporadora. Isso porque a concepção que orientou criação da cindenda precisa decorrer da experiência adquirida pelo corpo técnico da empresa cindida". O TCU concluiu, assim, que a transferência de patrimônio realizada naquele caso havia tido o efetivo condão de transmitir à empresa subsidiária a capacidade técnicooperacional detida por sua holding, uma vez que além da transferência de parcela de seu patrimônio tangível, teria sido transferida também parcela significativa do conjunto subjetivo de variáveis que concorreram para a formação da cultura organizacional prevalecente na empresa anterior à reorganização. Por fim, decidiu reconhecer que existe transferência da capacidade técnica entre pessoas jurídicas tanto na no caso de transferência total do patrimônio e profissionais correspondentes, quanto no caso de sua transferência parcial. Assim, empresas cindendas podem aproveitar os atestados de capacidade técnico-operacional desde que comprovem a manutenção das características que embasaram a atestação desta capacidade. Esta decisão foi fundamental para embasar o Acórdão nº 1233 - TCU - Plenário, que reconheceu a efetiva possibilidade de utilização (pela incorporadora) de atestados de qualificação técnica de empresa incorporada para fins de habilitação em licitações públicas.
Esta transferência, entretanto, não é absoluta. Como já afirmado, depende da comprovação de que de fato houve transferência de patrimônio e profissionais na reestruturação realizada. Além disso, as Comissões de Licitação podem, a qualquer tempo, realizar diligências para aferir as reais condições da empresa que pretende contratar, conforme previsto na Lei 8.666/1990 ( 3º, art. 43). Se comprovado pela empresa que o patrimônio material e humano transferido a ela atendem aos requisitos de habilitação no certame e correspondem àquele aferido em seus atestados técnicos, não há motivos para que a Administração os recuse. Este é, sem dúvida, um importante passo na evolução da jurisprudência do TCU, como afirmou o Ministro-Relator Valmir Campelo no Acórdão nº 2444/2012. Para ele, "o Tribunal (...) deve continuar no processo de evolução da sua jurisprudência (...) de modo a acompanhar a dinâmica das modificações societárias que afetam o mundo empresarial globalizado, que impõe a necessidade de alterações na organização da sociedade para a sua própria sobrevivência, como bem disse o eminente Ministro emérito deste Tribunal Marcos Vilaça, ao proferir o Voto condutor do Acórdão 2071/2006 - TCU - Plenário". É, também, uma boa notícia para as empresas que contratam com o poder público, porque assegura a continuidade das atividades às pessoas jurídicas resultantes de reestruturação societária, sem que as novas empresas sejam obrigadas a esperar o fim de um longo processo de obtenção de atestados para realizarem contratações mediante licitação. Assim, desde que se comprove que efetivamente foram transferidos para a empresa licitante o patrimônio técnico e profissional, bem como os atestados de capacidade técnico-operacional da empresa originária, é plenamente válida a apresentação de tais atestados para efeito de habilitação em licitações públicas. Com a correta assessoria de profissionais versados nesta matéria, é perfeitamente possível a empresas que contratam com o poder público manterem seus contratos - e também, habilitarem-se em novos procedimentos licitatórios - mesmo que passem por restruturação societária de tipo fusão, cisão ou incorporação, como demonstrou o novo entendimento jurisprudencial do TCU. ***