Latusa digital ano 5 N 33 junho de 2008



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Transcrição:

Latusa digital ano 5 N 33 junho de 2008 Invasões bárbaras * Elza Marques Lisboa de Freitas Vanda Assumpção Almeida ** Um filme como obra de arte sempre oferece a possibilidade de algumas leituras. O meu interesse e de Elza Freitas é discutir a película de Denys Arcand Invasões bárbaras, tendo no horizonte o tema Psicanálise e Felicidade 1. O que é a felicidade? O homem é feliz? Invasões bárbaras traz questões paradigmáticas à psicanálise, aborda temas de interesse do nosso campo de saber, retratando uma época ainda recente de grandes transformações e os seus efeitos. Sabemos que o sujeito não pode ser pensado fora da cultura, fora de um contexto social e que ele responde à subjetividade de sua época. Marie- Hélène Brousse relembra Lacan ressaltando que é preciso conhecer a subjetividade a partir do momento histórico da História do sujeito. O inconsciente não é atemporal, e sim histórico, pois diz respeito às histórias do indivíduo e à História, o que incluí estilos de vida, aspectos políticos, econômicos e, sobretudo, modalidades de gozo. O inconsciente é um fenômeno de linguagem, tem relação com a civilização e se coloca no * Trabalho apresentado na Noite de Biblioteca da EBP-Rio, no dia 9 de junho de 2008. ** Elza Marques Lisboa de Freitas Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Vanda Assumpção Almeida Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). 1 Conforme o tema do XVII Encontro Brasileiro de Psicanálise da EBP, Psicanálise e felicidade: sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais, que será realizado de 21 a 23 de novembro de 2008, no Rio de Janeiro. 1

político como laço social. O homem é um ser de linguagem, insere-se na cultura por meio de uma modalidade discursiva, um modo de gozo. 2 Imerso em um contexto cultural dominado pelo discurso da ciência, o filme retrata a partir Rémy, paciente terminal, e Nathalie, adicta, a questão da saúde pública, mostrando que ambos têm o mesmo valor para a ciência que, cada vez mais, tenta com suas drogas calar o sujeito ante sua dor de existir. A saúde seja física ou psíquica está aquilatada ao bem de capital. O sujeito vale pelo que tem, e não pelo que tem a transmitir. Vemos abordado o momento singular de Rémy diante da morte, do encontro com o real, com a angústia sem qualquer elaboração. Na verdade, o encontro com a morte enuncia outra morte, a morte do desejo, sendo a partir daí que surge uma trama original nas lentes do diretor. Meu interesse é tratar o que esse encontro enuncia para todos que vão se envolver no drama de Rémy: a possibilidade de subjetivação pela elaboração em torno do real que está posto para todo ser falante, para todo ser de linguagem. Observamos, no desenrolar do filme, os três tempos lógicos demarcados por Lacan, o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir, que vão sendo apreendidos pelos personagens em um processo que os reconecta com suas histórias, perdas e ganhos, e com seus modos singulares de gozo. O reencontro de Rémy com seu filho Sébastien, trabalhador de uma financeira em Londres, permite-nos uma discussão sobre o momento específico da História da cultura contemporânea que provoca uma resposta particular do sujeito ante o empuxo a um gozo desmedido, ao objeto promovido ao zênite da civilização como efeito da quebra dos ideais, da hierarquia, do poder centrado na figura de autoridade, fazendo surgir um esgarçamento na cultura. Efeitos já marcados por Lacan em 68, quando ele predizia que a quebra da hierarquia traria um novo mestre, mais tirânico. O 2 Texto apresentado no ciclo de conferências da Biblioteca do Campo Freudiano na Sede de San Sebastián da ELP, Una mirada desde el Psicoanálisis sobre temas de actualidad, em 9 de maio de 2008. Em: http://www.blogelp.com 2

saber sustentado na transmissão, na tradição, daria lugar a um saber no qual o sujeito estaria foracluído. Em seu diálogo com Nathalie, personagem importante na trama, Rémy diz não conseguir se resignar, pois tudo irá acabar ali e ele simplesmente irá desaparecer. Contudo, o movimento que Sébastien vai imprimindo de modo a oferecer a seu pai o melhor naquele momento terminal, apesar das desavenças e divergências, lhe fornece um novo sentido à vida. Observamos o início de um processo de subjetivação, precipitando certo olhar à sua volta, um tempo de elaboração das perdas, para poder concluir algo em torno de um desejo último, um desejo que ele pode sustentar a partir da subjetivação da morte, escolhendo o momento de morrer. Atenho-me à metáfora cavalgar o dragão por ser primorosa e pela força que tem na trama do filme. Rémy vai ser apresentado pela primeira vez à heroína, nas mãos de Nathalie, sua heroína, para cessar sua dor. Antes, porém, ao vê-lo agitado, ela pede que se cale e concentre-se: a primeira vez é sempre a melhor, é a essa que sempre queremos voltar. Chama-se: cavalgar o dragão. Cavalgar o dragão ou viagem com a heroína fala de uma experiência de satisfação, que deixa uma marca, um resto que os usuários tentam repetir, sempre, sempre, cada vez mais. Tal como a experiência inaugural do sujeito, essa experiência marca uma hiância e introduz um circuito pulsional, um gozo a mais, na busca de uma felicidade para sempre perdida buscada porque para sempre perdida. Trata-se aqui do gozo de um sujeito identificado ao resto, alienado às malhas do significante, e não de um sujeito do desejo. Nathalie retrata o sujeito marcado por um gozo mortífero na hiância entre o encontro/desencontro da vida. Ela traz a heroína, ela é a heroína, dribla a morte, mas ela é a morte. Traz a felicidade de um gozo que amortece o desejo. Elza Marques Lisboa de Freitas vai agora nos trazer suas considerações. 3

