ISSN 0101-9228. Ciência e Sociedade. CBPF-CS-004/10 October 2010 ARTE, FÍSICA E GEOMETRIA NO RENASCIMENTO. Francisco Caruso



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Transcrição:

ISSN 0101-9228 Ciência e Sociedade October 2010 ARTE, FÍSICA E GEOMETRIA NO RENASCIMENTO Francisco Caruso

ARTE, FÍSICA E GEOMETRIA NO RENASCIMENTO 1 Francisco Caruso Uma das maiores contribuições do Renascimento Italiano é, em última análise, a mudança do conceito de verdade, e de como buscá-la, com enorme impacto sobre a Arte e a Ciência, entendidas com formas de representação da Natureza. Aos poucos, vai se disseminando a ideia de que se deve observar a natureza tal qual ela é. No lento processo que caracteriza este riquíssimo período histórico, no qual o que podemos chamar de um genérico estado mental religioso medieval foi sacudido e aparece uma nova orientação, seja para o desenvolvimento do pensamento teológico (através da Reforma), seja do pensamento filosófico-científico, é digna de destaque a contribuição de um novo suporte da escrita: o livro impresso. A invenção da imprensa teve, em última análise, um papel na história da ciência e na história das religiões, do momento em que contribuiu para preparar a transição do pensamento medieval ao pensamento moderno e para disseminar o conhecimento. A Idade Média representou, sem dúvida, um longo período de transição entre a enunciação oral e a palavra escrita. De fato, enquanto a Europa da alta Idade Média era caracterizada por alguns ambientes isolados, sobretudo monásticos, nos quais a prática da escrita quase se limitava a textos latinos doutrinários, depois do século XIII, houve uma significativa multiplicação dos centros de produção literária, acompanhada de uma diversificação dos textos escritos em línguas nacionais. Entre as conquistas técnicas alcançadas por volta da metade do século XV, encontram-se o conjunto de meios materiais indispensáveis à invenção da imprensa, tal qual ocorre na Europa. A isto se sobrepõe como resultado desse novo ambiente cultural e intelectual o aumento da demanda por livros que então se afigurava: esse era o cenário nos albores da imprensa. É neste cenário que começa a se construir um novo estado mental que preparará o caminho para o Renascimento e para a Revolução Científica. Entretanto, do ponto de vista da história das ideias, como toda mudança profunda, esta também tem importantes raízes que remontam aos séculos XII e XIII. Na Arte, por exemplo, é fácil notar que o dourado é a cor consagrada do céu medieval, marca da pintura bizantina, que simboliza o quão rico é este lugar para uma cultura essencialmente teocêntrica. Durante séculos, Bizâncio foi um centro onde se fundiram as correntes culturais de toda a região mediterrânea e do Oriente Médio, tendo influenciado o desenvolvimento da cultura e da arte em diversos povos da Europa e da Ásia. O uso em abundância do dourado está associado à riqueza material do ouro. Por um lado, corrobora a ostentação da Igreja naquela época; por outro, o céu a morada de Deus e o lugar onde as almas boas desfrutariam da vida eterna deve ser o que há de mais valioso a ser almejado pelos homens de bem. Portanto, este céu estilizado, dourado, casa da vida eterna, é um céu a ser admirado, a ser contemplado, a ser respeitado. Na Figura 1, vemos um exemplo de uma pintura emblemática de Duccio di Buoninsegna (1255-1319), provavelmente o mais influente artista de Siena do seu tempo, contemporâneo de Giotto di Bondone (1266-1337), na qual se destaca o céu completamente dourado. Giotto será o primeiro, neste período, a pintar o céu de azul, 1 Uma versão reduzida foi publicada com o título Pintura, Física e Geometria, na revista Leituras da História, n. 34, p. 60-65 (2010).

