Simulação da realidade e simulacro na história em quadrinhos Cidade de Vidro Daniela dos Santos Domingues Marino Professora-tutora Unimes dsdomingues@hotmail.com Resumo: O presente artigo busca identificar marcadores que possam confirmar a presença dos conceitos de simulação de realidade e simulacro na história em quadrinhos Cidade de Vidro, baseada na obra homônima de Paul Auster. Platão tratou os conceitos de simulação da realidade e simulacro em obras como O Sofista e A República, onde procurou estabelecer as particularidades que distinguem um objeto de sua imagem semelhante ou mimética de suas reproduções e simulacros, mas suas ideias são questionadas pelo filósofo Gilles Deleuze em Platão e o Simulacro ao citar o termo reversão do platonismo de Nietzche e expandidas em conceitos sobre hiper-realidade de Jean Baudrillard em Simulações e Simulacros. Palavras-chave: Quadrinhos; Simulação; Simulacro. 1
INTRODUÇÃO Um telefonema errado, a pessoa errada e a vida do escritor de romances policiais Daniel Quinn toma um rumo que o leva a uma investigação digna de seus livros. Não sabemos muito sobre Quinn, a não ser que teria perdido esposa e filho e que a partir deste evento resolve assumir um pseudônimo para continuar publicando seus livros. Sua fuga da realidade através da invenção de um nome e de suas andanças aleatórias pela cidade de Nova York encontra fundamento nas teorias de Freud sobre a perda da realidade na neurose e na psicose, onde o psicanalista afirma que toda neurose perturba a relação do paciente com a realidade e que em casos mais graves, significaria uma fuga concreta da vida real (FREUD, 1924, p. 1): Onde quer que eu não esteja é onde me sinto eu mesmo (KARASIK; MAZZUCHELLI, 1998, p. 104). Se Quinn já havia obliterado sua existência através do pseudônimo William Wilson, ao receber um telefonema misterioso procurando o detetive Paul Auster ele assume uma terceira personalidade. Embora este processo se dê de forma consciente uma vez que Quinn decide como deve agir de acordo com as circunstâncias, a realidade é percebida por ele conforme a identidade que assume. Fig. I - Reprodução - Mazzucchelli. Daniel Quinn Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998) Ao aceitar o caso de Peter Stillman como o detetive Paul Auster, Quinn é levado a uma busca de resultado tão inconclusivo quanto sua própria história, deixando o leitor com dúvidas sobre a ocorrência dos fatos ou mesmo sobre a existência dos personagens 2
envolvidos. Este questionamento acerca da realidade e a percepção dos personagens sobre ela nos remete às teorias de Jean Baudrillard que teriam influenciado a criação de roteiros de filmes como Cidade das Sombras(1998),13º Andar(1999) e Matrix (1999), obras cujos fundamentos mantêm um diálogo constante com a HQ de Cidade de Vidro. Da mesma forma que conceitos de simulação da realidade e seus simulacros podem ser identificados na adaptação de Cidade de Vidro para os quadrinhos, estes conceitos também podem ser aplicados à comparação da obra original com sua versão a partir das ideias de Platão, Deleuze e Hutcheon onde o questionamento se relaciona muito mais com o valor de cada uma do que propriamente com a percepção da realidade dos personagens, mas cujas raízes estão na discussão sobre a importância de uma obra em relação às suas cópias, principalmente após o advento da litografia, da imprensa, da fotografia e do cinema, que teriam possibilitado a reprodução de obras em escala industrial. Independentemente da conclusão que possamos chegar, é possível dizer que não só os conceitos de simulação e simulacro permitem leituras múltiplas da obra de Paul Auster, de acordo com autor escolhido, como também possibilitam a comparação da obra original e sua versão para HQ sob a perspectiva dos valores estabelecidos em obras clássicas e contemporâneas. SIMULAÇÃO E SIMULACRO Todo ponto de vista é a vista de algum ponto. Leonardo Boff A famosa Alegoria da Caverna usada por Platão em seu livro A República serviu de referência para diversas obras e interpretações desde que foi contada pela primeira vez. O filósofo grego demonstra que em situações específicas, o ser humano tomaria como verdade algo que não é real, mas que de acordo com a perspectiva de onde observa, tal concepção é a única a que tem acesso, portanto, não seria a realidade um conceito relativo? Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?(platão, 2000, p. 298) 3