Em primeiro lugar, quero enfatizar o uso que Vanda fez do pensamento de Marie-Hélène Brousse e a afirmação desta última no que concerne ao inconsciente como histórico e não atemporal. Pois, o inconsciente sendo atravessado pelo significante já se constitui na singularidade da história do sujeito. Quando Freud postula a atemporalidade do inconsciente, está se baseando, com sempre o fez, em sua prática clínica, na problemática da transferência e da repetição, assim como na formação dos sintomas. Além do princípio da atemporalidade, Freud propõe o princípio da não contradição, ou seja, no inconsciente não há contradição. Pergunto então: tomar o inconsciente pelos avanços que pudemos fazer ao longo do tempo, principalmente com Lacan, e afirmá-lo como histórico e político, seria excludente em relação a uma dimensão atemporal? Ou a história e a política estariam registradas em eixos diferentes, portanto, coabitando nossas teorias sobre o inconsciente? Outro ponto que quero acentuar é a escolha que Vanda fez da expressão cavalgar o dragão, usada pela jovem ao iniciar Rémy no uso da heroína. Bela escolha. Cavalgar o gozo do excesso é cavalgar a morte. Não será isso que fazemos no cotidiano de nossas vidas às vezes longevas? Neste caso, não montados no dragão, mas no pangaré da morte tardia? A doença grave, a dor, a proximidade com a morte, provocam, logo de início, uma retomada nostálgica da história dos personagens. Fica evidente a passagem do tempo com seu poder degradador, como nos mostrou muito bem Proust. Há o pânico que se expressa em uma tentativa de retomar rituais de encontro social, em torno de bebida, comida, recordações e até mesmo uma divertida e quase adolescente aproximação à sexualidade e seus excessos. Rémy, o libertino, é relembrado em seu papel de don Juan. Na verdade dormiu com quase todas as mulheres ali, sem contar a louca histérica que o 4

ataca no leito apesar dos fios e tubos. O real da dor avança junto com o avanço do dragão que ataca os que não estão no seu dorso. A mocinha, no papel da cavalaria que vem salvar o mocinho acuado, montada em seu próprio dragão, é chamada, na verdade, para sedar o pânico de todos e a dor implacável que acompanha aquele câncer. Começa-se a montar o funeral do herói. Não esqueçamos os que cavalgaram o dragão-avião lançado no dia 11 de setembro contra as torres gêmeas e que deram nome ao filme. Na verdade, o diretor faz equivaler a tragédia histórica com a tragédia pessoal e minúscula de alguém que vai morrer sofrendo e sabe. É importante marcar coisas curiosas e bem objetivas. O sistema hospitalar retratado não deixa muito a desejar frente ao brasileiro, por exemplo, macas no corredor, falta de leitos, atendimento parco e impessoal e finalmente a corrupção que permite ao próspero filho do professor universitário comprar um andar inteiro do hospital e o reformar. Este é o cenário que ocupa dois terços do filme. Marco a presença diferente da freira-enfermeira cuja fé a protege um pouco de se queimar no fogo do dragão e que tenta dar a Rémy esse escudo. O recurso do filho à polícia para obter a droga é cômico para nós. Parece que eles estão um pouco à frente, pois fornecem o endereço, mas não a substância e ainda protegem o freguês. O filho pragmático consegue oferecer ao pai o alívio e até mesmo o direito à escolha de seu momento de morte. Temos também a filha navegante que, do mar, perde contato com o pai doente, e aparece como alguém que não pousa, que também viaja no esforço de ficar além das vicissitudes e contingências. A meu ver o que vai marcar o início das mudanças que se operam nos vários personagens é a introdução da droga e da moça drogadicta. Ela é filha de uma amiga de Rémy, contratada por seu filho enquanto especialista no assunto, já que a época é de especializações. A dor, que transforma Rémy em um corpo quase animal que sofre, é apaziguada pela heroína, recua frente ao anestésico para além do efeito gozoso. Rémy recupera uma 5

dimensão subjetiva. A jovem heroína, ao acompanhá-lo, começa a lutar com seu próprio dragão. Alguns amigos que suportam melhor do que outros essa proximidade trágico-patética continuam presentes. Rémy vai terminar seus dias na casa de campo de um deles que, por sua vez, também consegue se erguer ante sua jovem mulher que o tiraniza. Assim, há um efeito em cascata que sutilmente vai modificando a inevitável mediocridade da vida de todos como a de todos nós tornando-a mais verdadeira, mas ainda apenas uma vida como as outras. A vacuidade de tudo, tão bem retratada no filme e apontada por Vanda, é inevitável mesmo. Os vários semblantes, as palavras, os gadgets pequenos ou grandes estão aí. Gadgets encarnados, por exemplo, nos amigos pagos para vê-lo. A ilusão do último tratamento lançado... Os véus e consolos a que todos têm que recorrer, inclusive os mais lúcidos e críticos, fizeram-me pensar na modéstia que o real da morte e da nossa precariedade nos impõe. Não faltam no filme retratos explícitos da capacidade intelectual e crítica de todos ali envolvidos, assim como a nossa aqui. No entanto estão e estamos todos navegando no mesmo dragão. As reconciliações se dão in extremis. Lembro-me das reflexões de Vanda, ao escrever esta última frase. In extremis quer dizer o momento de concluir. Sem volta. 6