-2- sob inspiração franciscana, como veremos a seguir, como um reflexo de uma nova compreensão da Natureza e do próprio homem que começa, então, a ser construída. Figura 1 Duccio, o chamado dos apóstolos Pedro e André, 1308-1311. De fato, São Francisco lança um novo olhar sobre a Natureza, buscando, na simplicidade e na harmonia das coisas, a beleza suprema da obra divina. Como afirma Walter Nigg (1903-1988), Francisco enxergou a realidade verdadeira da criação, que nós só conseguimos captar por meio de comparações. Sentimos em todas as suas palavras a imagem viva de Deus nas coisas. O comportamento de Francisco diante das criaturas mudas era um verdadeiro retorno ao paraíso (...). O homem de Assis é quem vai pregar para os pássaros, como retrata a pintura do próprio Giotto, reproduzida na Figura 2, e vai ver, em todas as criaturas e coisas do Mundo, a mão do Criador. Figura 2 - Giotto, São Francisco de Assis pregando aos pássaros.

-3- Este ato é um ato de amor, um ato integrador: todas as criaturas são expressões da vontade de Deus. É de São Francisco a ideia de que há outro livro diferente da Bíblia que pode nos levar a Deus: O Livro da Natureza, construído a partir da observação de como realmente ela é. Esta metáfora do Livro da Natureza será consagrada por autores como Dante Alighieri (1265-1321) e Galileu Galilei (1564-1642). Como enfatiza o historiador Jaques Le Goff, há um domínio em que se considera que a influência de São Francisco, de sua sensibilidade, de sua devoção tenha sido decisiva e tenha levado o Ocidente aos caminhos novos do modernismo: a arte.. Não por acaso, Giotto é considerado o elo de ligação entre a pintura medieval bizantina e a pintura renascentista. Introdutor do espaço tridimensional e da perspectivas na pintura, Giotto, em cuja obra o céu é representado em tons de azul, é fiel a um compromisso com os ideais franciscanos, que refletem uma nova visão mais humanista do Mundo e mais realista das coisas. Este legado franciscano vai longe, tangenciando também a Ciência. De fato, é freqüente encontrarmos franciscanos que se dedicaram a estudos científicos. Podemos citar, por exemplo, Roger Bacon (1214-1294) que, por volta de 1240, ingressou para a Ordem Franciscana, onde, sob influência de Robert Grosseteste (1168-1253), dedicouse a estudos nos quais introduziu a observação da natureza e a experimentação como fundamentos do conhecimento natural. Na verdade ele foi além de seu tutor, afirmando que o método científico depende de observação, da experimentação, da elaboração de hipóteses e da necessidade de verificação independente. Também o nominalismo de William de Ockham (1280-1349) tem raízes franciscanas. Os nominalistas vão tender a considerar apenas a causa eficiente de Aristóteles como a única causa necessária e não se pode negar que este será, mais tarde, o fulcro da Mecânica desenvolvida pelo grande Isaac Newton (1643-1727). Um dos primeiros filósofos renascentistas, o cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464) dá, com seu pensamento, importante contribuição ao processo de transição da Idade Média para o Renascimento. Além de ter sido um dos primeiros a questionar o modelo ptolomaico geocêntrico do mundo (Figura 3), percebeu que em tudo havia Matemática e que esta deveria ser a linguagem da Ciência. Figura 3 - Representação antiga do Mundo de Ptolomeu.