Em relação ao pensamento platônico é válido lembrar que em sua concepção a realidade é uma representação do mundo das ideias, ou seja, o que vemos e experimentamos é uma simulação da verdade que só seria conhecida por Deus, mas sendo o homem sua imagem e semelhança, a realidade nada seria além de uma cópia perfeita, uma reprodução fiel da ideia original. Fig. II- Reprodução - Mazzucchelli. Visão de Quinn sobre o panfleto de Stillman Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998) No entanto, o que Platão parecia buscar não se limitava em distinguir a verdade de suas versões, mas em selecionar, filtrar. Tratava-se de fazer a diferença. Distinguir a coisa mesma e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro. (DELEUZE: 2000, 259). Se dizemos do simulacro que é uma cópia de cópia, um ícone infinitamente degradado, uma semelhança infinitamente afrouxada, passamos à margem do essencial: a diferença de natureza entre o simulacro e cópia, o aspecto pelo qual formam as duas metades de uma divisão. A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem. Tornamo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. (DELEUZE, 2000, p. 263) 4
Nesse sentido, o que Deleuze propõe ao citar o termo reversão do platonismo de Nietzche é mostrar que as unidades escolhidas por Platão nem sempre são equivalentes e que sua filtragem se refere muito mais à linhagem das coisas do que propriamente aos gêneros aos quais pertencem. Um exemplo é o longo diálogo travado em O Sofista, onde o principal objetivo, após categorizar todas as divisões possíveis do que pode ser considerado real e verdadeiro, é provar que o conhecimento atestado pelos sofistas não passava de simulacros, longe da ideia original do que quer que fosse. Fig. III- Reprodução - Mazzucchelli. Visão de Quinn sobre o panfleto de Stillman - Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998) 5
Este diálogo não parece muito diferente da explicação de Peter Stillman à Quinn quando defende a criação de uma nova linguagem para que possamos voltar a nos aproximar de Deus. Em sua loucura, Stillman (pai) acreditava que quando da queda do homem, a linguagem havia se separado de sua versão original divina, portanto, seria necessário que uma nova linguagem fosse criada, substituindo a que conhemos. Se Deleuze afirma que ao final de O Sofista o próprio Platão põe em questão as noções de cópia e de modelo, não é diferente em Cidade de Vidro, quando ao final da história, Quinn não tem certeza se o caso Stillman aconteceu e o leitor, guiado pelo narrador e personagem Paul Auster (nunca existiu um detetive com esse nome), não consegue decidir se qualquer fato mencionado teria ocorrido e se Daniel Quinn teria existido em algum momento. O caminho percorrido por Sócrates é tão vago quanto o de Quinn. A realidade é igualmente líquida nas duas obras, mas será que tudo isso importa? Fig. IV- Reprodução - Mazzucchelli. Fala do escritor Paul Auster (Personagem) Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998) HIPER-REALIDADE O filme Matrix (1999) é considerado um marco do cinema mundial, não só por seus efeitos especiais inovadores, mas pelo enredo que pode ser considerado no mínimo impactante, porém, não foi o único a se inspirar nas teorias de Jean Baudrillard e Platão sobre a simulação da realidade e simulacro. Na mesma época em que foi lançado Matrix, filmes como O show de Truman (1998) e O 13º andar (1999) propunham que a realidade que experimentamos só existe a partir dos meios de comunicação de massa e que na verdade, 6
qualquer referência do real é apenas um eco, um conjunto de fluidos que chega a nós através da TV ou do computador. Não se pode mais falar em realidade, uma vez que ela já não é mais referência. O que acreditamos ser real é uma reprodução mal feita e infinitamente mais atraente do que o que realmente existe, é um simulacro. (BAUDRILLARD, 1981, p.62) O simulacro nunca oculta a verdade. É a verdade que oculta que não existe. O simulacro é verdadeiro. (Eclesiastes). O ponto em comum entre os filmes é o fato de seus protagonistas conseguirem despertar em algum momento para escolher entre o simulacro fantasioso ou a realidade que é apresentada de forma insossa. Truman (Show de Truman) vive em um reality show e tem sua vida acompanhada diariamente por milhões de espectadores no mundo todo; Neo (Matrix) vive em um receptáculo, ligado por fios, sonhando estar vivendo, quando na verdade, seus fluídos vitais servem de energia para os robôs que dominaram o mundo; Thomas Hall (13º andar) descobre que a simulação que havia criado não passa de um simulacro já que sua vida também não passa de um programa de computador. Em todos os casos, a fantasia, o simulacro nos é apresentado de forma mais atraente que a realidade dura e cheia de conflitos, ao contrário da alegoria de Platão, onde os prisioneiros acreditam que as sombras são reais e na verdade, o mundo exterior ofereceria mais atrativos que a caverna. O que Truman