PRÁTICAS DE ESCRITA DE JOVENS E ADULTOS EM EVENTOS DE LETRAMENTO Marta Lima de Souza UFF e UFRJ



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Transcrição:

PRÁTICAS DE ESCRITA DE JOVENS E ADULTOS EM EVENTOS DE LETRAMENTO Marta Lima de Souza UFF e UFRJ Introdução Jovens e adultos, não alfabetizados e não escolarizados, interagem de formas diferenciadas com a linguagem escrita, ainda que não saibam ler nem escrever na perspectiva hegemônica da escrita, trazendo-nos questões iniciais: em que se constitui a escrita para jovens e adultos? O que escrevem? Como escrevem? Para quem? Por quê? Para quê? Onde? Quando? Quem é esse jovem e adulto, em geral, identificado como analfabeto? Que sentidos atribuem às práticas de escrita? Há diferentes modos de ser letrado para além daqueles ditos escolares? Como a escrita atravessa e se atravessa suas vidas? Buscando discuti-las, apresentamos o referencial teórico, as questões preliminares e a análise parcial de pesquisa em andamento, que visa compreender diferentes modos de ser letrado de jovens e adultos, em eventos de letramento (Heath, 2008). Referenciais teórico-metodológicos e objetivos O conceito de letramento (Kleiman & Oliveira, 2008; Kleiman, 1995; Tfouni, 1996) adotado envolve as práticas sociais de leitura e de escrita em contextos próprios e para fins específicos (Kleiman, 1995), visto que a alfabetização, centrada na codificação e decodificação de letras e sons, na perspectiva do Modelo de Letramento Autônomo (Street, 2008; 2003; 1984), não dá conta das práticas sociais de leitura e escrita jovens e adultos. Essa concepção de letramento associa-se ao conceito de gêneros do discurso (Bakhtin, 2003), que caracterizam as classes sociais diferentemente do ponto de vista discursivo. Os gêneros do discurso são formas comunicativas que não são adquiridas em manuais, mas sim nos processos interativos, pois: a língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não as conhecemos por meio dos dicionários ou manuais de gramática, mas sim graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação discursiva efetiva com as pessoas que nos rodeiam. (Bakhtin, 2000, p.268) A comunicação discursiva remete aos eventos de letramento que são, segundo Heath (2008), aqueles em que a linguagem escrita é essencial à natureza das interações e aos processos e às estratégias interpretativas de seus participantes. No evento, entretanto,

2 não há necessariamente o texto escrito presente na situação social, mas essa se cria e é desenvolvida com base em produção ou produções escritas, ainda que isso não seja visível. Nesse sentido, a análise de enunciações escritas e a caracterização de diferentes modos de ser letrados dos jovens e adultos, de produções discursivas em contextos fora da escola, podem se mostrar produtivas, na tentativa de compreender que saberes circulam na sociedade e de que modo, bem como para a reflexão sobre processos de aprendizagem. Fizemos um recorte da pesquisa em função do limite espacial do texto, destacando um dos objetivos: investigar práticas de escrita de jovens e adultos em eventos de letramento, na esfera (Bakhtin, 2003) da família de que participam, visando retroalimentar o processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita. Esse objetivo expressa-se na forma de uma pergunta de partida (Quivy & Campenhoudt, 1992): quais são as práticas de escrita de que participam jovens e adultos em eventos de letramento na esfera familiar? Os sujeitos da pesquisa são jovens e adultos que se encontram fora da escola, pouco escolarizados, residem no município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa é qualitativa em consonância com os problemas que se deseja investigar (Brandão, 1999). Baseia-se no paradigma indiciário (Ginzburg, 2002), por meio do qual se pretende compreender indícios de diferentes modos de ser letrado de jovens e adultos para além da esfera escolar. Isso possibilita caracterizar formas de escrita que advêm das práticas e vivências na cultura e na relação que estabelecem com a linguagem, como legítimas daqueles que fazem usos sociais de práticas de escrita que podem ser compreendidas a partir da busca indiciária, nas enunciações dos sujeitos (Mello, 1998, p.106). Os instrumentos de pesquisa são a observação e a entrevista, ambos semi-estruturados. Além desses, usamos cadernos de campo, questionário e fotografia à medida que a interação dos jovens e adultos com as práticas de escrita em eventos de letramento mostrar necessário. Destacamos o caráter constitutivo da linguagem na formação do sujeito que, por meio de experiências nas diferentes práticas e eventos sociais, se constitui e constitui a linguagem, isto é, faz-se e refaz-se na direção do outro.