-4- No que se refere a esta compreensão ainda embrionária de um novo método científico que só vai se consolidar com Galileu é ela que, em última análise, irá libertar de vez a Ciência, e em particular a Astronomia, de todo um conjunto de atitudes cerceadoras, impostas pela representação sistemática do céu dourado. Assim, há autores que consideram Nicolau Copérnico (1473-1543) um divisor de águas. Alexandre Koyré (1892-1964), importante historiador da Ciência, por exemplo, afirma que O ano de 1543, ano da publicação do De Revolutionibus Orbium Coelestium e o da morte do autor, Nicolau Copérnico, marca uma data importante na história do pensamento humano. Estamos tentados a considerar essa data como significando 'o fim da idade média e o começo dos tempos modernos', porque, mais que a conquista de Constantinopla pelos turcos ou a descoberta da América por Cristóvão Colombo, ela simboliza o fim de um mundo e o começo de outro. Para o grande Leonardo da Vinci (1452-1519), tanto a Arte como a Ciência são provenientes da natureza, produzidas pela imaginação e pela razão, respectivamente. E tanto a razão como a imaginação seriam tomadas como diferentes maneiras do homem criar e dar forma. Minha intenção, afirma ainda Da Vinci, consiste em, primeiramente, aduzir o experimento para depois demonstrar, com a ajudada razão, porque tal experimento necessariamente só produz seus efeitos dessa forma, e não de outra. E este é o verdadeiro procedimento a ser adotado pelo pesquisador das ações da natureza, pois ainda que a natureza comece com a razão e termine com a experiência, precisamos percorrer o caminho oposto, isto é, precisamos começar com o experimento e, a partir dele, investigar a razão. Com isso, Leonardo quis mostrar que a razão e o experimento são etapas do mesmo processo, o do descobrimento do saber científico, incluindo a busca da evidência empírica. É este conceito e entendimento do ato de produzir o conhecimento científico que vai guiar todos os seus adeptos e contemporâneos do movimento renascentista. Leonardo via na experimentação um instrumento de honestidade intelectual, como expressa com muita clareza na passagem: Meu propósito é resolver um problema [científico] em conformidade com a experiência (...) e devemos consultar a experiência em uma certa variedade de casos e circunstâncias, até podermos extrair deles uma regra geral que esteja contida nos mesmos (...). Elas nos conduzem a ulteriores investigações da natureza e a criações da arte. Impede-nos de iludirmos a nós mesmos, ou a outros, ao acenarmos com resultados que não possam ser obtidos. Podemos adiantar que Galileu Galilei condivide esta opinião de Leonardo ao afirmar, em seu famoso Diálogo, de 1632, que nas ciências naturais, cujas conclusões são verdadeiras e necessárias e não têm qualquer relação com o arbítrio humano, é preciso precaver-se para não se colocar em defesa do falso (...). A última raiz do Renascimento à qual queremos aludir é a retomada de interesse pelos estudos de Geometria. Há, de fato, um crescente atrativo pela Geometria nos últimos séculos da Idade Média, associado, em uma primeira fase, ao desenvolvimento de uma tecnologia entre os séculos XI e XIV, notadamente: a invenção do moinho de vento e de artefatos mecânicos movidos pela força hidráulica, aperfeiçoamentos náuticos e textis, a invenção do relógio e a construção das catedrais; em uma fase seguinte, haverá uma retomada de interesse por este ramo da Matemática no meio