preferiria? Qual é a escolha de Neo? E Tomas Hall? Seria capaz de destruir o software que lhe comanda, mesmo correndo o risco de deixar de existir? Que pílula tomar: a azul ou a vermelha? No real, como no cinema, houve uma história mas já não há. A história que nos é entregue hoje em dia (justamente porque nos foi tomada) não tem mais relação com o real histórico que a neofiguração em com a figuração clássica do real. A neofiguração é uma invocação da semelhança, mas ao mesmo tempo a prova flagrante do desaparecimento dos objetos na sua própria representação: hiper-real. Os objetos têm aí, de alguma maneira, o brilho da hipersemelhança (como a história do cinema atual) que faz com que no fundo não se assemelhem em nada senão à figura vazia da semelhança, à forma vazia da representação. (BAUDRILLARD, 1981, p.62) Em Cidade de Vidro a escolha de Quinn se resume em aceitar ou não o caso de Stillman e a partir daí, a realidade que se apresenta está diretamente ligada a este evento. Se não tivesse assumido a identidade de detetive, não haveria uma história e no fim, após passar meses de vigília esperando que seu cliente fosse assassinado pelo pai e nada ter acontecido, não sabemos se qualquer evento realmente ocorreu ou se tudo não passou de um delírio do protagonista. Quando ele finalmente resolve procurar o verdadeiro Paul Auster, descobre que ele é um escritor, não detetive. Os Stillman também vivenciam realidades particulares: o pai por acreditar ser uma espécie de messias e o filho por ter sido cobaia das teorias do pai; ambos enclausurados de formas diferentes precisam se adaptar à vida após a clausura; um 7
precisa recuperar a linguagem para se situar no mundo e o outro coleciona itens danificados e lhes renomeia para criar uma nova linguagem divina. A realidade de cada um não é a mesma, o que pode ser justificado tanto pelas teorias de Platão e Baudrillard se acreditarmos que não há realidade alguma, apenas uma ideia da realidade, algo que se assemelhe a ela ou pelas teorias psicanalíticas sobre a personalidade: O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da realidade, contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada. (FREUD, 1924, p. 2) Se a escolha de Quinn em abandonar sua personalidade e qualquer coisa que o faça relembrar de sua vida pregressa é consciente, não podemos dizer o mesmo sobre os eventos relacionados ao caso Stillman. De qualquer maneira, tanto em Platão como em Baudrillard, é nítida a preocupação em se estabelecer um modelo de referência do real para que se possa tratar a simulação e o simulacro, porém, como categorizar um conceito que se mostra relativo e subjetivo a cada leitura? Fig. V - Reprodução - Mazzucchelli. Conversa com Stillman (filho) Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998) Sendo a realidade relativa, sua percepção é diferente para cada um e, portanto, como determinar o que é real? O psicanalista brasileiro Fábio Herrmann, criador da Teoria dos Campos, defende que entre a realidade e nossa percepção há vários campos cuja relevância depende da história e experiência pessoal. Não é possível experimentar o real em sua totalidade, mas é possível experimentar a sensação da realidade através de campos que correspondem à esfera da moralidade, esfera social, esfera familiar, esfera profissional. Quanto mais definidos os campos, maior a sensação de proximidade da realidade. 8
Realidade é a representação aparencial do mundo, compartida pelos homens, a face do real que se pode mostrar e que, frequentemente, nos ilude e desilude. Real é a profundidade produtora, que possui o vício de esconder-se por trás de seus produtos: identidade e realidade. (HERRMANN, 2001, p.10) A representação de Nova York para Quinn é de um grande labirinto, onde pessoas arruinadas completam a paisagem, incógnitas, desconhecidas, como se fossem parte dos muros da cidade. Uma grande torre de Babel, como na visão de Stillman e no fim, o próprio Quinn se torna um tijolo qualquer na construção da cidade, como se desmaterializasse, como se nunca tivesse existido. MODELO, CÓPIA, SIMULACRO: VALOR E REPETIÇÃO. Quando Deleuze aborda a preocupação de Platão em estabelecer um modelo e seu semelhante para que então possa se falar de cópias e simulacros no intuito de desmerecer e diminuir o que ele chamava de falsos pretendentes, podemos identificar a raiz do pensamento que define as adaptações como obras de pouco valor ou secundárias. Todo o platonismo, ao contrário, é dominado pela ideia de uma distinção a ser feita entre "a coisa mesma" e os simulacros. (DELEUZE, 2008, p. 73) Hutcheon afirma que, embora uma adaptação seja de fato derivativa de outra préexistente, seu valor não pode ser medido através das concepções platônicas notadas nos discursos acadêmicos ou em resenhas jornalísticas. Se assim o fossem, não justificariam sua popularidade e o fato de serem responsáveis por cerca de 85% das premiações da academia de cinema, por exemplo (2013,p. 24). Reverter o pensamento platônico implicaria em reconhecer o valor destas obras, ainda que não guardem semelhança com o modelo original, mesmo porque, o próprio Platão teria indicado a inconsistência de seu pensamento ao tentar estabelecer os conceitos de realidade, modelo, cópia... Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência- Aparência, ou Modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação; trata-se de introduzir a subversão neste mundo, crepúsculo dos ídolos. O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução. (DELEUZE, 2000, p.268) Em O Sofista, embora o objetivo do diálogo entre Teeteto e o estrangeiro fosse de esclarecer a posição do Sofista em relação aos filósofos, o método de divisão usado busca estabelecer o valor das cópias e simulacros em relação ao modelo original. Mesmo que o 9
conceito de modelo e realidade não seja totalmente claro, é notável a tentativa de desmerecer suas versões diante do que seria a verdade. Sobre a adaptação, Linda Hutcheon não só defende que toda adaptação é na verdade uma tradução, mas que o processo é tão importante quanto o resultado e que este processo envolve não só a interpretação de quem o lê, também envolve criatividade, sofisticação. Entre as palavras que definem as adaptações, Hutcheon se deparou com termos pejorativos como traição, deformação, perversidade e profanação. (HUTCHEON, 2013, p. 23 apud STAM, 2011: 23). E então? E o que dá a impressão de belo, por ser visto de posição desfavorável, mas que, para quem sabe contemplar essas criações monumentais em nada se assemelha com o modelo que presume imitar, por que nome designaremos? Não merecerá o de simulacro, por apenas parecer, sem ser realmente parecido? (PLATÃO, 2003, p. 27) O objetivo aqui, porém, não é de estabelecer o valor de uma adaptação em relação à obra que o originou, mas de trazer à tona a discussão que pode ser levantada sobre ela, seja para as HQs ou para qualquer outro meio. Hutcheon diz que nenhuma adaptação pode preencher um espaço que é representado nos romances literários, o espaço da mente (2013, p. 38), ainda assim, porque desmerecer a capacidade das imagens de nos fornecer uma ideia que talvez não fossemos capazes de imaginar somente com o auxilio do texto? QuandoPaul Karasik e David Mazzucchelli adaptaram o romance verbal e narrativamente complexo de Paul Auster, Cidade de Vidro [City of Glass](1985), para os quadrinhos (2004), eles tiveram que traduzir a história para o que Art Spiegelman chama de linguagem original dos Comics uma grade de painéis regular e exata com a grade como janela, porta da prisão, quarteirão ou tabuleiro de jogo da velha; a grade como metrônomo que dá a medida para as mudanças e impulsos da narrativa (HUTCHEON, 2013, p. 63) Alguns exemplos usados por Hutcheon são os Orcs de Os Senhor dos Anéis e o jogo de Quadribol de Harry Potter: embora talvez não possa recuperar as imagens que tinha antes de conhecer as versões cinematográficas, ao menos ela sabe com o que devem parecer (2013, p. 56) e o mesmo acontece em relação às cenas de Cidade de Vidro. Por mais que o leitor possa imaginar uma pessoa falando a partir do texto literário, é bem improvável que concebesse as imagens surreais usadas na HQ para o monólogo de Stillman. 10
Fig. 6 - Reprodução - Mazzucchelli. Fala de Stillman (filho) Fonte: HQ Cidade de Vidro (1998) Assim sendo, se a crítica acadêmica e a resenha jornalística têm suas raízes no pensamento platônico de que toda adaptação possa ser culturalmente inferior, Nietzche, Deleuze e Hutcheon não estão sozinhos ao afirmarem o contrário. As organizadoras do livro Pescando Imagens com Rede Textual HQ como Tradução, Andreia Guerini e Tereza Virgínia Barbosa, compartilham da mesma convicção de Hutcheon sobre o processo de adaptação como uma tradução. 11