3 Práticas de escrita de Creuza 1 : O que? Como? Para quem? Por quê? Para quê? Onde? Quando? - escrevem jovens e adultos Creuza tem 64 anos, estudou até a antiga terceira série do Ensino Fundamental, aposentou-se como doméstica. A análise parcial é oriunda do cruzamento de dados entre os instrumentos utilizados. Evidenciamos 15 práticas de escrita em eventos de letramento na esfera familiar de Creuza, nos quais pode haver ou não a presença de material escrito: ler revistas e jornais; ler livros religiosos; escrever cartas para familiares; registrar informações compromissos, sentimentos e emoções pessoais em agendas; comunicar através de bilhetes; solicitar filhos alfabetizados a leitura, escrita e preenchimento de cartas, formulários etc; leitura e compreensão de textos religiosos; assistir à DVD s sobre temas religiosos; assistir aos programas de TV (novelas, infantis, noticiários etc.); escrever ingredientes para fazer pratos culinários; fazer registros de despesas com obras; ir ao banco efetuar saques, pagar contas, receber aposentadoria; consultar receitas médicas para comprar remédios controlados; fazer crediários em grandes magazines; contar histórias orais e participar de grupo de cantos religiosos. Observamos que as relações dialógicas estão presentes nas práticas de escrita: a revista da filha que, além de informar, aproxima do universo jovem; os livros religiosos que, além de fixar sentidos, aproximam de seus irmãos de igreja e de sua espiritualidade; a carta e o telefonema que tentam vencer a distância saudosa de um parente; o bilhete que avisa o que é preciso fazer, que continua a organizar a vida familiar enquanto o corpo está ausente (Lahire, 2004); a lista de ingredientes que impede de esquecer. Há nas práticas a presença do outro: a linguagem só vive na comunicação dialógica entre aqueles que a usam, a vida da linguagem, seja qual for o campo de uso (cotidiano, prático, científico, abstrato, etc.), está impregnada de relações dialógicas (Bakhtin, 2003). São as relações dialógicas, as situações discursivas que pretende travar com o outro, que determinam os gêneros do discurso e não o contrário, isto é, os enunciados de Creuza constituem-se pelo tema e pelos sentidos, ou seja, pela escolha dos meios lingüísticos e dos gêneros do discurso, tendo como base o objeto e o sentido do dizer; a subjetividade emocional e valorativa do que diz, a construção composicional, como diz; os procedimentos composicionais que visam à organização, à disposição e ao acabamento do discurso. 1 É um dos sujeitos da pesquisa, teve nome alterado visando preservar a identidade.

4 Essas práticas denotam a diversidade de relações que o pesquisado tem com a escrita, em sua grande maioria, invisibilizadas quando imprimimos ao outro mais escolarizado tais práticas e homogeneizamos os sujeitos quanto à escrita que circula entre eles. Essa visão é ratificada inclusive pelos que delas participam como Creuza, quando questionada se escreve, afirma que não escreve ou escreve muito pouco; corroboram a afirmação de uma variedade sobre as outras por meio da associação à escrita e da transmissão de informações de ordem política e cultural (Gnerre, 1998). Creuza escreve em cadernos que ficam abertos como blocos de anotações, próximos à mão, quando alguém precisa fazer um registro: carta para sobrinha, bilhete para a filha, lista de ingredientes para fazer um prato de comida, contas, recados para a própria Creuza, anotações de versículos bíblicos. (Nota de campo, 12/11/2009) Quanto à carta, ela escreve e, às vezes, depois, pede à filha para reescrever, corrigindo o que está errado; em outras, pede que escreva diretamente, ou seja, dita para ela escrever. Planeja o que quer dizer, é como se fizesse um rascunho escrito ou oral que passa por um olhar corretor do outro já incorporado ao próprio olhar sobre aquilo que escreve. Compreende, entretanto, que escrever não é e não será o mesmo que falar, visto que implica escolher as formas e os conteúdos para fazê-lo, dentro de uma língua oficialmente aceita, que todos precisam produzir e entender nas relações com o poder (Gnerre, 1998). Ou seja, é preciso legitimar a escrita, torná-la digna, de modo que seja reconhecida e aceita. Conclusões Preliminares As práticas de escrita do sujeito pesquisado em eventos de letramento, tomadas na esfera familiar, revelam aspectos singulares de usos diversificados e eficientes da escrita em seu cotidiano. Mesmo que não domine a língua abstrata, objetivada, expressa na norma-padrão, Creuza interage e participa de situações discursivas, de relações dialógicas, por meio de usos diferenciados da escrita como cidadã efetiva que mobiliza saberes para agir em uma sociedade na qual a garantia de direitos e o cumprimento de deveres são atravessados pela escrita (Tinoco, 2008). Observamos que lê e escreve para dar conta de atribuições cotidianas e para agir no mundo, mas sempre em relações mediadas pelo outro: ela mesma, a filha, os familiares, os integrantes a igreja, etc. Assim, tais práticas são exigências da vida cotidiana, das

5 esferas da atividade humana, da necessidade de comunicação ativa com o outro, em que a palavra é sempre dirigida à alteridade (Bakhtin, 2003). Investigar modos de ser letrado implica reconhecer e compreender a multiplicidade de formas de escrever e de objetos de escrita, tendo como centrais os enunciadores e suas práticas enunciativas; e ampliar o horizonte da escrita envolvendo a diversidade de modos de ser letrado, assim como seu ensino e aprendizagem enquanto processos complexos, à medida que compreendemos as diferentes inserções de jovens e adultos na sociedade. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do Discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Trad.: Paulo Bezerra. BRANDÃO, Z. Entre questionários e entrevistas. Rio de Janeiro: PUC, Revista de Educação. n. 44, Mai.1999. GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais-morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002/1986. GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. KLEIMAN, A & OLIVEIRA, M. do S. (orgs.) Letramentos múltiplos: agentes, práticas, representações. Natal: EDUFRN, 2008.. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995. LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 2004. Trad.: Ramon Américo Vasques & Sonia Goldfeder. MELLO, M. B. de. A multiplicidade das formas de ser racional: escrita e Racionalidade. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense,1998. (inédita) QUIVY, R. & VAN CAMPENHOUDT, L. Manual de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Godiva, 1992. STREET, B. & HEATH, B.S. On ethnography: approaches to language and literacy research. New York: Teachers College Press, National Conference on Research in Language and Literacy (NCRLL), 2008.. Abordagens Alternativas ao Letramento e Desenvolvimento. In: Teleconferência UNESCO Brasil sobre Letramento e Diversidade. Out./2003. Literacy in Theory and Practice. Cambridge, Cambridge University Press, 1984. TINOCO, G. M. A. Projetos de letramento: ação e formação de professores de língua materna. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada/Instituto de Estudos de Linguagem). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. (inédita)