-5- artístico e acadêmico, e na pintura do Renascimento Italiano, e na Astronomia, através de Copérnico, Kepler e Galileu. Não é por acaso que, no século XV, o livro Os Elementos da Geometria de Euclides figurava entre as obras mais procuradas pelos scholars. Platão havia operado o que muitos autores denominam de a primeira geometrização da Física. Em sua filosofia, procurava identificar os corpos físicos com o mundo das formas geométricas. Estas seriam a essência do Mundo. O mundo perfeito das idéias, no qual a physis é representada, é para Platão o mundo da Geometria. Do ponto de vista epistemológico, o programa platônico de valorizar a ciência, a epistheme, e de combater a opinião, a dóxa, leva, simultaneamente, à sedimentação do pensamento geométrico e à crítica severa da cultura oral, representada pelos Sofistas e pelos Poetas. A Geometria era vista como parte essencial da formação dos filósofos, ao ponto de se propagar o fato de que Platão teria mandado escrever na porta de sua Academia algo como proibida a entrada a quem não conhece Geometria. Figura 4 - Dürer, um homem desenhando um instrumento musical utilizando a perspectiva. É digno de nota que a invenção da imprensa é contemporânea a uma tendência de geometrizar a pintura, evidente na obra dos renascentistas Masaccio (1401-1428), Piero della Francesca (1416-1492), Rafaello Sanzio (1483-1520) e outros, marcada pela perspectiva (Figura 4). Esse fato reflete uma nova propensão de representar o mundo no espaço pictórico, no qual a tela não é mais somente um suporte de uma arte simbólica bidimensional, mas algo que pode dar vida e significado ao espaço perceptivo tridimensional através da perspectiva. Tal movimento espelha um novo tipo de relação do homem com o mundo, presságio da ruptura com o pensamento medieval, que não deve ser entendido como um fato cultural isolado; na realidade, preanuncia o início daquilo que podemos chamar de a segunda geometrização da física. Um dos primeiros inovadores da época, com relação à complementaridade da arte com a matemática, foi o pintor Masaccio. Ele foi o responsável pelas primeiras

-6- obras feitas em perspectiva, tal qual a conhecemos hoje. Ele conseguiu criar com perfeição a ilusão de profundidade em seus quadros e afrescos (vide Figura 5) e traduzir para as imagens algo que nunca antes tinha sido alcançado (a tridimensionalidade do mundo). Figura 5 Particular de um afresco de Masaccio, cerca de 1451, Urbino, Itália. Vejamos, por exemplo, o quadro Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca reproduzido na Figura 6. Figura 6 - Flagelação de Cristo, de Piero della Francesca. Um observador acostumado a decodificar apenas quadros medievais, nos quais os artistas recorriam a uma série de simbolismos, teria muita dificuldade em enterder

-7- por que o Cristo é menor do que os demais personagens. Nossa mente, acostumada com o uso da perspectiva na pintura, imediatamente conclui que o tamanho é uma simples consequência do fato de o Cristo estar em um plano no fundo da cena. Linhas do teto e do chão, confluentes para um ponto, são a pista para essa leitura do quadro. Isto nada tem a ver com quem é o personagem mais importante do quadro. Note também o céu azul e o chão quadriculado de mármore, parecido com um tabuleiro de damas. Tal representação é recorrente na pintura deste período e alude ao espaço euclidiano, plano e homogêneo, espaço este que será também adotado pela Física pós-aristotélica. Em uma das pinturas mais famosas do Renascimento, afresco encomendado pelo Vaticano, a Escola de Atenas de Rafael, vemos a representação de filósofos e pensadores de diversas épocas dividos em grupos de estudiosos em torno de Platão e Aristóteles que estão no centro (Figura 7). Figura 7 - Escola de Atenas, de Rafael. O ponto que nos interessa comentar aqui é uma espécie de declaração pública de Rafael sobre a importância da Geometria. De fato, ele próprio se inclui no grupo do primeiro plano à direita, que estuda Geometria com Euclides, Ptolomeu e outros. Afinal, o quadro representa a Academia de Platão. Vocês se lembram da frase que Platão teria mandado afixar na entrada? Pois então, no frontespício da edição de 1543 da obra maior de Copérnico sobre o movimento das estrelas fixas e dos planetas (Figura 8), por exemplo, se antepõe uma advertência escrita em grego (assinalada em amarelo), de cunho platônico: ninguém não treinado em geometria deve entrar naquele livro.