Ora, se ao tradutor cabe compor um poema análogo ao original em outra linguagem e com signos diferentes, isso é factível com a transposição da linguagem literária para HQ. Todavia, essa tradução é fruto de um exercício sofisticado, que propõe recuperar os grandes clássicos e deles gerar imagens, e não somente uma tarefa que se limite a reproduzir sentidos e enredos de forma linear e descritiva, relatando-os de maneira direta e sem obstáculos. Não, nesse nosso processo de transpor a literatura para a HQ, a norma é nunca narrar conteúdos de forma reduzida e ilustrada para facilitar a tarefa do receptor, pois isso é ofendê-lo em sua inteligência. (GUERINI; BARBOSA, 2013, p. 16) CONCLUSÃO Após o primeiro contato com a HQ de Cidade de Vidro, minha impressão foi de familiaridade com a situação dos personagens. Sentia que havia um ponto comum entre a história de Paul Auster e filmes como Matrix e O Show de Truman. O caminho natural seria então confirmar esta hipótese através do estudo das obras que teriam inspirado os roteiros: A Alegoria da Caverna de Platão e Simulação de Simulacros de Baudrillard. No decorrer das leituras teóricas e da releitura da HQ, no entanto, minha percepção sobre a história foi alterada: os discursos dos personagens me soavam esquizofrênicos, desconexos, de forma que as teorias sobre a personalidade encontradas na Psicanálise parecessem mais sintonizadas com o enredo de Paul Auster. É possível que se conhecesse apenas a obra literária, minha percepção fosse diferente, mas as imagens surreais fornecidas por Karasik e Mazzucchelli me diziam que o problema dos personagens era muito mais psiquiátrico que filosófico, ou seja, Cidade de Vidro é uma HQ que permite uma leitura diferente dependendo do viés usado para analisá-la: sob a perspectiva de Platão e Baudrillard, a realidade apresentada parece distante do conceito que comumente estamos acostumados a imaginar, porém, também é possível que toda história não tenha passado de um delírio da mente doente de Daniel Quinn. Delleuze encontra nos diálogos de Platão não só uma inconsistência em relação ao conceito de modelo, mas também uma vontade de atribuir valor a este modelo de forma desmerecer suas versões, que ele chamaria de simulacros por não se assemelharem à obra original. Dentro desta perspectiva também foi possível chegar às considerações sobre romances e suas adaptações a partir de contribuições feitas por Linda Hutcheon e Walter Benjamin. Benjamin, em seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1985, p. 165), nos fala sobre a aura que envolve um objeto considerado autêntico e em como essa ideia teria influenciado o pensamento sobre suas reproduções, porém, o que Hutcheon e 12
Deleuze propõem é que este tipo de pensamento engessado de muitos críticos acadêmicos já não condiz com a realidade que é o mercado das adaptações. O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual. Em outras palavras: o valor único da obra de arte autentica tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja: ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo nas formas mais profanas do culto do Belo. (BENJAMIN, 1985, p. 170) Por mais que uma adaptação seja um produto derivado de outra obra, seu processo é tão complexo e sofisticado quanto uma tradução, por exigir do tradutor que ele faça uma interpretação da obra lida e a reproduza de forma manter a essência e as características mais importantes do original. Independentemente do valor que uma adaptação possa ter em relação à obra que a originou e da opinião que críticos acadêmicos e jornalistas tenham a respeito dos quadrinhos, Paul Auster parece não se preocupar com estas questões quando empresta sua voz ao personagem homônimo de Cidade de Vidro: Até que ponto as pessoas toleram blasfêmias, mentiras e absurdos se forem um bom entretenimento? A resposta: Até qualquer ponto. Afinal, é isso que qualquer pessoa quer de um livro... Ser entretida. (KARASIK; MAZZUCCHELLI, 1998, p. 93) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTER, PAUL. Cidade de Vidro. Trilogia de Nova York. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Antropos, 1981. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. 13
DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.. Diferença e Repetição. 2000. Disponível em: http://minhateca.com.br/heleno/documentos/gr+pesquisa+filosofia+juridica+contemporane a/deleuze/deleuze*2c+gilles.+diferen*c3*a7a+e+repeti*c3*a7*c3*a3o,9952141.pdf Acesso em: 10 jul. 2014, 11:23. FREUD, Sigmund. Perda da Realidade na Neurose e na Psicose. 1924. Disponível em: http://www.freudonline.com.br/category/livros/volume-19/ Acesso em 12 jul. 2014, 10:30. GUERINI, Andreia; BARBOSA, Tereza V. R. Pescando Imagens com rede textual HQ como Tradução. São Paulo: Peirópolis, 2013. HERRMANN, Fábio. O mundo em que vivemos. Andaimes do Real : Psicanálise do Quotidiano. 2001. Disponível em : http://www.teoriadoscampos.med.br/ Acesso em 14 jul. 2014, 9:20. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: UFSC, 2013. KARASIK, Paul; MAZZUCCHELLI, David. Cidade de Vidro. São Paulo: Via Lettera, 1998. PLATÃO. Livro VII A Alegoria da Caverna. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.. O Sofista. Domínio Público. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br Acesso em 15 jul. 2014, 11:10. 14