-8- Figura 8 Frontespício da obra maior de Copérnico publicada em 1543. Declaração análoga é encontrada no frontespício da primeira obra impressa de Kepler (Figura 9), de 1596. Figura 9 - Pródromo de um livro de Kepler publicado em 1596. Mais tarde, Galileu lança as bases do método científico moderno, associando, de modo indissolúvel, o conhecimento empírico e a Matemática, em particular, a Geometria. Referindo-se também ao universo como um grandíssimo Livro, Galileu

-9- reassalta, no Il Saggiatore, que a Geometria é a linguagem do Livro da Natureza. Em suas palavras: O grandíssimo livro [da Natureza] está escrito em língua matemática e os caracteres são os triângulos, círculos e outras figuras geométricas (...) sem as quais se estará vagueando em vão por um obscuro labirinto. O Livro torna-se o símbolo por excelência da relação entre homem e Deus na nova cosmovisão cristã, que ainda tem forte influência sobre a Ciência. Como já mencionamos, o Livro da Natureza soma-se ao Livro das Escrituras como caminho de se chegar a Deus. No novo mundo da Ciência que começou a se delinear com Copérnico, Galileu foi o primeiro astrônomo a utilizar o telescópio em toda a sua potencialidade, o que o levou a observar as crateras da Lua e os satélites de Júpiter. É importante destacar que uma cultura na qual se pinta o céu de dourado é incapaz de produzir a revolução copernicana, de descobrir as imperfeições da lua, como fez Galileu (Figura 10). Figura 10 - Desenhos da lua, destacando suas imperfeições, feitos pelo próprio Galileu. Só o céu azul pode ser escrutinado com uma luneta (ou, mais tarde, com um telescópio), tornando-se objeto de um olhar investigativo, questionador e de estudos empíricos. É o céu da nova Física, da nova Astronomia. A Arte, nesse particular, antecedeu a Ciência, como vimos, a partir das visões revolucionárias de São Francisco de Assis e de um mundo que estava começando a mudar, tão bem retratado por Giotto. Mais tarde, Newton, ao contrário de Galileu, sustenta que a Geometria, não é um sistema de proposições puramente hipotético, dedutível logicamente de axiomas e definições; ao contrário, não é outra coisa senão uma espécie de ramo da Mecânica. Paralelamente a essa escalada do pensamento geométrico no Renascimento, nasce uma crise na Ciência. Do momento em que Copérnico anuncia que a Terra não é mais o centro do Mundo, é introduzida uma inconsistência: enquanto o mundo terrestre (sublunar) continua a ser descrito pela física aristotélica, a nova astronomia é antiaristotélica. Essa crise se relaciona à questão do espaço físico e a sua solução requer

-10- a reunificação da Física e da Astronomia. Foi Newton quem a resolveu, explicando a dinâmica dos corpos celestes e terrestres por meio de uma teoria universal da gravitação a base da revolução newtoniana na ciência, introduzindo o conceito de espaço absoluto e adotando um novo sistema explicativo causal. Ele construiu sua Física em torno do conceito de espaço absoluto. Assim, Newton conseguiu finalmente conciliar uma teoria do movimento com a identificação do espaço com Deus, coisa que nenhuma teoria física medieval foi capaz de alcançar. Mas se Deus não é mais a causa do movimento é necessário introduzir um outro conceito responsável pela origem do movimento: o de força. No que se refere, entretanto, à compreensão física do mundo, o mecanicismo é o corpus que dominará o cenário científico-filosófico até o início do século XX, mas isto é outra história. Referências bibliográficas: - Alexander Koyré: La Revolution Astronomique. Paris: Hermann (1961), p. 15. - Bülent Atalay, A Matemática e a Monalisa. São Paulo: Mercuryo Editora (2007). - Francisco Caruso & Roberto Moreira Xavier: A Física e a Geometrização do Mundo: Construindo uma Cosmovisão Científica in Jenner Barreto Bastos Filho; Nádia Fernanda Maia de Amorim; Vinicius Nobre Lages (Orgs.): Cultura e Desenvolvimento: A Sustentabilidade Cultural em Questão. Recife: EDUFPE, p. 85-106 (1999). -Ernest Cassirer: Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, Rio de Janeiro: Martins Fontes, (2001). - Jaques le Goff: São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Editora Record (2001).